Tomás passou para o terceiro ano e orgulha-se de ser o melhor aluno da turma a Matemática. “É a minha disciplina preferida”, atira sem pensar duas vezes. “E antes eu até era preguiçoso. Num teste nem estudei e tive 97 ou 98%”, confessa, orgulhoso da sua façanha.
A sua vida em Casal dos Ferreiros, uma aldeia perto de Figueiró dos Vinhos, é calma. Tomás vive com a mãe, o seu primeiro amor, e a cadela Nikita. Aos nove anos, não permite que o facto de ter nascido com uma malformação na mão direita se intrometa no seu caminho. Estuda (pouco) como qualquer criança, brinca (muito) como qualquer outra da sua idade. Entra facilmente no clube dos mais reguilas. Agora, com uma prótese impressa em três dimensões pelos investigadores da Universidade de Coimbra, é o líder das brincadeiras.
Mas no início não foi fácil. Sara Paiva, a mãe de Tomás, conta que durante a gravidez nunca se soube que a criança nasceria com esta condição numa das mãos. “Quando tive o menino, eles levaram-no. Depois demoraram muito tempo a trazê-lo para perto de mim. Tinham medo que eu o rejeitasse”, desabafa. Enganaram-se redondamente, Sara não é mulher que vire a cara à luta: “Explicaram-me que ele tinha um problema na mão, foram até bastante directos. Eu respondi que queria o meu filho, senão não o tinha tido.”
Tomás cresceu e a sua personalidade traquinas veio ao de cima. “Já foi muito envergonhado e tinha muita tendência para esconder a mão debaixo da camisola”, lembra Sara. Mas a mãe sempre lutou para que o filho não se sentisse diminuído: “Eu é que lhe estava sempre a dizer para mostrar a mão direita. Não tinha de ter medo de nada.” E Sara conseguiu atingir o seu objectivo: hoje, Tomás é uma criança feliz.
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palavra “preconceito” não faz parte do seu dicionário. Ele é igual a todos, todos são iguais a Tomás. Mas, há um ano, a vida mudou. Uma rapariga de uma associação que presta apoio a várias famílias, incluindo a de Tomás, contou o caso ao namorado, que trabalha na Universidade de Coimbra. O rapaz sabia com quem devia falar. A história rapidamente chegou aos investigadores do Instituto de Sistemas e Robótica (ISR), que começaram a trabalhar com a criança e lhe fizeram uma prótese. “Antes de conhecer o Tomás, já tínhamos feito alguma investigação neste ramo”, explica Mahmoud Tavakoli, o investigador que coordena o projecto, acrescentando que “já tinha conhecimento de uma comunidade internacional chamada E-Nable que tem o objectivo de ajudar pessoas com deficiência, especialmente em casos que envolvam as mãos.”
Foi através desta plataforma open source que os investigadores construíram a primeira mão à medida de Tomás. No final de 2014, puseram mãos à obra. Usaram um modelo já existente na E-Nable e depois adaptaram-no ao caso concreto. Em Fevereiro deste ano, Tomás teve a sua primeira prótese. “Eu assustei-me quando a vi”, afirma Sara enquanto solta uma gargalhada. “Era toda preta e eu não entendi porque a tinham feito assim”. Ao perguntar aos investigadores, recebeu uma resposta no mínimo caricata: “Disseram-me que a mão era tal e qual o que o Tomás tinha pedido. Ele disse que a queria toda preta por causa de uns desenhos animados. Eu até sabia disso, mas nunca pensei que eles fossem na conversa!”, conta, sem conseguir esconder um sorriso.
A mão do Iron Man
Antes de saber que havia a hipótese de ter uma prótese desenvolvida pela Universidade de Coimbra, “a família queria comprar uma mão para o Tomás, numa ideia que lhes poderia custar cerca de oito mil euros”, explica Mahmoud Tavakoli. A versão desenvolvida pelos investigadores teve um custo de 70 euros e está em constante afinação porque “o Tomás ainda é uma criança e está sempre a crescer”. Para ter a versão final da prótese, Tomás terá de esperar, no mínimo, até aos 18 anos. “Esta é muito mais indicada para o rapaz”, defende o investigador iraniano que há dez anos se mudou para Coimbra.
Mas a primeira versão da prótese de Tomás não correspondeu às expectativas. “Nem era capaz de pegar num copo”, recorda a criança. Os investigadores concordaram: havia muito a melhorar. “O Tomás esteve sempre muito entusiasmado, mas a primeira mão que lhe entregámos não foi o que ele esperava”, assume Tavakoli. Desde Fevereiro que a equipa em Coimbra trabalhou incansavelmente para adaptar cada vez mais a prótese às necessidades de Tomás. Em Setembro, a segunda prótese ficou pronta. “Esta nova versão é muito melhor, apesar de ainda precisar de algumas afinações”, explica o investigador. Na prótese de Tomás, o movimento da mão é feito através das indicações dadas pelo pulso: “Quando ele dobra o pulso, os dedos também dobram através de fios”, esclarece.
