Rua do Benformoso. As cidades têm histórias que as ruas imprimem quando mudam. A Mouraria já foi árabe, como o nome indica, e já foi tudo o resto, à medida que a nossa história foi mudando. A rua que começa no Intendente e acaba no Martim Moniz, era há umas décadas uma rua da prostituição para as pessoas que vinham da província a Lisboa; depois entraram as drogas e a prostituição ficou diferente.
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Há pouco tempo, António Costa, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, assentou arraiais na Praça do Intendente, numa tentativa de requalificar o bairro ou, segundo as más-línguas, de fazer a sua “gentrificação”, leia-se, substituir os frequentadores pobres por gente de classe média, e o início da rua ganhou então bares da moda. Foi sol de pouca dura, as rusgas na rua afastaram os novos frequentadores. Subitamente tudo se alterou, o Benformoso foi somando aos restaurantes clandestinos chineses, que tinham chegado há pouco, uma série de novos comércios animados por gente do Bangladesh: restaurantes, mercearias e talhos Halal, que em árabe quer dizer “permitido e autorizado”. Sítios onde os muçulmanos podem comprar carne.
No meio da rua passam pessoas com vestes tradicionais bengalis. Meto conversa com alguns dos comerciantes. Procuro saber onde fica a mesquita. Comunicação difícil. Poucas palavras de português, algum inglês muito restringido ao comércio que fazem. Lá nos entendemos com mímica. Já sei onde fica, desço a rua, quando ela se divide em dois, subo a Rua do Terreirinho, logo no início vê-se uma porta verde grafitada. Um piso térreo com uma pequena entrada em que os fiéis deixam os sapatos. Na sala dois homens rezam. Pergunto-lhes se está o xeque ou alguém responsável pela mesquita, apenas consigo perceber que a próxima oração é às 14 horas. Todos os dias, em todos os pontos do planeta, os muçulmanos se prostram em sinal de submissão a Deus para as suas cinco orações diárias. Se estivéssemos num país de maioria muçulmana, que já fomos, ouviríamos a música das palavras que convocam os fiéis para rezar. O adhan, o chamamento à oração, seria dito em árabe: “Deus é Grande! Deus é Grande! Deus é Grande! Deus é Grande! Sou testemunha de que só há um Deus! Sou testemunha que há só um Deus! Sou testemunha de que Maomé é o mensageiro de Deus! Sou testemunha de que Maomé é o mensageiro de Deus! Vinde à oração! Vinde à oração! Vinde à salvação! Vinde à salvação! Deus é grande! Deus é grande! Há só um Deus!”
O adhan é dito um pouco antes das orações. Nas cidades muçulmanas acaba por assinalar a passagem do tempo, como fariam os sinos das igrejas católicas. Hoje parece que o islão é estrangeiro. Nada mais falso, quase todos os habitantes da Península Ibérica foram muçulmanos, mas depois da reconquista cristã muitos foram forçados, ao longo de séculos, a mudar mais uma vez de religião.
Estamos no Café Atlântico, em Odivelas. À frente vê-se a mesquita. São 15h30, a casa de culto está de momento fechada. Falo com o xeque Zabir, que me diz que há cerca de 60 mil muçulmanos em Portugal “contando com os registados no SEF, mas na realidade com a crise e a emigração devem ser cerca de metade”. A conversa é sobre o que é ser muçulmano e se o islão é uma espécie de antecâmara do terrorismo. Em paleio de comentador de televisão, seria: “É verdade que nem todos os terroristas são muçulmanos, mas é provável que a maioria professe o islão.”
O xeque, um homem sorridente de olhar vivo, vai-me dizendo que eles afirmam seguir a letra do Alcorão para no fundo o traírem. “O mais grave é que estão a transmitir a todo o mundo a ideia de que os muçulmanos podem ser pacíficos mas a sua religião é violenta”, afirma, para concluir: “Passamos todos por carneirinhos por uma questão de oportunismo, quando no fundo a nossa religião permitiria, segundo alguns comentadores, a violência dos tipos do autodenominado Estado Islâmico.” Pergunto-lhe: “Segundo o islamismo o Alcorão é a palavra de Deus, e os elementos do daesh justificam os assassinatos, e por exemplo a escravização das mulheres, com passagens do Livro.”
