Depois do ataque, as perguntas


Os irmãos Kouachi, responsáveis pelas mortes do “Charlie Hebdo”, tinham nascido e crescido em Paris.


OS EXEMPLOS multiplicam-se. Um vídeo online, através do qual jihadistas, armados até aos dentes, de facas a coletes explosivos, apelam aos “irmãos” de França a juntarem-se-lhes na luta por Alá e a não tolerarem mais humilhações. Um filme produzido pelo Channel 4, ao longo de um ano e antes dos ataques de Paris, através do qual uma equipa de muçulmanas britânicas, infiltradas num círculo londrino, expõem como ali se promove a ideologia extremista do ISIS, em palestras semanais que instam raparigas a abandonar a democracia e a viajar para a Síria.

A linguagem da “humilhação” infligida pelo Ocidente é das favoritas do ISIS. Semeiam-na por entre um dos seus terrenos de recrutamento de eleição: uma segunda e terceira geração de imigrantes árabes europeus. Mas há características individuais, constrangedoramente semelhantes ao quadro psicológico dos recrutados. Eles aderem à radicalização a fim de expressarem, através da violência de estilo jihadista, um ódio e frustração com raízes profundas nas suas existências. Cada vez mais o relato nos dá conta de jovens perdidos, com infâncias ou adolescências complicadas, que encontram no ISIS um norte para as vidas, um desvio do vazio. Agarrados numa idade propensa a uma causa que combina emoção, acção, rebeldia, martírio, glória. 

Em Julho de 2014, uma pesquisa realizada pela ICM Research sugeria que mais de um em cada quatro jovens franceses de todos os credos, com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos, têm uma opinião favorável ou muito favorável sobre o ISIS. Mesmo que tais estimativas sejam exageradas, nas entrevistas a jovens das banlieues parisienses, dessas habitações sociais despojadas de alma, encontra-se uma surpreendente tolerância a uma causa que, tal como eles a vêem, defende os oprimidos. 

Sim, sem dúvida. É uma segunda e terceira geração árabe nascida na Europa, em França, Inglaterra, Bélgica, que dá filhos ao radicalismo islâmico e ao terrorismo. Os irmãos Kouachi, responsáveis pelas mortes do “Charlie Hebdo”, tinham nascido e crescido em Paris, o mesmo se passando com Amedy Coulibaly, o homem armado que atacou um supermercado kosher em Paris e fez quatro reféns. Três dos bombistas suicidas do ataque de 7/7/2005 no metro de Londres tinham nascido em Inglaterra. E agora, o mentor dos ataques de Paris, de 28 anos e um dos mais activos membros do Estado Islâmico, Abdelhamid Abaaoud, era um belga, crescido em Molenbeek, um bairro de Bruxelas conhecido pelos muitos imigrantes árabes e marcado por um desemprego elevado. 

Mas é perigoso ficar por aqui. O jihadista é simultaneamente alguém que se identifica com o islão radical e falhou a integração na sociedade ocidental. Curiosamente, tem sido sublinhado como alguns são culturalmente confusos. É o caso dos irmãos Kouachi, criados em Gennevilliers, um subúrbio do norte de Paris. Cherif Kouachi, que planeou a operação, não dava sinais de ser particularmente religioso, mas foi impulsionado por um sentimento de distanciamento social. Nas palavras do presidente da mesquita local, Mohammed Benali, os Kouachi eram de uma ‘’geração que se sentia excluída, discriminada e, acima de tudo, humilhada. Falavam francês, mas consideravam-se árabes; eram culturalmente confusos.”

O maior problema que esta guerra coloca é que, quanto mais remexemos e conhecemos os detalhes, mais temos de admitir que não se aplacam, antes exponenciam as infindas perplexidades e consternações. Cresce um inevitável sentimento de autodefesa perante o estrangeiro que habita e conhece a nossa casa, e se pode tornar o nosso maior inimigo. O desassossego de saber que há um estranho que faz parte do nosso corpo e que uma guerra civil pode estalar nas sociedades portadoras de comunidades muçulmanas gigantes, como a França, o Reino Unido e a Alemanha. A França tem cerca de cinco milhões de muçulmanos, que compõem a maior comunidade muçulmana na Europa ocidental. A maioria é secular, se bem que um número crescente tenha, nos últimos anos, sentido atracção pelo islão. 

