12 de Novembro de 1935. A história esquecida das lobotomias de Egas Moniz

12 de Novembro de 1935. A história esquecida das lobotomias de Egas Moniz


A polémica operação que valeu o único Nobel da Medicina a Portugal faz 80 anos. O i recupera relatos sobre os primeiros doentes e os passos do médico no Hospital de Santa Marta, em Lisboa.


Para a história ficaram apenas as iniciais M.C. Seria Maria do Carmo, talvez Catarina. Foi admitida pela primeira vez no Hospital dos Alienados de Lisboa a 26 de Maio de 1910, com 48 anos. Aos 14 teve o primeiro amante e entregou-se à prostituição, uma vida sempre na clandestinidade. No início daquele ano atirara-se de uma janela e, depois da recuperação, foi enviada para o também chamado Manicómio Bombarda com delírios de perseguição e agitação maníaca. 

Os antecedentes pessoais anotados pelo psiquiatra Sobral Cid, que dirigia o Bombarda, mostram o passado conturbado da mulher que mais tarde viria a ser a primeira doente lobotomizada da história, na manhã de 12 de Novembro de 1935. Faz 80 anos, mas o livro em francês em que Egas Moniz relatou, no ano seguinte, o historial dos primeiros 20 casos é dos poucos lugares onde é lembrada. 
No Hospital de Santa Marta, onde tudo aconteceu, não há também muitas marcas das operações ou sequer da passagem do médico que em 1949 receberia o Nobel da Medicina. Apesar da distinção, Egas Moniz e a sua técnica nunca deixaram de estar envoltos em polémica. Terá sido, como muitos críticos consideram, um dos momentos negros da medicina?

A discussão continua em aberto, mas, na manhã daquele 12 de Novembro, o médico estava determinado. Era o culminar de dois anos de reflexão sobre o funcionamento do cérebro e alguma experimentação com cadáveres. Não por ele directamente, já que era neurologista e não operava – mesmo que quisesse tinha as mãos atrofiadas pela gota. Todos os treinos e operações seriam feitas pelo neurocirurgião Almeida Lima, tio-avô de João Lobo Antunes, e pelo seu assistente Ruy Lacerda.

Depois de muita insistência M.C. foi enviada para o Hospital Santa Marta, onde Egas Moniz dirigia o serviço de Neurologia, após muita insistência do médico junto de Sobral Cid. Por cada doente, escreveria mais tarde, tinha de ir nove ou dez vezes ao manicómio lutar contra as desculpas do psiquiatra. Dos 20 primeiros operados, 14 vieram do Bombarda e os restantes teve mesmo de os arranjar nas clínicas onde dava consulta e no Telhal.
Em “Tentatives Opératoires dans le Traitement de Certaines Psychoses” lê-se que, depois do primeiro internamento, em 1910, M.C. regressara ao Bombarda em 1932. Pelo caminho continuara a vida de “prostituição e excesso alcoólico”. Teve um amante que a abandonou, o que despertou nela um forte ciúme. Sentia-se perseguida pelos vizinhos e começou a ouvir vozes que criticavam a sua conduta. Sofria de sono irregular, crises de ansiedade e delírios cada vez mais fortes. Acusava médicos e farmacêuticos de a porem naquele estado. No manicómio há três anos, estava quase sempre quieta e muda. Sem perspectivas. “Se lhe falamos ou perguntamos qualquer coisa, chora, queixa-se do seu destino e suplica que a deixemos tranquila.”

Quando chega o dia da operação tem 63 anos e um diagnóstico de “melancolia involutiva, ansiosa e paranóide”. Egas Moniz descreve todo o processo. Não andava à procura de nenhuma psicose em particular para tratar, queria ver se a sua hipótese de tratamento alterava sintomas psíquicos. Tinha a sua teoria para os delírios “mórbidos”:se o cérebro funciona pelo accionamento de ligações entre neurónios, explicava, em doentes mentais graves, determinadas ligações neuronais estariam demasiado fixas. Destruindo esses arranjos, ficariam livres.

Furar o cérebro Como o lobo pré-frontal era a área cerebral que mais se destacava no cérebro humano, mesmo em relação a outros mamíferos, Egas Moniz defendeu que era aí que importava intervir, eliminando células do seu centro oval tanto no hemisfério esquerdo do cérebro como no direito – estudos da época com feridos e doentes com tumores cerebrais mostravam que intervir apenas num lado não produzia efeitos.