“Esse é o problema das traduções e das leituras sem contexto. No aramaico sírio em que o Alcorão foi escrito as palavras têm vários significados e o que esses indivíduos fazem é ignorar isso e tirar do contexto passagens do Alcorão e levá-las a dizer o contrário do que Deus afirma. Não há em lado nenhum do Livro passagens que justifiquem estas práticas.”
Mas a interpretação literal do Alcorão promovida pelo dinheiro da Arábia Saudita wahhabita, com as suas ideias de que o Alcorão deve ser apreendido de uma forma literal e a defesa de um regresso a uma comunidade de crentes como no tempo do profeta Maomé não leva ao salafismo radical, de que o Estado Islâmico é expoente? O xeque faz uma pausa, reflecte e diz de uma forma pausada, que contrasta com a sua forma viva de falar: “Esses movimentos tiveram a seu tempo aspectos importantes, tentaram extirpar da prática do islão influências culturais. A religião, ao espalhar-se em todo o mundo, passou a ter muitos aspectos que advinham dos povos que a praticavam”, observa. Era necessário, segundo diz, restaurar uma leitura única do Alcorão, “mas isso não pode significar uma queda num literalismo estrito. Se a certa altura se lê numa suna que o Profeta bebeu chá dez vezes, isso não nos pode obrigar todos a beber chá dez vezes”, exemplifica.
Mas não há aspectos negativos que advêm do próprio texto? O papel subserviente da mulher, por exemplo? O xeque nega veementemente e exemplifica. Na surata 33, versículo 59, é dito: “Ó Profeta, diz a tuas esposas, tuas filhas e às mulheres dos fiéis que (quando saírem) se cubram com as suas mantas; isso é mais conveniente para que se distingam das demais e não sejam molestadas; sabei que Deus é Indulgente, Misericordioso.” “Isso não obriga nenhuma mulher a usar este tipo de indumentária. Esta passagem tem uma razão de ser. Quando o profeta estava em Medina era visitado por inúmeras delegações, eram tempos em que podiam atentar contra a sua vida e a família e dos seus próximos, e daí esta ideia de as mulheres se vestirem de modo a poderem ser reconhecidas pelos olhos, pelos seus familiares, mas não pudessem ser identificadas por estranhos”, argumenta.
O xeque afirma que o único país muçulmano em que é obrigatório o uso do lenço é o Irão, que mesmo na Arábia Saudita, país em que esteve algum tempo, as mulheres podem não usar esse tipo de vestuário, e que muitas restrições não são religiosas, são culturais. “Estive com a minha irmã na Arábia Saudita, e tirando nas cidades sagradas de Meca e Medina há mulheres que não usam o hijab [lenço que cobre a cabeça]. A minha irmã, por exemplo não usou”.
Sobre a capacidade de atracção de movimentos como o Estado Islâmico sobre jovens muçulmanos no Ocidente, o xeque revela que desde o 11 de Setembro de 2001 há um esforço muito grande das autoridades religiosas muçulmanas de esclarecerem os fiéis e através desse trabalho impedirem uma deriva radical de parte dos crentes. “A minha interpretação desse fenómeno é, neste caso, mais política. Há um sentimento de insatisfação de muitos jovens no Ocidente. A internet tornou este mundo mais pequeno, e existe a possibilidade de radicalizar pessoas que não lidam bem com a situação em que vivem”, considera. Uma espécie de casos individuais? “Sim, é o que chamo gente isolada, com problemas, ‘lobos solitários’. Muitas vezes verificam-se mais casos disso em ‘convertidos’ que em famílias muçulmanas. Para lhe dar um exemplo, quando me aparece gente que se quer converter para casar com um muçulmano, acho normal, são 90% dos casos. Se me dizem que querem comparar o islão com o cristianismo também é corrente. Já se me aparecem a dizer que ouvem vozes e luzes, digo-lhes logo: ‘Amigo, luzes só no Estádio da Luz.’” Está descoberta uma segunda dimensão religiosa do xeque Zabir: é benfiquista convicto.