Ao cabo de dez anos a viver no Reino Unido, conheço por dentro os problemas de adaptação a uma cultura estrangeira, as vulnerabilidades e pontos fracos desse processo. Só se atinge o objectivo final de integração num país estrangeiro e a plena cidadania se este for um projecto recíproco, concertado entre o estado de acolhimento e o grupo/sujeito acolhido. Se o Estado e o grupo/indivíduo estiverem de comum acordo nesse longo processo de enorme investimento, que envolve a aprendizagem da língua e o respeito pela cultura do país de acolhimento. 

As políticas de integração adoptadas em França e em Inglaterra, se comparadas entre si, demonstram ter seguido estratégias diferentes. O Reino Unido congratulou-se e exaltou a diversidade, enquanto a opção francesa optou pela “assimilação” ou laicização (pense-se na proibição do uso do véu). Ironicamente, porém, partindo de premissas muito diferentes, as políticas de aquém e além- Mancha acabaram no mesmo lugar. Os grupos a integrar não criaram um conjunto comum de valores ou sentimento de nacionalidade e forjou-se um sentimento divisionista. Já pouco interessa escrutinar se foram as políticas que falharam ou se foram os grupos contemplados que nunca desejaram integrar-se. Tal como é tarde demais para apontar quem iniciou este círculo vicioso de cidadãos que se sentem repudiados ou enjeitados e que enjeitam e repudiam. Onde começa tudo, pela galinha ou pelo ovo? 

Temos de lidar, isso sim, com o que se instalou: o ressentimento, o medo e a desconfiança de parte a parte. E uma das melhores estratégias foi apontada por Shadik Khan, ministro-sombra do governo trabalhista, de ascendência paquistanesa. Ele argumenta que os muçulmanos são os mais bem posicionados para ajudar a lidar com esta radicalização que, nas suas palavras, mina a sociedade como um cancro. E invectiva a comunidade muçulmana britânica à acção e a não continuar a enterrar a cabeça na areia, fingindo que não existe um problema de radicalização no seu seio. 

O que eu desejava acentuar é a opção individual que subjaz à integração. O que me relembra uma conversa tida com uma italiana que vive em Londres, que me disse estar “pelos cabelos com os ingleses”. A minha posição é sempre o contrário desta. Mesmo que me custe. Mesmo que viva episodicamente experiências que poderia facilmente interpretar como humilhantes e inultrapassáveis, mas que o tempo me ensinou poderem ser apenas divergências culturais. Experiências que poderiam – se eu o deixasse – turvar o discernimento maior. Desequilibrar os braços da minha balança. No braço da qual vence a gratidão por viver num país que admiro, rodeada de uma cultura com a qual aprendo mais do que desaprendo. Na qual me insiro e quero continuar a inserir progressivamente. Gratidão por usufruir de bens que os meus antepassados não ajudaram a construir. De facto, não me cabia ter acesso a este país. Este país pertence primeiro aos ingleses e aos descendentes dos que deram o seu sangue para o defender. É por isso que me tendo a comportar como hóspede de uma casa na qual o meu filho já se insere plenamente.

Mas, como sei de experiência feita, é fácil esquecermo-nos de tudo e mais alguma coisa. Comportarmo-nos como se tudo o que cai do céu nos fosse devido. Até nesta cidade, nesta cultura, nesta língua, que não são particularmente difíceis de aprender, viver e estimar.

Sou uma beneficiária do multiculturalismo e tenho uma família multicultural. Sei bem avaliar os riscos do balão-de-ensaio europeu. Admiro o passo que Merkel deu, o que a Alemanha e outros países estão a tentar fazer com os refugiados, mas os desafios que se colocam são indesmentíveis.

Longe de mim tirar a ilação de que foi a xenofobia ou o Ocidente multiculturalista que favoreceram o terror. O multiculturalismo, a xenofobia, o islão radical são apenas terrenos férteis, mas há mais, muito mais. Acima de tudo, há uma escolha individual de ressentimento ou de gratidão. Há uma opção individual que cada muçulmano pode fazer de ser simultaneamente muçulmano e britânico, muçulmano e francês. Portuguesa e britânica, como é o meu caso. É preciso que nos deixem ser a base que trazemos, à qual adicionamos o que estimamos. O que escolhemos ser. Mas, da nossa parte, é também necessário querê-lo, ver nisso um acrescento e não uma diminuição.