Para fazer os cortes, cirurgia que internacionalmente viria a ficar conhecida como lobotomia mas a que o médico português chamou leucotomia, havia várias hipóteses. Nos primeiros dez doentes usaria injecções de álcool absoluto, capaz de destruir o tecido nervoso. Depois, para maior precisão, inventa um instrumento de corte a que chama leucótomo. Uma haste de 11 cm com uma ansa na ponta, para cortar e puxar a massa a remover. Apesar de não haver regras sobre ensaios clínicos, Egas Moniz defendeu que primeiro os cirurgiões deviam treinar em animais e a sua equipa fê-lo também com cadáveres humanos. Não guiava por causa da gota, mas comentava com o motorista o que diria a polícia se os visse com as cabeças cedidas pela anatomia na bagagem do carro, no percurso que fez muitas vezes da faculdade até ao hospital.

Curada No dia D, tudo começou com a anestesia e dois orifícios no crânio, de três centímetros cada, com uma broca de trépano. Ultrapassada a dura-máter, meninge externa, começou o procedimento cerebral que no imaginário colectivo ficaria para sempre associado à imagem sórdida de Frankenstein. Embora nada tivesse a ver com a história do início do século xix.
A operação de M.C. demorou meia hora, escreve Egas Moniz. A doente acordou da anestesia às sete da tarde e às oito, cinco horas depois da intervenção, examinaram o seu estado. “Bastante bom”, declarou o médico. Ao levantar-se queixou-se de dor de cabeça mas depois melhorou. Interagiu e respondeu às perguntas, só hesitando na idade.
Nos dias seguintes viria febre, sonolência e ausência de emoção, efeitos secundários que Egas Moniz listou entre os mais comuns após concluir os 20 primeiros casos. Todos “passageiros”, acrescentou. M.C. não tornaria a mostrar-se delirante mas passa a exprimir preocupação com o futuro. Quer recuperar a liberdade mas diz que a sua vida está desfeita. Quando por fim lhe perguntam a idade pensa ter 53 anos, e não 63, desorientação temporal que o médico viria também a considerar comum.

Certo é que quando é devolvida, a 20 de Novembro, ao manicómio, está “clinicamente curada”. Segundo Egas Moniz, faltava então ver se seria definitivo, mas disse acreditar que as recidivas se notariam em pouco tempo. Dos 19 casos que se seguiriam até 30 de Janeiro de 1936, Egas Moniz afirma que o primeiro é dos mais felizes. Dos 20 iniciais, sete são considerados pelo médico “curas clínicas”, outros sete “melhorias consideráveis, sobretudo da agitação psicomotora”, e seis doentes ficaram na mesma. Neste primeiro relato, Egas Moniz acredita estar no bom caminho: nenhum doente morreu ou ficou pior e nenhum teve diminuição da memória ou da vida intelectual.

Seria mesmo assim? Para os críticos, contudo, o sucesso sempre foi uma ilusão. Manuel Correia, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra e especializado em história da psicocirurgia, ajuda a contextualizar. Acompanha-nos no percurso pelo Hospital de Santa Marta junto com a administradora hospitalar do Centro Hospitalar Lisboa Central dedicada ao património Célia Pilão, que tem aprofundado o estudo sobre Egas Moniz na instituição. Ambos pensam que o médico estava bem intencionado, mas tinha também a ambição de deixar uma marca na ciência. Dimensões inseparáveis quando se avalia a sua ambição e o seu julgamento dos factos. “É sempre difícil falar de erros no passado, porque naquele contexto fazia sentido e na altura Egas Moniz teria uma grande intuição de que aquilo poderia funcionar”, diz o investigador.

Dez anos antes Egas Moniz já tinha inventado a chamada arteriografia cerebral – o primeiro exame em que introduzindo um líquido de contraste era possível através de raio X analisar os vasos sanguíneos do cérebro e identificar eventuais trombos e aneurismas. Isso dar--lhe-ia alguma confiança. “No caso da leucotomia, estava desejoso de ter os 20 casos para os apresentar lá fora. Também porque sabia que não tinha muito tempo”, explica Manuel Correia. Tendo ambição científica, tinha noção de que tinha começado velho, depois de uma vida dedicada à política, já que chegou a ser ministro de Sidónio Pais. “Se Sidónio não tivesse sido morto, talvez nem tivesse começado.”
 