A intenção é ir aproximando a prótese cada vez mais às necessidades de Tomás. “Em vez de usarmos articulações rígidas, tentamos aproximá--las da realidade. Os melhoramentos que fizemos na segunda versão passaram pela parte da palma da mão e do polegar: a posição do dedo no modelo antigo não estava correcta e daí ele não conseguir agarrar correctamente os objectos”, acrescenta o investigador. Tomás vai ficar com esta segunda versão durante um mês e depois os investigadores irão perguntar-lhe quais os problemas que encontrou. Seguem-se as afinações. Daqui a oito ou nove meses já deverá ter outra prótese ainda mais adequada.
Mas, para Tomás, tudo serve para a brincadeira. Até a sua “mão à Iron Man”. A diversão de que mais gosta chama-se “jogar às bruxas” e não é mais do que um jogo da apanhada em que as raparigas são as malvadas senhoras com verrugas, enquanto Tomás é o caçador. O objectivo é óbvio: apanhar as bruxinhas. “A minha mão do Iron Man deita as redes para apanhar as bruxas”, explica. Mas se deita redes não devia ser a mão do Homem-Aranha? “Não, é a do Iron Man. Só que deita as redes”, esclarece sem nos deixar qualquer margem para dúvidas.
Tomás não leva a mão para a escola todos os dias: “É só porque tenho medo de a estragar. Mas já a trouxe algumas vezes para os meus amigos verem e eles disseram que era muito fixe.” Com as raparigas foi diferente: “Tiveram medo de tocar por causa do silicone” e disseram que parecia “um esqueleto”. Nada que aflija ou envergonhe Tomás.
Nas aulas de Educação Física, a mão também fica a descansar. “Costumamos jogar futebol, fazemos rodas e também cambalhotas. Quando jogamos à bola, eu até costumo ir à baliza”, conta. Relembra com um carinho especial uma vez que conseguiu defender uma bola rematada por um colega mais velho: “Era do quarto ano!” Claro que nestes casos não poderia usar a prótese: “Não ponho a mão! Com estas defesas, ainda a partia.”
Um dia na vida de Tomás
Aos dias de semana, Tomás acorda às 7h30 para se preparar para a escola. “É a Nikita que me acorda. Dá-me montes de lambidelas no nariz. É muito engraçada, aquela cadela!”, diz, sem conter o riso. Sábado e domingo, a ordem para ser acordado é dada meia hora mais cedo: “Ao fim-de-semana, o Zig Zag [programa da RTP2 que transmite desenhos animados] começa mais cedo e acaba mais tarde.” Tomás nunca poderia correr o risco de perder os seus bonecos preferidos: “Dá desenhos desde as 7h. Gosto do ‘Whoopsie’ e do ‘Incrível Mundo de Gumball’, mas o que eu quero mesmo ver são os filmes. Os com bonecos e os de realidade. Gosto de todos!”
De segunda a sexta, a avó vai buscá-lo a casa e leva-o à escola. Este ano, a sua sala de aulas é partilhada com alunos do primeiro ano. Tomás não acha grande piada: “No ano passado andava no segundo ano e estávamos na mesma sala com os do quarto. Agora somos o primeiro e o terceiro… não gosto tanto. Preferia que fosse só o terceiro na sala ou então que nos juntassem aos meninos maiores”, desabafa.
O tempo em que teve de se habituar a escrever com a mão esquerda, mesmo que o seu lado dominante fosse outro, já lá vai. “Ele agora já vê as coisas de outra maneira e já tenta fazer com a mão direita quando tem a prótese”, explica a mãe, acrescentando que o Tomás sempre se habituou com a esquerda, “mas tinha tendência para favorecer a mão direita”. Por isso, “ainda hoje a letra dele não é muito bonita”. Com esta segunda versão da prótese que usa actualmente, Tomás já tentou escrever: “Ainda só consigo desenhar um A e malfeito! Ainda não me habituei”, conta. Apesar de não ter uma letra bem desenhada, orgulha-se de já ter conseguido fazer uma cópia. O que não se esquece é do dia em que se enganou a escrever os dias da semana: “O castigo foi escrever cada um 20 vezes. Foi uma folha de alto a baixo!”