Escritora, a viver em Londres desde 2005

Depois do ataque, as perguntas


Os irmãos Kouachi, responsáveis pelas mortes do “Charlie Hebdo”, tinham nascido e crescido em Paris.


OS EXEMPLOS multiplicam-se. Um vídeo online, através do qual jihadistas, armados até aos dentes, de facas a coletes explosivos, apelam aos “irmãos” de França a juntarem-se-lhes na luta por Alá e a não tolerarem mais humilhações. Um filme produzido pelo Channel 4, ao longo de um ano e antes dos ataques de Paris, através do qual uma equipa de muçulmanas britânicas, infiltradas num círculo londrino, expõem como ali se promove a ideologia extremista do ISIS, em palestras semanais que instam raparigas a abandonar a democracia e a viajar para a Síria.

A linguagem da “humilhação” infligida pelo Ocidente é das favoritas do ISIS. Semeiam-na por entre um dos seus terrenos de recrutamento de eleição: uma segunda e terceira geração de imigrantes árabes europeus. Mas há características individuais, constrangedoramente semelhantes ao quadro psicológico dos recrutados. Eles aderem à radicalização a fim de expressarem, através da violência de estilo jihadista, um ódio e frustração com raízes profundas nas suas existências. Cada vez mais o relato nos dá conta de jovens perdidos, com infâncias ou adolescências complicadas, que encontram no ISIS um norte para as vidas, um desvio do vazio. Agarrados numa idade propensa a uma causa que combina emoção, acção, rebeldia, martírio, glória. 

Em Julho de 2014, uma pesquisa realizada pela ICM Research sugeria que mais de um em cada quatro jovens franceses de todos os credos, com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos, têm uma opinião favorável ou muito favorável sobre o ISIS. Mesmo que tais estimativas sejam exageradas, nas entrevistas a jovens das banlieues parisienses, dessas habitações sociais despojadas de alma, encontra-se uma surpreendente tolerância a uma causa que, tal como eles a vêem, defende os oprimidos. 

Sim, sem dúvida. É uma segunda e terceira geração árabe nascida na Europa, em França, Inglaterra, Bélgica, que dá filhos ao radicalismo islâmico e ao terrorismo. Os irmãos Kouachi, responsáveis pelas mortes do “Charlie Hebdo”, tinham nascido e crescido em Paris, o mesmo se passando com Amedy Coulibaly, o homem armado que atacou um supermercado kosher em Paris e fez quatro reféns. Três dos bombistas suicidas do ataque de 7/7/2005 no metro de Londres tinham nascido em Inglaterra. E agora, o mentor dos ataques de Paris, de 28 anos e um dos mais activos membros do Estado Islâmico, Abdelhamid Abaaoud, era um belga, crescido em Molenbeek, um bairro de Bruxelas conhecido pelos muitos imigrantes árabes e marcado por um desemprego elevado. 

Mas é perigoso ficar por aqui. O jihadista é simultaneamente alguém que se identifica com o islão radical e falhou a integração na sociedade ocidental. Curiosamente, tem sido sublinhado como alguns são culturalmente confusos. É o caso dos irmãos Kouachi, criados em Gennevilliers, um subúrbio do norte de Paris. Cherif Kouachi, que planeou a operação, não dava sinais de ser particularmente religioso, mas foi impulsionado por um sentimento de distanciamento social. Nas palavras do presidente da mesquita local, Mohammed Benali, os Kouachi eram de uma ‘’geração que se sentia excluída, discriminada e, acima de tudo, humilhada. Falavam francês, mas consideravam-se árabes; eram culturalmente confusos.”

O maior problema que esta guerra coloca é que, quanto mais remexemos e conhecemos os detalhes, mais temos de admitir que não se aplacam, antes exponenciam as infindas perplexidades e consternações. Cresce um inevitável sentimento de autodefesa perante o estrangeiro que habita e conhece a nossa casa, e se pode tornar o nosso maior inimigo. O desassossego de saber que há um estranho que faz parte do nosso corpo e que uma guerra civil pode estalar nas sociedades portadoras de comunidades muçulmanas gigantes, como a França, o Reino Unido e a Alemanha. A França tem cerca de cinco milhões de muçulmanos, que compõem a maior comunidade muçulmana na Europa ocidental. A maioria é secular, se bem que um número crescente tenha, nos últimos anos, sentido atracção pelo islão. 