O cérebro no centro A intuição assentava numa ideia que não era assim tão consensual à época. “Pensava que a psiquiatria não fazia nada realmente inovador e que uma perspectiva mais organicista talvez conseguisse melhor”, explica Manuel Correia. Egas Moniz brinca com isso nos seus escritos, lembrando a escola de pensamento que achava que a doença mental era resultado de fenómenos psíquicos, nada tendo a ver com o cérebro.
Por isto, mas não só, a vida no hospital e entre a elite médica de Lisboa não seria fácil. Natural de Avanca e licenciado em Coimbra, Egas Moniz vem para Lisboa antes da implantação da República e entra em Santa Marta por concurso. Em 1911 assume a chefia do serviço de neurologia. “Na altura o hospital era dominado por dois médicos: Francisco Gentil, na cirurgia, e Francisco Pulido Valente, na medicina”, lembra Célia Pilão. “Havia alguma rivalidade, em parte devido à relação intestina entre Coimbra e Lisboa, e em particular de Pulido Valente, que terá sentido que de certa forma vir um médico fundar a cátedra de Neurologia lhe tirava uma parte da sua medicina.”

Tirando colaboradores próximos, como Almeida Lima, Ruy Lacerda e uma enfermeira, Deolinda, Egas Moniz era um homem isolado em Santa Marta. Durante o dia via os doentes e às terças e aos sábados dava aulas. Mas só trabalhava nas suas técnicas quando já não estava presente nenhuma das sumidades. “Dizia muitas vezes que fazia a sua investigação na clandestinidade, ao final do dia.”

Mais que alguma reserva ética, teria receio que lhe roubassem os créditos. Pulido Valente (avô de Vasco Pulido Valente) seria particularmente corrosivo. “Chamava-lhe o electricista da Rua do Alecrim, por usar muitas vezes electricidade nos doentes”, lembra Célia Pilão, já que na altura estavam também em teste os electrochoques. “E dizia que o contraste que injectava na carótida dos doentes era leite das suas vacas de Avanca.” Egas Moniz, por bem-intencionado que fosse, era assumidamente republicano e um homem vaidoso, o que também lhe valia críticas num meio conservador. Usava capachinho e tinha mandado construir em casa uma réplica da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra.

Oposição silenciosa Apesar das críticas e das guerras internas, o médico manteve-se firme e não houve protesto público contra o seu trabalho. Só anos mais tarde, em 1946, partilha com o médico americano que tornou célebre a lobotomia, Walter Freeman, que Sobral Cid – que então já tinha morrido – tivera dúvidas. O psiquiatra chega em 1937 a criticar a lobotomia numa apresentação em Paris, mas não a contesta em Portugal, embora já tivesse na altura as que seriam as principais dúvidas históricas em torno do trabalho de Egas Moniz: considerava que eventuais resultados se deviam ao facto de a lesão no cérebro tornar os doentes apáticos suprimindo estímulos endógenos, e por isso não se justificava a violência da operação. 

Para Manuel Correia, tudo isto faz de Egas Moniz e da sua história um caso de estudo na cultura portuguesa. “A crítica só na intimidade acaba por ser paradigmática do jeito português de não afrontar o outro.” Mas há mais pontos de interesse. Se em todo o mundo foi grande a controvérsia, em Portugal veio mais depressa o silêncio. Os porquês serão profundos. “Vejam-se grandes questões que atravessaram o século xx: a psicanálise, o marxismo, o darwinismo. Nenhuma motivou grande debate em Portugal. Somos uma sociedade muito subjugada pelos poderes centrais, muito paternalista, em que o espaço de debate é reduzido.”

Sem memória Curioso também para Manuel Correia é o esquecimento de Egas Moniz nos corredores de Santa Marta. Célia Pilão é a primeira a assumi-lo. O hospital na colina de Santana foi durante 30 anos o local de trabalho do único Nobel científico português e não há nada a invocá-lo. “Só sobra uma mesa”, diz a responsável. “E porque a salvaste”, brinca Manuel Correia. A marquesa de madeira e ferro onde Egas Moniz fez a primeira arteriografia chegou a estar na sala de espera do serviço de radiologia com revistas cor-de-rosa e a máquina do café. 

A explicação será institucional, diz a responsável. Em 1953 abre o Hospital de Santa Maria, que substitui Santa Marta como hospital escolar. O ensino da Neurologia muda-se para lá e constrói-se no adro uma estátua do médico. “Há uma apropriação do legado, quando na realidade Egas Moniz nunca lá trabalhou”, lamenta Célia Pilão. Mas mais que reparar o passado a responsável teme o futuro. “Indo os hospitais antigos da colina de Santana para o novo Hospital de Lisboa Oriental, em Chelas, como está previsto, vai ser preciso preservar ainda mais esta memória. Santa Marta tem de fazer parte da história e não tem feito quase nada por isso.”

