© Manuel de Almeida/Lusa
Cavaco Silva percorreu os salões de Belém com o passo estudado e o corpo cenicamente esticado. Depois de muitos anos de confrontos e decisões, olhou uma vez mais para a frente, ensombrada por aqueles cortinados infindáveis de palácio, e compreendeu que ia para um julgamento.
O brilho das câmaras apontava para o púlpito e para as folhas do discurso que debitaria. As folhas suavam, mas Cavaco não. Iria dizer o que pensava, depois de nomear Passos Coelho, como é “convenção”, na qualidade de candidato vencedor ao lugar de primeiro-ministro. Tarde e a más horas, depois de o ter deixado a fritar dias a fio. Iria dizer o que sentia sobre a esquerda “antieuropeísta” e os riscos de uma descaracterização do PS. Iria fraccionar e excluir.
Elevar ao músculo o “semipresidencialismo”, talvez anunciando o exemplo de Jorge Sampaio. Na sua perspectiva, iria ser coerente e responsável quanto aos entendimentos que salvaguardam o “regime”. Saberia que, na perspectiva da esquerda que se pretende coligar, iria ser sectário, divisionista, discriminatório e paroquial.
Arriscou tudo, ainda assim. Descansou-se para o fim da vida, mas cansou a vida das próximas semanas e meses. Até prova em contrário, não fez um bom serviço ao interesse do país nem a nenhum dos actuais protagonistas. Com tantos anos de caminho, Cavaco não soube diagnosticar o óbvio: os tempos mudaram, a crispação é crescente, o radicalismo de “frente contra frente” é irreversível, a difamação é o método, a raiva é o procedimento, a dramatização está ao rubro.
Os tempos depois do “4 de Outubro” estão perigosos e Cavaco não percebeu. Prolongou o seu equívoco e arrastou danos.
Vejamos.
Ao circunscrever anacronicamente o “arco da governação” sem PCP e BE, Cavaco fechou as últimas pontes entre a coligação vencedora e o PS de António Costa – logo se viu que Ferro Rodrigues seria o primeiro troféu a exibir; seguir-se-á a vitória anunciada na “rejeição” do programa do governo. Fechou ainda as possibilidades de uma qualquer abstenção no grupo parlamentar do PS que deixasse ir Passos e Portas para a discussão do orçamento – a ninguém será agora permitido criar rupturas com a experimentação política que, legitimamente, vai na cabeça de António Costa.
Com isso, Cavaco foi letal para Passos Coelho. Reduziu-lhe a margem (já de si escassa) de manobra na constituição do governo, que passou a ser, em definitivo, uma recomposição do anterior e um acerto de (in)disponibilidades. Mas não ajudou em nada António Costa, que passou a confrontar-se com interlocutores ainda mais empenhados, depois de excluídos pelo PR, em fazer vingar as suas teses nos “compromissos” políticos e técnicos para um futuro governo. E também não sei se ajudou PCP e BE que, uma vez no poder, terão sempre de superar o anátema de uma inclusão feita para ser muleta de um PS em reconstrução.
Cavaco não disse que não empossaria António Costa com a esquerda à sua esquerda. Se o fizer, terá de o justificar – o que era escusado. Se não quiser justificar, deveria assumir o seu discurso e fazer o seu governo, tendo em conta a sua visão dos “resultados eleitorais”: com “senadores” e “tecnocratas” próximos ou filiados no PSD, PS e CDS. Um governo que assegurasse votos da bancada do PS e aguentasse sem restrições o país até às eleições de 2016. Pois sim, seja o que for que tenhamos até ao fim do ano, só voltaremos a ter paz quando o povo regressar novamente às urnas. Talvez isto Cavaco tenha percebido. Mas já não será com ele…
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira