Fajã dos Cubres


Qualquer bicho pequeno está ali melhor do que um homem porque tem apenas vida e instinto, falta-lhe o pensamento, e isso poupa-o da certeza da pequenez e da efemeridade, e talvez do medo


A descer ou a subir pela estradinha escavada na rocha, debaixo de um temporal de Dezembro, não há como não pensar na pequenez e na solidão de um homem. Nesta fajã, na costa agreste da ilha de São Jorge, Açores, não há como não sentir o tamanho e a força dos elementos. Tudo é mar, rocha, vento e água. Falta o fogo, mas não é difícil imaginá–lo sob a forma de lava no princípio dos tempos. É verdade que, olhando em volta, se vê na pedra, na terra e no mar o traço da mão resistente e habilidosa das gentes. O lugar é pequeno nesta fajã, mas bem humano, e aqui os brasões apenas podem ter enxada ou cana e anzol. Mas o consolo dessa visão das coisas dos homens é pequeno, perante tamanha exuberância e grandeza das coisas da natureza, sobretudo debaixo do rugir do temporal. Não há como não sentir e pensar com o título de Kierkegaard, temor e tremor. Talvez se não houvesse temporal, talvez no tempo bom das hortênsias, talvez então fosse melhor. Ou talvez não, pois sempre lá estariam o mar e a rocha, pelo menos. E lá estaria a escarpa – que a descer simula a queda, e a subir, a barreira. Qualquer bicho pequeno está ali melhor do que um homem, seja uma estrelinha-de-poupa, um pisco-de-peito-ruivo, uma lapa ou um caranguejo-eremita. Porque o bicho tem apenas vida e instinto, falta-lhe o pensamento, e isso poupa-o da certeza da pequenez e da efemeridade, e talvez do medo. Albert Camus escreveu, nos “Cadernos”, por meados do século passado: “Quando um homem aprendeu – e não no papel – como ficar sozinho com o seu sofrimento, como ultrapassar a sua ânsia de fugir, a ilusão que outros podem partilhar, então pouco mais tem a aprender.” Mas a descer ou a subir pela estradinha escavada na rocha, não há como não pensar que isso é coisa que um homem nunca aprende, nunca sabe ou, pelo menos, nunca aceita – mesmo no fim.

Por isso também, escava mais na rocha do que em si mesmo e vai encontrando várias formas de fugir a essa aprendizagem ou aceitação – formas, afinal, de lidar com o medo. Pode escolher várias, por exemplo a cobardia ou a violência. Ambas são escolhas, ao contrário do medo, que é apenas um estado. Mas pode escolher também indagar e procurar aprender, sempre e mais, e isso é o mais próximo que há, em liberdade, do voo de um pisco-de-peito-ruivo. Esse caminho, o do aprendiz (coisa diferente de sabedor), é um possível entre muitos. Mas é um caminho de sede e de fome, um caminho de indagar e aprender sempre mais – e esse é o único património e o único legado. E essa fome e sede pode fazer com que – usando as palavras da poeta nascida noutra fajã, noutra ilha – se fique apenas pelo vestíbulo do impossível. Ou talvez não. Afinal, foi também ela quem, no mesmo poema, disse envergar uma camisa de vento ao contrário do esqueleto e, dirigindo-se aos subalimentados do sonho, decretou que a poesia é para comer. A escarpa da fajã dos Cubres simulará, então, não uma barreira ou uma queda, mas uma possibilidade – e seja a subir ou a descer.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


Fajã dos Cubres


Qualquer bicho pequeno está ali melhor do que um homem porque tem apenas vida e instinto, falta-lhe o pensamento, e isso poupa-o da certeza da pequenez e da efemeridade, e talvez do medo


A descer ou a subir pela estradinha escavada na rocha, debaixo de um temporal de Dezembro, não há como não pensar na pequenez e na solidão de um homem. Nesta fajã, na costa agreste da ilha de São Jorge, Açores, não há como não sentir o tamanho e a força dos elementos. Tudo é mar, rocha, vento e água. Falta o fogo, mas não é difícil imaginá–lo sob a forma de lava no princípio dos tempos. É verdade que, olhando em volta, se vê na pedra, na terra e no mar o traço da mão resistente e habilidosa das gentes. O lugar é pequeno nesta fajã, mas bem humano, e aqui os brasões apenas podem ter enxada ou cana e anzol. Mas o consolo dessa visão das coisas dos homens é pequeno, perante tamanha exuberância e grandeza das coisas da natureza, sobretudo debaixo do rugir do temporal. Não há como não sentir e pensar com o título de Kierkegaard, temor e tremor. Talvez se não houvesse temporal, talvez no tempo bom das hortênsias, talvez então fosse melhor. Ou talvez não, pois sempre lá estariam o mar e a rocha, pelo menos. E lá estaria a escarpa – que a descer simula a queda, e a subir, a barreira. Qualquer bicho pequeno está ali melhor do que um homem, seja uma estrelinha-de-poupa, um pisco-de-peito-ruivo, uma lapa ou um caranguejo-eremita. Porque o bicho tem apenas vida e instinto, falta-lhe o pensamento, e isso poupa-o da certeza da pequenez e da efemeridade, e talvez do medo. Albert Camus escreveu, nos “Cadernos”, por meados do século passado: “Quando um homem aprendeu – e não no papel – como ficar sozinho com o seu sofrimento, como ultrapassar a sua ânsia de fugir, a ilusão que outros podem partilhar, então pouco mais tem a aprender.” Mas a descer ou a subir pela estradinha escavada na rocha, não há como não pensar que isso é coisa que um homem nunca aprende, nunca sabe ou, pelo menos, nunca aceita – mesmo no fim.

Por isso também, escava mais na rocha do que em si mesmo e vai encontrando várias formas de fugir a essa aprendizagem ou aceitação – formas, afinal, de lidar com o medo. Pode escolher várias, por exemplo a cobardia ou a violência. Ambas são escolhas, ao contrário do medo, que é apenas um estado. Mas pode escolher também indagar e procurar aprender, sempre e mais, e isso é o mais próximo que há, em liberdade, do voo de um pisco-de-peito-ruivo. Esse caminho, o do aprendiz (coisa diferente de sabedor), é um possível entre muitos. Mas é um caminho de sede e de fome, um caminho de indagar e aprender sempre mais – e esse é o único património e o único legado. E essa fome e sede pode fazer com que – usando as palavras da poeta nascida noutra fajã, noutra ilha – se fique apenas pelo vestíbulo do impossível. Ou talvez não. Afinal, foi também ela quem, no mesmo poema, disse envergar uma camisa de vento ao contrário do esqueleto e, dirigindo-se aos subalimentados do sonho, decretou que a poesia é para comer. A escarpa da fajã dos Cubres simulará, então, não uma barreira ou uma queda, mas uma possibilidade – e seja a subir ou a descer.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira