Uma pirâmide humana dá início ao espectáculo, imediatamente antes de cair o pano e de se ouvirem os aplausos, que vão soar durante quase meia hora. É pelo fim que começa este “Morceau de Bravoure”, uma criação da plataforma de artistas Cão Solteiro com a Companhia Nacional de Bailado (CNB), que se estreia hoje no Teatro Camões, em Lisboa.
Isolar os agradecimentos, tratá-los como uma coreografia, a da última cena, revelando uma transversalidade a todas as artes de palco – os pontos de partida desta performance, que tem como objectivo tratar “a relação entre o público que se senta na plateia e as pessoas que estão em cena, neste caso bailarinos e actores, essencialmente sobre a relação que se estabelece entre estes dois grupos e que aqui se estabelece quando já não há mais nada para apresentar”, explica Paula Sá Nogueira, da Cão Solteiro.
Duas entidades colocadas num contexto em que os aplausos não cessam e levam os intervenientes do espectáculo a devolver esse reconhecimento, sob várias formas de agradecimento. “Como esses aplausos não param, eles vêem-se obrigados a arranjar soluções para resolver esta situação. E essas soluções vão desde fazer um discurso a um encore”, acrescenta André Godinho, co-criador do projecto. Mas tudo o que fazem, em vez de conseguir contentar o público o suficiente para que o pano não se volte a abrir, acaba por gerar novos aplausos e pedidos por mais. “Esses ‘morceaux de bravoure’ [termo que, na dança clássica, designa um momento de execução virtuosa] que eles fazem puxam mais as palmas, acentuando este ciclo.”
Tal como noutros espectáculos da Cão Solteiro, também neste há a preocupação de abrir tantas leituras quanto possível, permitindo ao espectador construir a ficção que entender. Apesar disso, na criação de “Morceau de Bravoure” foram usados alguns códigos que possibilitam ao público reconhecer símbolos de cada uma das artes levadas ao palco: da nomeação de grandes actores do teatro e do cinema, dramaturgos e vultos da literatura, até ao musical que invoca referências da pop e do rock, passando por movimentos de clássicos do bailado.
Conceito “Nas nossas últimas criações, os actores não vêm agradecer, no final, as palmas”, refere André Godinho. O momento para que essa prática desse origem a algo maior aconteceu a partir do convite da CNB para uma produção conjunta. “Começámos a pensar o que poderíamos fazer com uma companhia de bailado e havia já esta ideia de, um dia, fazermos um espectáculo só sobre os agradecimentos. No ballet, por exemplo, os agradecimentos são muito codificados, existe um sistema de hierarquias. Pareceu-nos que isso seria um bom ponto de partida para fazer um espectáculo.”
Rui Lopes Graça ficou encarregado de coreografar este conceito, para “o projecto mais desafiante e difícil” para si até à data. Utilizou citações coreográficas conhecidas do público, que servissem simultaneamente como referências e o próprio propósito do espectáculo. “Por isso, começa-se por um código que é muito comum, que é o código clássico, uma dança russa do ‘Quebra-Nozes’. Aparece também um bocado da música das ‘Águas Primaveris’, mas algo invertido, porque é cantado, e na versão dançada é apenas orquestral. A partir do musical começa a ficar caótico e cada um a ir para seu lado, mas também as referências são sempre citações. Criei sempre a partir de citações de géneros de dança.” Para isso, teve de pesquisar e estudar géneros coreográficos e depois adaptá-los ao conceito do espectáculo.
Se para Rui Lopes Graça este é um tipo de produção diferente das que costuma fazer, para a Cão Solteiro, começar com um aspecto isolado não é novidade. A companhia já trabalhou noutras criações em que a cenografia ou a música eram peças centrais, à volta das quais se desenhava o todo mais abrangente. “Às vezes, as ideias são mínimas, e aqui começa com um espectáculo onde o centro são os aplausos – um mecanismo que está fora daquilo que é um espectáculo – e depois há que construir tudo à volta, uma malha que segura esta ideia e a potencia.”
Começaram a trabalhar neste projecto ainda durante o Verão. No palco materializa-se num conjunto composto por 25 elementos, entre actores e bailarinos. Teatro, dança e música cruzam-se e conjugam-se em “Morceau de Bravoure”, numa performance que é também uma ode às várias artes de palco e que é, ela própria, um sonoro aplauso ao mundo do espectáculo.