Johanna Schwartz. “Nunca ninguém vai calar a música do Mali”

Johanna Schwartz. “Nunca ninguém vai calar a música do Mali”


Hoje é dia de “TheyWill Have To Kill Us First” noDoclisboa, documentário sobre o exílio dos músicos do norte do Mali.  Falámos com a realizadora.


A história deste filme começa em 2012, quando grupos de extremistas islâmicos ocupam o norte do Mali e rapidamente passam a controlar o território. Uma das primeiras decisões dos jihadistas é banir todas as formas de expressão musical, seja escrevê-la, gravá-la ou reproduzi-la. Os músicos de cidades como Kidal, Gao ou Timbuktu fogem para o sul à procura de refúgio e de lugares onde possam continuar a tocar e a compor. É nesse ambiente de exílio que decidem suspender o Festival no_Deserto, evento que anualmente leva milhares de pessoas ao Mali para escutar aquela música que só ali existe. Johanna Schwartz também fez a viagem, a partir do Reino Unido, mas para conhecer estes músicos que, apesar do medo, insistem em manter viva uma expressão criativa única, através da Caravana do Deserto, uma espécie de festival itinerante que insiste em cantar para o Mali. “They Will Have To Kill_Us First” mostra-nos um país desafinado, mas sobretudo revela histórias notáveis de sobrevivência. Passa hoje no_Doclisboa, às 18h45, no Cinema São Jorge.

 

Porque fez este documentário, como é que aconteceu?

Estava a planear uma viagem ao Mali para ver o famoso Festival no Deserto e na mesma altura ouvi falar da proibição de toda a expressão musical no país. Nunca imaginei que tal coisa fosse possível em lado nenhum, ainda menos numa terra em que a música é algo tão rico, importante e influente, com uma herança difícil de igualar e sempre com uma cena vibrante. Percebi de imediato que era uma história que o mundo inteiro precisava de conhecer. Depois fiz o que tinha de fazer: meti-me num avião e fui para o Mali.

A música do Mali é tocada e ouvida no mundo inteiro. Qual foi a reacção internacional nessa altura?

Lembro-me de ver referências na comunicação social, mas tenho ideia de que não houve muito barulho à volta da questão. Umas coisas sobre o Mali aqui e ali, em alguns noticiários na televisão e nos jornais.

O facto de muitos dos músicos que aparecem no documentário – e outros – serem famosos e poderem tocar em qualquer parte do mundo não fez com que continuassem as suas vidas fora do país?

Claro que sim, isso aconteceu. Os que tiveram a possibilidade de deixar o Mali fizeram-no, assim que conseguiram. Mas há aqui uma questão importante. Khaira Arby [cantora de Timbuktu] é um bom exemplo disso: ela é reconhecida em todo o mundo pelo seu talento e dá concertos em palcos muito diferentes, mas isso não significa que seja rica e muito menos lhe dá a liberdade que é necessária a quem quer mover-se à vontade pelo mundo. Nada disso. Conseguir um visto é algo muito difícil, mesmo. E em muitos casos é preciso viajar até ao lado ocidental de África para visitar um consulado, no Senegal ou no Gana.

De alguma estranha e triste forma, alguns músicos do Mali acabaram por conseguir ainda mais reconhecimento graças a toda esta tragédia.

Em termos de popularidade face a alguns nomes, talvez sim. Ou até se contabilizarmos as vezes que a palavra “Mali” aparece por aí. Mas isso não representa muito para a vida real das pessoas.
O conflito no Mali tem destruído a cena musical. Os músicos não conseguem ganhar a vida com o seu trabalho e isso é assim desde 2012. Agregado a isto surge o enorme problema em volta de infra–estruturas e negócios associados aos músicos. Os estúdios, as estações de rádio, a venda de instrumentos e de equipamento, tudo isso está parado e implica um enorme prejuízo para a economia. Sobretudo, representa uma tragédia humana. Mesmo que tudo possa voltar ao normal, isso vai demorar muito a acontecer._Ainda assim, espero que este filme ajude não só a resolver o problema, de alguma maneira, mas que também leve alguns nomes até às pessoas que ainda não conhecemos. Devíamos todos cantar o_Mali, sempre. Músicos destes não há em lado nenhum a não ser naquele país.

Os Songhoy Blues são o maior exemplo de descoberta de “They Will Have to Kill Us First”.

Os Songhoy Blues apareceram quando os músicos que fazem parte da banda se conheceram em Bamako, a capital do país, que fica no sul._Estavam por lá exilados durante o conflito e decidiram formar uma banda para expressar o que pensavam e sentiam sobre tudo o que estava a acontecer, para tentar lutar contra a absurda morte musical do país. Entretanto é o que se vê, são um dos nomes mais contagiantes da música do Mali. Em disco e ao vivo, estes tipos são inacreditáveis.

Além dos músicos, que são os que primeiro sofrem com tudo isto, como tem a população do Mali vivido esta questão da música?

É difícil separar a população do Mali entre músicos e não músicos. Porque é difícil encontrar alguém naquele país que não toque um instrumento ou que não saiba cantar. Porque as próprias pessoas dão por si no meio da música desde cedo, nem têm memória de ser de outra maneira. Quando se diz que a música é uma das fundações da cultura do Mali é a este nível que nos referimos, algo completamente instintivo e impossível de ignorar. Como é que as pessoas têm vivido tudo isto? Com uma enorme tristeza e, ao mesmo tempo, uma vontade gigante de fazer a música continuar.

Durante a rodagem do documentário, percebeu se era o medo o sentimento principal? Mesmo entre a equipa que rodou o filme?

Entre nós? Bom, não diria que houve medo. Trabalhar em África e em ambientes pouco simpáticos não é novidade e tomámos todas as precauções que tínhamos de tomar. Quanto aos músicos, aí sim, tenho a certeza de que tinham bastante medo do que lhes podia acontecer. Estavam fugidos das suas cidades, muitos deles, para fazerem isso foi porque estavam desesperados. E cancelar o Festival no_Deserto? Só porque tinham mesmo muito medo. Mas isso não basta. Nunca ninguém vai calar a música do Mali.

Qual é a situação actual do país?

Ninguém sabe muito bem o que vai acontecer no futuro mais próximo. Mas uma coisa é certa, os grupos extremistas continuam no país e permanecem activos, ainda que já não controlem as cidades do norte do país. Mas essa é a actualidade, ninguém sabe o que vai acontecer amanhã.

Pensa regressar? Continua a querer trabalhar no_Mali?

Vamos regressar de certeza, não sabemos é quando. Há sempre muito trabalho a fazer num país como o_Mali, é um sítio muito especial, é mesmo. Mas pelo menos uma coisa temos de lá ir fazer: nem que seja uma única projecção deste filme, essa vai ter de se concretizar.