António Tavares. “Quem lê ‘O Coro dos Defuntos’ vem-me falar outra vez da ternura”

António Tavares. “Quem lê ‘O Coro dos Defuntos’ vem-me falar outra vez da ternura”


Prémio Leya 2015, o novo romance do escritor já está nas livrarias. Um livro sobre uma comunidade perdida no seu tempo, onde a rudez e a natureza ditam as fronteiras.


Diz que sentia que um dia havia de chegar ao romance, ao mesmo tempo que se questionava sobre o que é que iria trazer de novo. O primeiro romance de António Tavares chegou então em 2013, depois de uma ligação à escrita feita em grande parte pelo teatro. Em “As Palavras que me Deverão Guiar um Dia” o autor faz a sua estreia naquele género com um livro que é também uma homenagem sua à literatura e às obras que o influenciaram. O romance foi finalista do Prémio Leya, porém seria o seu segundo romance “O Coro dos Defuntos” a conquistar a distinção com a história de uma aldeia da Cova da Beira, afundada entre um mundo a mudar vertiginosamente e o atraso a que está votada.
 “O Coro dos Defuntos” passa-se numa aldeia da Beira interior, entre 1968 e o 25 de Abril de 1974. Porque é que quis retratar este período, em particular?
Este período é fascinante, de vários pontos de vista. Para o nosso país é uma fase de mudança. Houve aqui alguma esperança de abertura do regime, que depois não veio a suceder. Mas a mudanças de poder sempre me fascinaram: como se processam, que forças gravitam à volta delas…Do ponto de vista internacional, é também um período carregado de acontecimentos muito marcantes: a recta final da guerra do Vietname, os direitos cívicos dos negros nos Estados Unidos, mas também o Maio de 68 e da conquista do espaço. É um período em que a Guerra-fria se acentuou bastante e em que há uma grande corrida ao espaço, entre americanos e soviéticos.
 Este romance evoca Aquilino Ribeiro. Traz até um glossário com termos dele que são usados ao longo da narrativa. Foi uma influência decisiva para este livro?
Não digo que tenha sido decisiva. Eu estava a ler o Aquilino e pelo facto de o estar a ler, havia uma voz que me contava as histórias e me falava dessa comunidade, uma comunidade tipo, digamos, e pude perceber que quer um relato, quer outro coincidiam bastante. Mesmo quem segredava ou contava essas histórias utilizava alguns dos termos que eram apanágio do Aquilino e pareceu-me uma excelente oportunidade para cumprir algo que tinha como objectivo que era trabalhar a linguagem. No meu primeiro romance já há um pequeno esboço do meu interesse pela palavra e, portanto, pareceu-me que neste romance era de assumir que tinha algo de aquiliniano. Não só no uso do vocabulário, mas também nas descrições e no universo que retrata. Porque ele escreveu muito sobre homens deste tipo. Aliás, ele no livro “Aldeia” descreve aldeias que são muito parecidas com esta que eu retrato.
 Os acontecimentos que aparecem no seu livro são revelados através da visão dessa comunidade, que é uma visão à distância e perdida no tempo. Foi deles que partiu para construir a narrativa ou foi da aldeia?
 Habitualmente apaixono-me pelas personagens. São as figuras o que mais me atrai e é a partir delas que depois procuro construir o enredo. Aqui foi a singularidade das figuras que me atraiu, ainda que grande parte das personagens do romance não sejam muito distintas entre si. Daí chamar-lhe coro. Mas há duas ou três que assumem algum protagonismo e essas são muito fortes e marcantes. Há uma delas, que é o Manuel Rato, pela qual me apaixonei de imediato e que percebi que tinha um manancial muito forte para desenvolver e construir coisas muito loucas. Essa excentricidade do Manuel Rato pareceu-me que ficava muito bem numa aldeia medieval, fechada, num país isolado do mundo, atrasado e sem instrução, vivendo de preconceitos e superstições.
 E até que ponto se inspirou em figuras reais para construir estas personagens? Ou elas são um coro das suas memórias sobre esse tipo de aldeias?
Elas têm uma base real. Depois poderá haver figuras que se cruzam naquilo que são efectivamente. Ou seja, misturo as características desta e daquela para construir uma terceira figura, essa sim literária. Mas gosto de partir da realidade e depois a partir daí procurar laivos do que é excêntrico ou pouco normal. O leitor quer alguma realidade, mas também quer uma fuga à realidade. Esse lado também me interessa. E tanto neste romance, como no primeiro há uma base real, figuras que são assim. Uma parte delas são tal e qual como as descrevo. O resto é a imaginação a funcionar.
 E as figuras deste romance, já que a história acontece no passado, partem de pessoas que estão nas suas memórias de infância ou de juventude, por exemplo?
No primeiro romance são figuras das minhas memórias, temperadas aqui e ali por algumas de uma memória mais distante, outras de uma memória mais próxima. Neste, as figuras não são da minha memória, falaram-me sobre elas, foram-me contadas.