Ao cabo de dez anos a viver no Reino Unido, conheço por dentro os problemas de adaptação a uma cultura estrangeira, as vulnerabilidades e pontos fracos desse processo. Só se atinge o objectivo final de integração num país estrangeiro e a plena cidadania se este for um projecto recíproco, concertado entre o estado de acolhimento e o grupo/sujeito acolhido. Se o Estado e o grupo/indivíduo estiverem de comum acordo nesse longo processo de enorme investimento, que envolve a aprendizagem da língua e o respeito pela cultura do país de acolhimento. 

As políticas de integração adoptadas em França e em Inglaterra, se comparadas entre si, demonstram ter seguido estratégias diferentes. O Reino Unido congratulou-se e exaltou a diversidade, enquanto a opção francesa optou pela “assimilação” ou laicização (pense-se na proibição do uso do véu). Ironicamente, porém, partindo de premissas muito diferentes, as políticas de aquém e além- Mancha acabaram no mesmo lugar. Os grupos a integrar não criaram um conjunto comum de valores ou sentimento de nacionalidade e forjou-se um sentimento divisionista. Já pouco interessa escrutinar se foram as políticas que falharam ou se foram os grupos contemplados que nunca desejaram integrar-se. Tal como é tarde demais para apontar quem iniciou este círculo vicioso de cidadãos que se sentem repudiados ou enjeitados e que enjeitam e repudiam. Onde começa tudo, pela galinha ou pelo ovo? 

Temos de lidar, isso sim, com o que se instalou: o ressentimento, o medo e a desconfiança de parte a parte. E uma das melhores estratégias foi apontada por Shadik Khan, ministro-sombra do governo trabalhista, de ascendência paquistanesa. Ele argumenta que os muçulmanos são os mais bem posicionados para ajudar a lidar com esta radicalização que, nas suas palavras, mina a sociedade como um cancro. E invectiva a comunidade muçulmana britânica à acção e a não continuar a enterrar a cabeça na areia, fingindo que não existe um problema de radicalização no seu seio. 

O que eu desejava acentuar é a opção individual que subjaz à integração. O que me relembra uma conversa tida com uma italiana que vive em Londres, que me disse estar “pelos cabelos com os ingleses”. A minha posição é sempre o contrário desta. Mesmo que me custe. Mesmo que viva episodicamente experiências que poderia facilmente interpretar como humilhantes e inultrapassáveis, mas que o tempo me ensinou poderem ser apenas divergências culturais. Experiências que poderiam – se eu o deixasse – turvar o discernimento maior. Desequilibrar os braços da minha balança. No braço da qual vence a gratidão por viver num país que admiro, rodeada de uma cultura com a qual aprendo mais do que desaprendo. Na qual me insiro e quero continuar a inserir progressivamente. Gratidão por usufruir de bens que os meus antepassados não ajudaram a construir. De facto, não me cabia ter acesso a este país. Este país pertence primeiro aos ingleses e aos descendentes dos que deram o seu sangue para o defender. É por isso que me tendo a comportar como hóspede de uma casa na qual o meu filho já se insere plenamente.

Mas, como sei de experiência feita, é fácil esquecermo-nos de tudo e mais alguma coisa. Comportarmo-nos como se tudo o que cai do céu nos fosse devido. Até nesta cidade, nesta cultura, nesta língua, que não são particularmente difíceis de aprender, viver e estimar.

Sou uma beneficiária do multiculturalismo e tenho uma família multicultural. Sei bem avaliar os riscos do balão-de-ensaio europeu. Admiro o passo que Merkel deu, o que a Alemanha e outros países estão a tentar fazer com os refugiados, mas os desafios que se colocam são indesmentíveis.

Longe de mim tirar a ilação de que foi a xenofobia ou o Ocidente multiculturalista que favoreceram o terror. O multiculturalismo, a xenofobia, o islão radical são apenas terrenos férteis, mas há mais, muito mais. Acima de tudo, há uma escolha individual de ressentimento ou de gratidão. Há uma opção individual que cada muçulmano pode fazer de ser simultaneamente muçulmano e britânico, muçulmano e francês. Portuguesa e britânica, como é o meu caso. É preciso que nos deixem ser a base que trazemos, à qual adicionamos o que estimamos. O que escolhemos ser. Mas, da nossa parte, é também necessário querê-lo, ver nisso um acrescento e não uma diminuição.

Escritora, a viver em Londres desde 2005