As expectativas, os sonhos, as esperanças e ilusões dificilmente sobrevivem intactas ao confronto com a realidade, às restrições impostas pela vida e pelas circunstâncias, e rapidamente se transformam em frustrações, amarguras e desilusões. Se a isso tudo se juntar um contexto de depressão económica, temos um retrato muito próximo do presente. Mas “O Jardim Zoológico de Cristal”, de Tennessee Williams – em cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, a partir de hoje –, recua até à América dos anos 30 do século XX.
É antes de mais, e como diz a personagem que também é narrador, Tom Wingfield, uma peça de memórias no cenário do sul dos EUA, em plena Grande Depressão, ao mesmo tempo que a Europa se prepara para tempos de conflito, com a Guerra Civil Espanhola a tomar a dianteira. São as notícias que chegam de fora ao mundo circunscrito de Tom (interpretado por Pedro Lacerda), jovem poeta que se refugia no cinema, na literatura e no álcool para suportar o trabalho num armazém de calçado que é o garante do sustento da mãe, Amanda Wingfield (Cucha Carvalheiro), e da irmã, Laura Wingfield (Inês Pereira). Preso a essa obrigação, Tom vive com o permanente desejo de partir, como o seu pai – figura omnipresente na peça – fizera anos antes, e de descobrir o que existe para lá de um quotidiano do qual procura alhear-se.
De uma maneira ou de outra, todos se sentem presos a um círculo refém do passado e condicionado pelo medo do futuro. Laura, a irmã tímida e coxa, sem perspectivas de uma carreira ou de um casamento, esconde-se no mundo íntimo da sua colecção de pequenas figuras de cristal; Amanda, a mãe, vive obcecada com o que poderá ser o futuro dos filhos, ao mesmo tempo que recorda o seu próprio passado, cheio de falsos brilhos e escolhas lamentadas. A fuga para todos, aos olhos de Amanda, pelo menos, é conseguir casar Laura, uma possibilidade que vê desenhar-se no convite para jantar a um dos colegas de trabalho de Tom: Jim O’Connor (João Vicente), jovem empreendedor focado em construir um futuro de sucesso aproveitando as oportunidades de progresso americanas.
O jantar ditará o desfecho da história daquela que é considerada a mais autobiográfica das peças de Tennessee Williams e que foi o seu primeiro grande êxito comercial enquanto dramaturgo. Estreada em 1944, em Chicago, a versão que chega ao São Luiz conta com encenação de Sandra Faleiro, depois do convite feito por Cucha Carvalheiro. “Já tinha trabalhado este texto como actriz, a Cucha fez-me este convite e aceitei porque gosto muito da obra.” Sandra Faleiro interpretou Laura quando tinha 23 anos, a mesma idade da personagem criada pelo dramaturgo e escritor americano. Desse tempo, em que desempenhou o papel no Teatro Nacional, conserva uma memória “abstracta”, resultado dos anos passados e do facto de, à época, estar dentro do espectáculo interpretando uma das personagens. Por isso, a preocupação como encenadora para esta peça foi “escutar o texto”: “Ouvir o que ele me traz, o que me dá e que imagens me surgem.” E a partir daí contar a história, num processo que se foi desenvolvendo de forma delicada e lenta.
Com algumas interrupções desde que arrancaram, em Abril, os trabalhos começaram de forma consistente a 23 de Outubro. Porém, o intervalo acabou por trazer mais benefícios do que desvantagens. “Foi fantástico porque permitiu à equipa distanciar-se do espectáculo, e isso é sempre bom. Adorei este processo também por causa disso”, explica a encenadora.
Sandra lembra-nos que o mundo parece irremediavelmente preso a circunstâncias que tornam esta obra sempre actual: “Esta peça é um clássico, fala da condição humana. Há sempre estas questões na vida das pessoas. Agora estamos numa época em que é mais evidente, mas a depressão existiu sempre e continuará a existir.”
“O Jardim Zoológico de Cristal” é uma produção do São Luiz Teatro Municipal em parceria com a Causas Comuns e está em cena até ao próximo dia 22.