Sarika Karim é mãe de quatro filhos, embora ainda jovem. Confessa que só percebeu que era muçulmana quando teve idade para abarcar os deveres da sua condição. Nunca pôs a hipótese de não ser, nem serem as suas filhas. “Não temos opção, nascemos muçulmanos. Os meus pais são muçulmanos, os meus avós são muçulmanos. os meus bisavós são muçulmanos, os meus trisavós são muçulmanos. A minha filha de dois anos reza e já sabe que é muçulmana.” É sócia de vários lares de idosos e dirige directamente um deles, e não aceita que lhe digam que as mulheres têm um papel inferior no islão. “Não me sinto nada inferior. Tenho os mesmos deveres e direitos que o meu marido, se calhar até mando mais que ele”, ri. Quando lhe falo das condições de vida das mulheres em muitos países muçulmanos retorque-me: “Isso não é devido à religião, é fruto de uma cultura determinada. As mulheres não têm o mesmo papel na Europa, na Ásia, em África ou nos países árabes, isso é resultado da cultura de cada lugar, não é uma imposição da religião.”
Sarika não usa lenço, veste--se como qualquer outra portuguesa, talvez apenas de forma um pouco mais conservadora que a média. A forma como se relacionam os jovens é que parece ligada à cultura dos muçulmanos. Sarika conheceu o marido em actividades dos jovens da Comunidade Islâmica de Lisboa. “Ia a uns jogos de futebol, e foi aí que o conheci. Posteriormente fui coordenadora dos jovens da comunidade, numa altura que o meu futuro marido era presidente.” Nem ela nem os amigos tiveram casamentos combinados pela família. Mas admite que o conselho dos parentes é fundamental na sua forma de ver a vida. Saiyad tem pouco mais de 20 anos, estuda Gestão de Marketing no ISCTE e ajuda todos os dias a mãe no negócio familiar. Todos os dias, chova ou faça sol, trabalha umas horas numa das churrascarias dos pais. Concorda com Sarika, a sua fé no islão é fundamental para ele, não se considera muito diferente de qualquer jovem da sua idade, tirando algumas restrições alimentares.
Os muçulmanos não bebem álcool nem comem carne de porco e são de certa forma mais discretos e contidos na forma de vestir e nos comportamentos públicos. “Nem álcool nem minissaias”, pergunto-lhes no meio dos risos. “Isso”, e ainda algum cuidado para não ferir a sensibilidade das famílias, diz Saiyad. Também conheceu a namorada, e agora noiva, com quem diz querer casar “se Deus quiser”, nas actividades dos jovens da comunidade. Mas por exemplo, embora vá ao cinema com ela, nunca dão as mãos na rua. “É da nossa cultura não darmos azo a que falem de nós, e é uma forma de proteger as mulheres de serem apelidadas de forma menos elogiosa.” Nega a ideia de que isso implique que tenham um estatuto inferior. “Na nossa cultura o papel da mãe é fundamental”, garante o estudante. “Reza para o pé da mãe, diz o Livro”, recita Saiyad, contando: “Posso estar estoirado de um dia de trabalho, mas se a minha mãe me manda fazer alguma coisa eu obedeço.”
Sobre os atentados de Paris e o aparecimento do daesh, ambos recusam a ligação do grupo ao islamismo. “Eles distorcem as palavras do Alcorão para dizer os que lhes convém”, afiança Sarika. Tahir Saiyad só vê uma forma de vencer o terror: “A melhor forma é o poder da palavra. Explicar a todos os que convivem connosco o que é o islão. É a única forma de combater essa tentativa de manipular a nossa fé. Vemos as atrocidades que acontecem no mundo e queremos mudá-lo”, argumenta o estudante de Marketing.