Quarta-feira foi dia de teste-diagnóstico de Matemática. No intervalo, Tomás não tem dúvidas de que lhe correu bem, mas já sabe que um exercício está incompleto. “Esqueci-me de pôr lá uma coisa…” O tempo de recreio que ainda resta é para brincar às bruxas. Desta vez, Tomás deixou a prótese na sala, mas corre freneticamente atrás das amigas. O suor corre-lhe pela testa. Depressa chega a hora de voltar às aulas e o resto da manhã é dedicado à Língua Portuguesa. Ao almoço, Tomás traz a prótese, mas não a coloca. Consegue agarrar a faca com a mão direita com a ajuda do seu pequeno polegar. Nota-se claramente que esteve muito tempo a praticar. “Queres que beba água com a mão posta? Consigo segurar bem no copo. Vou mostrar–te”. Não temos nem tempo para dar uma resposta. Rapidamente, Tomás enche um copo com água e leva-o à boca. Espera calmamente que o clique da máquina fotográfica o informe de que o momento foi captado. “Sabes do que eu gosto de comer? Esparguete. E as minhas frutas preferidas são a banana, a manga e esta aqui”, revela enquanto aponta para uma ameixa partida em quatro partes iguais. Continuamos sem dizer nada.
A seguir, Tomás retira a prótese, para espanto dos colegas que partilham a mesma mesa. Levanta-se e vai arrumar o tabuleiro da refeição. “Não consegues segurar com a tua mão nova?”, pergunta um dos colegas. “Ainda tenho alguns problemas”, responde sem hesitar. A verdade é que a nova prótese só está na mão de Tomás há menos de duas semanas e, entre brincadeiras, todo o tempo é pouco para “treinar”.
A sobremesa vai ser mais um jogo das bruxas. “Não queres jogar às escondidas”, pergunta outro amigo. Tomás é peremptório: “Não! Já combinei e vou jogar às bruxas!” Ninguém o demove.
As tardes são passadas em aulas até às 17h30. E durante a semana há ainda tempo para aprender inglês: “Uuuuuui, adoro Inglês! Já sei dizer algumas cores e os números até dez.” Perguntamos se sabe dizer “o meu nome é Tomás”. A resposta é negativa, mas o rapaz não desanima: “Mas sei que em várias línguas o meu nome é Thomas. Sempre igual.”
A mãe vai buscá-lo à escola e mal chegam a Casal dos Ferreiros, a menos de dez minutos de viagem de carro, Tomás pega nos trabalhos de casa: “Quando os há!”, esclarece. “Nem podia ser de outra maneira”, refere Sara, um dos maiores apoios de Tomás nas dúvidas que vão aparecendo nos livros de exercícios.
Assim que está tudo pronto, o caminho é o quarto e as brincadeiras. “Brinco com bonecos. Não gosto de desenhar nem de pintar. O que mais gosto é de pôr plasticina à volta do boneco e fingir que ele tem uma armadura.” Este é o tempo em que a imaginação de Tomás voa até outros mundos bem longe da aldeia em que vive. E os seus sonhos não ficam por aqui: está decidido a cobrar à mãe aquela viagem que ainda está apenas em promessa. “Um dia vou a França visitar o meu tio. Trabalha num restaurante português. A minha mãe prometeu que um dia me levava lá e até já me falou em irmos num carro muito grande com cama e casa de banho.” Uma autocaravana.
Esta é a altura em que perguntamos se estamos a ser chatas. Tomás responde, com um sorriso traquinas: “Não, eu gosto de aparecer!” Quando damos conta, já é ele quem tomou conta da reportagem: “Olha, tenho uma ideia muito gira para uma foto. Vem cá!” E nós vamos.
O futuro está à espera
Tomás ainda não escolheu o que quer ser quando crescer. Os sonhos ainda não apareceram mas, quando decidirem dar um ar da sua graça, nada os vai conseguir parar.
Para a prótese definitiva ainda tem de esperar alguns anos, mas o dinheiro para a comprar já começou a ser amealhado. Amigos da família já levaram a cabo diversas actividades, como concertos, para angariação de fundos a favor do Tomás e até recolheram tampinhas para conseguir somar mais uns euros. “Fizeram isso porque não sabemos quanto pode custar a última prótese. Mas agora fizemos uma paragem porque já temos uma quantia razoável”, explica Sara Paiva. “Se depois de ele ter a prótese final sobrar algum dinheiro, vamos fazer com que reverta para uma instituição de solidariedade”, acrescenta.
Contam com a ajuda de Mahmoud Tavakoli e do resto da equipa do ISR. Tal como esta prótese, as próximas vão sair da Universidade de Coimbra, criadas nas impressoras 3D e cada vez mais parecidas com a realidade. O investigador, que se inspirou em trabalhos publicados na E-Nable, quer retribuir: “Quem cria uma prótese destas, depois pode fazer um relatório. Nós vamos colocar todos os desenhos e modelos deste modelo na plataforma e depois qualquer pessoa pode ver como é e até imprimir.” O objectivo da E-Nable é o mesmo do investigador: fazer com que cada vez mais crianças tenham esta oportunidade.
Para Sara, a maior alegria é ter criado um filho independente e alegre com a vida. “Sou feliz porque sei que ele é feliz.” E Tomás promete continuar a sê–lo. “Eu gosto de ter a mão”, diz num tom sério. A despedida não é fácil. Interrompe um jogo das bruxas para nos dizer adeus: “Já vão embora? Oooh… Voltem sempre que quiserem!”