Retornar. 40 anos de histórias privadas aos olhos de todos

Retornar. 40 anos de histórias privadas aos olhos de todos


A exposição “Retornar – Traços de Memória” inaugurou ontem em Lisboa e é ponto de partida para recordar histórias com 40 anos e contar muitas outras que ficaram por revelar.


Há uma frase do músico Pedro Coquenão, o homem dos Batida, inscrita num dos contentores instalados junto ao Padrão dos Descobrimentos que ressoa na memória de Elsa Peralta. “Não há preto, não há branco, não há mulato, há pobre e rico… se tivermos de falar só durante cinco segundos.” Mas a frase – uma entre as muitas retiradas de entrevistas realizadas nos últimos anos a pessoas que vieram das ex-colónias para Portugal em 1975, há 40 anos, que estão também nessa instalação – não consegue resumir uma história que é tão longa quanto diversa. A das vidas dos que fugiram com a queda do império colonial e das guerras civis e que não cabe no rótulo de “retornado”.

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“Há muitas nuances, muitas diferenças, por isso quero evitar identificar rostos, uma frase, aquilo que é a categoria do retornado, designação com a qual muitos não se identificam. Quero mostrar que há gente de carne e osso”, sublinha Elsa Peralta, comissária da exposição “Retornar – Traços de Memória”, que inaugurou ontem na Galeria Avenida da Índia, em Lisboa, e que assinala o retorno das ex-colónias portuguesas em África.

Organizada pela EGEAC, a mostra baseia–se na investigação académica de Elsa Peralta e no diálogo com o trabalho de artistas como Manuel Santos Maia, com o foco na experiência desses acontecimentos marcantes. “Temos uma relação muito comemoracionista, celebratória e orgulhosa com o nosso império. A minha ideia não é destruir esses mitos, é torná-los mais complexos e problematizá-los. Decidi ir às pessoas que viveram na pele o fim desse império e perceber o que são as memórias, muitas vezes traumáticas, dessa fase e como isso está também na convivência privada na casa delas, no silêncio daquilo de que não se fala, como a guerra, que é um tabu. Temos um passado que não está enterrado, mas que também não é falado.”

Histórias

Da instalação que o ateliê Silva Designers criou junto ao Padrão dos Descobrimentos a partir da fotografia que Alfredo Cunha tirou em 1975, parte-se para os testemunhos individuais, no interior dos contentores que a compõem. Já na galeria, encontramo-los ampliados em 12 retratos de Bruno Simões Castanheira acompanhados pela gravação áudio das impressões e relatos que esses rostos carregam. A mostra inclui também imagens da época e de autores como Manuel Santos Maia, objectos pessoais, documentos de arquivos históricos e objectos pessoais. Peças que contribuem para uma leitura mais plural e menos previsível. “Este passado vai passando também para os filhos e netos e eles, sem terem vivido, têm uma memória dos seus pais”, disse Elsa Peralta. 

É o caso de Bruno Góis, que faz parte da equipa de investigação da comissária da exposição. “Estava muito interessado, quer academicamente, quer a nível pessoal, no estudo da colonização antiga, porque sou descendente de pessoas que foram para a colonização angolana no final do século xix, gente que foi da Madeira, num projecto do Estado, para colonizar o Sul de Angola. E também tinha o interesse do estudo da colonização e do imperialismo.” Admite que por vezes o processo de estudar um tema ao qual tem uma ligação pessoal foi doloroso e acredita que durante muito tempo o assunto não foi tratado por ser uma ferida. “Estamos a articular o trabalho que já existia nesta matéria, mas a dar um passo de viragem, porque queremos destruir os mitos sobre a figura típica do retornado.

Os perfis são variados, as pessoas vieram em diferentes idades, eram de géneros diferentes, tinham profissões diferentes”, refere, ao mesmo tempo que lembra que, apesar de “nestas migrações coloniais as pessoas estarem à procura do seu modo de vida e não com uma ideia de missão nacional, esse meio de vida era-lhes proporcionado por um quadro político colonial. Ou seja, para os camponeses terem terra alguém tinha sido expulso da mesma terra nas guerras do século xix. Tudo isto está interligado.” Mas também aí há muitas matizes e a questão ultrapassa muitas vezes a divisão racial. “Contactei com pessoas que, sendo mestiças, se consideram absolutamente portuguesas, outras brancas de olhos claros que dizem ‘a minha terra era aquela’.”

Pré-conceitos

O mesmo acontece com a ideia generalizada de todos os retornados estarem à parte do processo político e de libertação das ex-colónias. “Entrevistámos uma pessoa que ficou sempre em Angola e o irmão era do MPLA. Muitos participavam nos movimentos de libertação nacional, ou pelo menos quando começou a guerra civil havia muita pressão para fazerem parte de uns ou de outros. Às vezes a escolha seria mais ideológica, noutras mais de ocasião. Outros ainda não tinham qualquer ligação política.”

Os que não vieram sequer ou os que partiram para países diferentes são outra parte da história, que ficará para os quatro anos que ainda restam do projecto de investigação. De momento tenta-se trazer para o debate público um tema que tem sido de certa forma tabu. “Há um peso muito grande. Estamos a falar de um momento histórico que foi difícil”, salienta Elsa Peralta, que destaca os campos artísticos no trabalho da reflexão, como o livro de Isabel Figueiredo “Caderno de Memórias Coloniais”, “O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso, o filme “Tabu”, de Miguel Gomes, ou o trabalho do Manuel Santos Maia, que apresenta na exposição uma instalação feita com objectos familiares e pessoais. “Do ponto de vista institucional é a primeira vez que um organismo público patrocina uma discussão sobre esta matéria.” 

A exposição, patente até 29 de Fevereiro de 2016, contempla visitas guiadas e comentadas e uma série de iniciativas paralelas, como debates e conversas, uma performance de Joana Craveiro e um espectáculo de André Amálio, noTeatroSão Luiz.