Para contribuir para essa mudança, Sarika organizou o apoio aos refugiados na comunidade. Criou um grupo no Facebook, Irmãs Solidárias, com mais de 200 amigas que apoiam os refugiados. “Recolhemos muitas coisas para os refugiados. Infelizmente, não chegaram ainda, dadas as barreiras burocráticas e políticas. Por causa disso, arranjámos uma forma, na semana passada, e entregaram mais de 100 caixas à segunda caravana de ‘uma família como as nossas’ e estou confiante que vão chegar às pessoas.”
Mohamed Abed mostra com orgulho a sala de culto da Mesquita de Lisboa. Nas paredes, em árabe e português, estão azulejos com algumas passagens do Alcorão. A decoração veio de várias partes do mundo, como o Irão e a Arábia Saudita. Aqui rezam, juntos e em paz, xiitas e sunitas, enquanto em muitas zonas do Médio Oriente se matam alegremente. Nesta sala a paz está com todos. “O Dalai Lama esteve aqui, disse-nos que tinha sido a primeira vez que visitou uma mesquita”, conta Abed. No próximo domingo vai ser rezada uma oração por pessoas de várias religiões: católicos, judeus, budistas, hindus e muçulmanos vão orar pelas vítimas dos atentados de Paris na presença do embaixador de França. Não compreende como é possível que os elementos do daesh se afirmem muçulmanos. “Há uma passagem no Alcorão que diz que aqueles que matam alguém é como se tivessem morto toda a humanidade e aqueles que salvam alguém é como tivessem salvo a humanidade inteira. Como é possível que essa gente se afirme muçulmana?”, interroga-se.
Abed nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, e veio em 1975 para Lisboa. “Tenho a base cultural portuguesa, identifico-me com os ideais europeus”, diz. “Para mim ser muçulmano não é muito diferente de praticar qualquer outra religião.” Garante que não sente qualquer forma de discriminação. Embora ao longo da sua vida já tenha sido obrigado a arranjar alguns truques para que as imposições da fé não fizessem confusão a alguns. “Quando trabalhava na província viajava muito, as pessoas ofereciam-me vinho, e naquela altura era mal-educado não aceitar. Para não estar sempre a explicar os preceitos da minha religião, os meus colegas de trabalho convenceram-me a dizer que tinha um problema de fígado [risos] e assim não tinha de estar sempre a explicar as coisas”, relembra.
Na Comunidade Islâmica de Lisboa é responsável pelo trabalho social e pela parte cultural. Desde 2005 organiza o almoço de Natal para pessoas idosas e carenciadas. Com a Junta de Freguesia de Campolide, no ano passado serviram, com o apoio dos crentes, mais de 400 pessoas e forneceram um cabaz de produtos a 200 famílias. Em 2010, devido à crise e às responsabilidade sociais que sentiam, passaram a dar de 15 em 15 dias refeições aos pobres na mesquita. Há poucos anos começaram também a distribuir refeições a sem-abrigo. “Caminhamos para distribuir cerca de 7 mil refeições aos sem-abrigo”, conta. “Há sempre situações que nos impressionam. No jantar de Natal estava um casal pobre com um grande sorriso. Perguntei-lhes o motivo e responderam-me: ‘Como é que podemos não estar a sorrir se em toda a nossa vida é a primeira vez que estamos sentados a ser servidos?’ Foi uma coisa que me arrepiou.” Nessas actividades de caridade colaboram pessoas de dentro e de fora da comunidade. “O ano passado veio cá ajudar a equipa de futebol do Sporting”, conta com alegria.
Quando em Odivelas falo com o xeque Zabir desse jantar de Natal, o seu benfiquismo vem ao de cima. “Toda a gente me chateava por terem tido a equipa do Sporting ao almoço. Eu a certa altura tive de lhes responder que até achava bem, visto ser uma refeição para necessitados [ri-se]. Mas gostei muito que tivessem ido dar uma ajuda. Este ano ainda vai ser melhor. Parece que vai o Benfica.”
É o que se chama uma autoridade religiosa muçulmana com fé no Profeta, em Deus e na Luz.
Ainda tento convencê-lo de que deve ter fé é em Jesus de Alvalade, mas sem sucesso. Há divergências mais fortes que as religiosas.