Diz uma história que se dessem um número infinito de máquinas de escrever a um número infinito de macacos, com um tempo infinito de trabalho, a certa altura os símios escreveriam as obras completas de William Shakespeare. Sejamos justos: do ponto de vista estilístico e literário, esta biografia equivale ao trabalho de três macacos durante cinco minutos. No entanto, é um objecto muito mas mesmo muito interessante.
A vida de Marita Lorenz é fascinante. Se dez por cento do que ela conta é verdade, estamos perante um testemunho gigantesco, mesmo que escrito em ritmo de listagem de supermercado.
Vejamos, Marita nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, esteve num campo de concentração, foi violada aos sete anos de idade por um militar dos EUA, conheceu Fidel Castro, de quem se tornou amante, teve um filho dele, espiou para a CIA durante esse tempo, envolveu-se na Baía dos Porcos e nas operações contra o regime revolucionário de Havana, conheceu os homens envolvidos no assassínio de John F. Kennedy, foi amante de um ditador da Venezuela, de quem teve uma filha, dormiu com metade da máfia e da polícia enquanto trabalhava para o FBI, espiou diplomatas soviéticos, colaborou anos com os homens que foram apanhados no Watergate, denunciou actividades da CIA em comissões do Congresso dos EUA, esteve para ir para Angola conspirar contra os cubanos e Agostinho Neto e, claro, tentou assassinar Fidel Castro.
A descrição da tentativa de matar o líder da revolução cubana tem o tom de todo o livro: Marieta vai a Cuba com dois comprimidos para envenenar Fidel; por uma questão de receio, guarda os comprimidos num boião de maquilhagem; os ditos cujos dissolvem-se; em vez de matar Fidel – maquilhando-o? -, ela garante que não conseguiu porque o amava muito.
Obviamente, Marita Lorenz não é a criatura ingénua e estúpida que nos quer fazer passar na sua biografia. No livro, ela é uma espécie de freira ingénua que passa o tempo a ser levada para a cama por toda a gente, ao mesmo tempo que a seu lado, como se estivesse de visita com um bando de escuteiras tontas, se passam a maioria das operações sujas da Guerra Fria.
Grande parte das passagens não são críveis, como quando ela nos garante que, como amante de Fidel, passou a entregar papéis que recolhia no quarto dele à CIA e a libertar chefes da máfia presos pelos revolucionários imitando a assinatura de Castro, tudo para que não a chateassem e para proteger Fidel (sic).
Parece relativamente claro que, do início até agora, Marita e, eventualmente, a mãe e o pai estiveram envolvidos no mundo da espionagem.
E quando um espião faz um livro, as páginas não podem ser vistas como o que ele disse, mas sobretudo o que ele quis dizer e por que razão o fez.
O exemplo clássico disso foi a célebre biografia do espião soviético que chefiou a contra-espionagem britânica, Kim Philby: nas cerca de 300 páginas de “My Silent War” não se descobre uma única operação de espionagem soviética relevante. Algumas bem sangrentas, como a entrega aos comunistas albaneses dos resistentes monárquicos, lançados de pára-quedas com apoio dos serviços secretos britânicos. Philby escreveu um livro brilhante que nos faz entender a razão por que muitos comunistas aceitaram participar como “agentes” na luta política. Percebe-se a figura de “Agente de Moscovo” (usando o título do livro de Alain Brossat) que Philby compartilhou com milhares de homens, alguns, como Richard Sorge e Leopold Trepper, tão notáveis quanto ele.
Como escrevia Brecht num poema da época: “Quem luta pelo comunismo/ Deve saber lutar e não lutar/ Dizer a verdade e não dizer a verdade/ Prestar serviços e recusar serviços/ Ter fé e não ter fé/ Expor-se ao perigo e evitá-lo/ Ser reconhecido e não ser reconhecido/ Quem luta pelo comunismo/ Só tem uma verdade:/ A de lutar pelo comunismo”
Entre Marita e Philby há muitas diferenças de estilo de escrita, encontram-se em lados contrários da barricada, mas não deixam de ser dois espiões a contar memórias com os cuidados daqueles que viveram na sombra.
Marita Lorenz tem uma vida que deu pelo menos dois filmes – é pena que não tenha dado uma autobiografia melhor. Umas das passagens mais deliciosas, para perceber o tom da obra, é quando a espia compara a prestação sexual de Fidel Castro com um ditador da Venezuela, o general Marcos Pérez Jiménez, de quem teve um filha e com quem provavelmente se envolveu a mando da CIA: “O sexo com ele não foi maravilhoso, não era comparável com o sexo com Fidel. Marcos não era um bom amante, era egoísta, e as relações sexuais pareciam ser para ele apenas uma etapa a cumprir, não algo a que se entregar para desfrutar sem pensar no tempo. Aquilo de que realmente gostava era de abraços.”
Como a própria Marita Lorenz confessa, foi uma mulher sozinha num mundo de homens, usando as armas que tinha mais à mão: “A única coisa que posso dizer é que nesse tempo era estúpida, rebelde e insolente. Agora durmo com o meu cão.” E conclui: “Olho para trás e também vejo claramente que o sexo foi uma das minhas armas. Muita gente quis usar-me para isso e por vezes consenti-o, mas eu também podia usá-lo e fazia-os esforçarem-se. Tivera de me fortalecer sozinha. Soube, desde que comecei a trabalhar (…) que estava num mundo de homens. Naquele tempo não havia outras mulheres operacionais. Só uma vez por outra contratavam alguma mulher para levar a cabo uma missão específica, para que fizesse de secretária ou espiasse, embora nunca encontrasse uma amiga.”
A história desta mulher é fascinante. Fez o mais importante: viveu-a. Agora outras mulheres e homens deviam escrevê-la.