 Daí usar muitas vezes o “diz ela” ao longo da história.
Sim. Eu não conheço ou conheço muito mal a vivência de uma aldeia assim, nunca vivi numa do género, não conheci nenhumas destas personagens naquilo que elas têm de real e verdadeiro. Mas isso foi-me contado e essas histórias eram tão engraçadas e as personagens tinham uma base real também tão engraçada e excêntrica que me pareceu que, com algum trabalho ficcional, elas poderiam ter muito interesse.
 Foi por isso que decidiu introduzir aquela voz, no texto?
Sim. Era necessário um artifício na voz que marcasse o romance, que fosse o compasso da narrativa. Não quis esconder esse “diz ela”, porque que no fundo era uma narrativa que estava a ser contada a alguém, que por sua vez a escrevia, e pareceu-me que acabou por resultar como toada do próprio romance, que e é transmissibilidade do que vai sucedendo.
Apesar dessas figuras percepcionarem os acontecimentos com as limitações que a aldeia lhes impõe, há comparações interessantes como a da guerra do Vietname com a guerra colonial portuguesa. Do que lhe contaram, o que é que essas pessoas conseguiam apreender da verdade dos factos?
As pessoas munidas dos instrumentos que têm, que são a tal pouca instrução, as crenças e superstições, só podem fazer leituras diferentes da realidade e pouco racionais.
 Mas essa comparação, naquilo que compara, até é muito racional.
Sim, essa é. Mas as interpretações são sempre muito mundanas, muito terra a terra. Claro que depois, pelo meio, há muitas que são certeiras, porque às vezes os “tolos” também dizem a verdade. Mas na maior parte dos casos, a interpretação é feita com base nas ferramentas que têm ao seu alcance. Para quem trabalha estes dois universos, saber que há um mundo que está a conquistar o espaço, a ir à Lua, e depois ao mesmo tempo há uma aldeia que vive na idade média, sem forma de interpretar isso… O que é que pensa quando vê as imagens daquilo? Vai ter a necessidade de comparar isso com a sua própria realidade. A interpretação que aqueles homens vão fazendo tem a ver com a agricultura e o que é que dará para cultivar lá.
 Apesar da ideia de coro e das personagens, como diz, não serem assim tão distintas, elas apresentam alguma diversidade entre si.
Elas são pessoas e conforme vou mergulhando nisto tudo – mergulho na aldeia, que é um espaço rude, de pedra, mas que também tem uma grande ligação à natureza – as personagens também têm, necessariamente, de traduzir alguma diversidade, que é a própria diversidade que a natureza tem. Não tive nenhuma intenção de construir personagens diversas entre si, a sua diversidade afirma-se naturalmente. O Aquilino é muito duro com esta gente, chama-lhes bichos, inclusive. E eu quis entendê-las como bichos mas no sentido em que estão próximas da natureza. Vi essa forma rude sempre como uma qualidade positiva.
 Tratou melhor as personagens deste romance que o Aquilino tratou as suas?
Costumo dizer que o meu primeiro romance é o romance da ternura e este é o romance da ironia. Mas quem lê este “O Coro dos Defuntos” vem-me falar outra vez da ternura. E acho que tratei as pessoas de uma forma terna, apesar de muitas vezes o relacionamento entre elas ser também ele rude.
 O livro termina com o 25 de Abril e a abertura da aldeia ao mundo, digamos assim, o que também pode ser confuso para uma comunidade que esteve fechada tanto tempo.
Nestas aldeias houve uma mudança drástica porque a informação de repente começou a fluir, a televisão generalizou-se, apareceram mais jornais. As aldeias passaram a ter estradas, o telefone começou a vulgarizar-se, tudo se aproximou muito. E depois havia as campanhas de alfabetização, que não era só ensinar as pessoas a ler e a escrever era pô-las a falar sobre vários temas, como o lugar da mulher na família e na sociedade, por exemplo. 
 Porquê?
Sendo uma mulher, não teria ido estudar, não teria ido para a universidade e tirado um curso superior. Não teria tido o trabalho que teve, não teria lido o que leu. E portanto, teria sido uma pessoa completamente diferente, se calhar mais próxima da natureza mas muito mais longe do mundo.
 Hoje, apesar de ainda haver aldeias isoladas, e muitas desertificadas, o mundo está mais pequeno, até por via da Internet e das telecomunicações. Mas conseguimos, de facto, apreender a realidade de forma mais fiel que essas pessoas da aldeia ou será uma ilusão?
Diria que hoje a forma como as pessoas apreendem a realidade é uma forma digital do conhecimento. A aprendizagem não se faz pelo relacionamento entre as pessoas e naquela altura fazia-se, fazia-se muito em função dos constrangimentos que os outros nos impunham. A questão hoje é se temos acesso ao essencial.