Hoje a mesa está na sala onde Egas Moniz dava aulas em Santa Marta, um começo. O serviço de neurologia, que ficava num canto a sudeste do edifício, deu lugar à ala de cirurgia vascular. Para quem conheça a história, acaba por ser uma homenagem: é a arterogafia desenvolvida por Egas Moniz, que médicos de Santa Marta aplicariam noutros órgãos, que funda esta especialidade no país.

Para vislumbrar os restantes passos do médico no edifício, só mesmo com visita guiada. Todos os dias entraria pela portaria e passaria pelo andar térreo do claustro, com um jardim que sobrevive do tempo em que o edifício era um convento de Clarissas. O médico subia depois por umas escadas, hoje fechadas, até ao seu serviço, que sempre disse ser o mais desprovido do hospital. Para as suas experiências, e como não tinha um aparelho de raio X, descia ao serviço de radiologia, que se mantém no mesmo local.

Se a história o foi esquecendo, Egas Moniz quis fazer parte dela e escreveu muito, não se esquivando à controvérsia. Alguns excertos do livro francês foram aproveitados mais tarde no trabalho autobiográfico “Confidências de Um Investigador Científico” (1949). “Mesmo que a nossa concepção seja exacta, caminhamos como cegos nesta prática terapêutica”, assume em 1936. “É preciso apalpar terreno prudentemente, mas com determinação, desde que possamos garantir que a vida dos doentes não corre perigo. Como as primeiras experiências devem ser feitas em casos incuráveis, aquilo que poderemos alterar não terá importância.” 

Diminuir os alienados “Havia um certo optimismo quanto estar a tentar arranjar uma solução. Tanto que a psicocirurgia entra em declínio nos anos 50 e 60, quando surgem novos medicamentos”, diz Manuel Correia, que rejeita um perfil menos humanista no médico. Ainda assim, com retórica de político, Egas Moniz parece apelar sobretudo aos benefícios da sua ideia. Nas imagens do antes e do depois dos doentes, as segundas são bem mais tranquilas que as primeiras. E lista várias vantagens contra a desvantagem de não ter bem a certeza do que está a fazer. Fala de um caminho para suprimir o sofrimento íntimo dos “prisioneiros da ansiedade, dos delírios hipocondríacos e melancólicos” e das forças ocultas que os levam ao desespero. De “restituir às famílias pessoas que consideram perdidas”. E refere até resultados económicos, como a diminuição da “população de alienados”. 

Nada disto aconteceu. Em Portugal estimam-se 500 operações. Nos EUA, onde Freeman foi considerado um monstro, foram mais de 20 mil. Depois dos doentes incuráveis operados por Egas Moniz, a lobotomia passou a ser usada em quase tudo, até na dor crónica. A apatia e a ausência de resultados inequívocos contribuíram, a par dos medicamentos, para a técnica cair em desuso, ainda que Egas Moniz tenha escrito a Freeman, já no final de vida, dizendo que em Portugal não foi mais usada devido ao “ambiente de opressão” da ditadura, ao “sectarismo nos apoios sociais” e à má vontade e inveja de alguns colegas. 

Em 1949, e quando a técnica já era questionada, o Nobel foi em contracorrente, diz Manuel Correia, admitindo que isso perpetuou a polémica e que há injustiças na história. “A angiografia até era visualmente mais violenta: faziam uma incisão no pescoço, puxavam a carótida com um gancho e injectavam o contraste, que era uma substância radioactiva. Como se revelou uma técnica benéfica, há menos ideia do ponto a que foram sacrificados os doentes.” E sendo mais revolucionária, não ter sido por isso que Egas Moniz recebeu o Nobel contribuiu para a dúvida sobre se o prémio terá sido indevido, quando havia matéria para o distinguir.

A história dos doentes, essa, está em grande parte por fazer. Nos inquéritos clínicos M.C. diz que morava no n.o 5 da Calçada do Desterro. No local há um prédio que os moradores garantem ter quase 100 anos, mas nunca ouviram falar de tal história. De Egas Moniz sim, acenam. Vagamente. Sobre M.C. e os primeiros doentes, o médico deixaria um apelo que talvez faça sentido quando ainda hoje se fala da saúde mental como parente pobre da medicina.

“Constatamos curas e melhorias nos delírios hipocondríacos, melancólicos e outros como ansiedade, mania e agitação psicomotora. Na psiquiatria não há muitas terapêuticas eficazes. Que ao menos este aspecto da nossa orientação venha a merecer a atenção dos que se interessam pelo progresso deste ramo da medicina.”