Howard Jacobson.  “O que teria acontecido se a Europa tivesse Twitter há 80 anos?”

Howard Jacobson. “O que teria acontecido se a Europa tivesse Twitter há 80 anos?”


“J” conta a história de uma tragédia humana que, no futuro, apaga a memória colectiva. O autor fala do livro e do seu papel de “profeta da desgraça”.


Na sexta-feira é publicado em Portugal “J”, o mais recente livro do escritor inglês e título que no ano passado foi finalista do Man Booker Prize. Jacobson situa a história num futuro que não sabemos quando é, a não ser que sucede “ao que aconteceu, se é que aconteceu”, uma tragédia sem nome que mudou o mundo e que obriga a humanidade a viver de forma diferente. Nesta distopia, muita gente desapareceu, novas regras foram impostas e a letra J do título leva a interpretações fáceis – que provavelmente não estão erradas, sobretudo quando falamos de Howard Jacobson. A memória colectiva foi eliminada, mas há uns quantos (poucos) corajosos que se aproximam da verdade.A propósito de “J”, o autor disse “sim senhor, estou disponível” e pediu-nos para enviar-mos algumas perguntas por email. Recebemos estas respostas na volta do correio.

Parece que a história de “J” não acontece num futuro distante, mas sim no presente, ou algo próximo disso. Será?
Não sabia isto até ter começado a escrever “J”, mas parece que não é possível escrever sobre o futuro sem escrever sobre o presente. Mas é claro que já o devia saber. Por que razão é que haveríamos de escrever sobre o amanhã se o hoje não fosse assustador? E quando imaginamos horrores no futuro, são quase sempre criados à imagem dos horrores de hoje.

“J” faz referência a uma tragédia que mudou o mundo. No presente estamos também sempre à beira de algo que pode mudar tudo de repente, não? 
Se alguma coisa houve que o século XX provou é que a catástrofe nunca está longe. Para algumas pessoas, aconteceu; para outras, a fuga aconteceu por pouco. Talvez tenha sido sempre assim – a tragédia está sempre à espera (uma cheia, um incêndio, fome, guerra) e sobrevivemos se tivermos sorte. Quanto à tragédia particular que “J” imagina, sim, receio que algo assim aconteça, porque temos tido provas de que o apetite por ódio que gerou o nazismo, o fascismo ou o Holocausto ainda não foi satisfeito e provavelmente nunca vai ser. A humanidade precisa de ter alguém para detestar. Sim, um país ou um povo em particular pode tentar de alguma maneira compensar pelas terríveis coisas que fez mas, enquanto espécie, repetimos. Vamos continuar a ver pessoas com cartazes em manifestações por toda a Europa a dizer “judeus para a câmara de gás”. Como judeu, desespero quando vejo isto. Mas deveria fazer toda a gente desesperar.

Hoje vive-se a tragédia dos refugiados sírios. Qual a sua opinião?
Compreensivelmente, não sabemos como lidar com esta crise. É demasiado grande para que as nossas imaginações a consigam compreender, grande de mais para que a consigamos resolver. O mais difícil – para os que não são refugiados – é fazer o equilíbrio entre compaixão e bom senso. Não podemos ignorar a desgraça que acompanha estas pessoas, mas não podemos fingir que a presença dos refugiados nos números que vemos não se tornará problemática. A emoção é mais recomendável que a insensibilidade, mas também tem os seus perigos, porque traz promessas que não vão ser cumpridas, expectativas que vão gerar desilusão, e as causas que realmente importam acabam por não ser atendidas. 

Uma das regras da escrita que sempre defendeu é “escrever sobre o que se conhece”. É este o caso? O que sabe de passados terríveis, presentes assustadores ou futuros desconhecidos?
Sobre os “terríveis passados” ou “presentes assustadores”, não me posso referir a eles de forma pessoal. A minha vida, até agora, tem sido confortável. Mas até o mais confortável está a centímetros (às vezes literalmente) do desastre. Quanto ao “futuro desconhecido”, esse pertence a todos. O medo não é propriedade privada de ninguém. “J” tem muito a ver com memória e com as tentativas que a sociedade faz para a extinguir. As memórias chocantes em “J”, que eu assumo com descrições de acontecimentos e que quase penduro nas paredes do romance como se fossem quadros, são propriedade comum. Qualquer um pode mergulhar nelas, vítimas, agressores ou espectadores, e são capazes de tomar conta de nós a qualquer momento. “Nunca esquecer” era uma expressão muito usada depois do Holocausto. No mundo de “J”, isto surge ao contrário: “Nunca recordar.” No lugar da memória está uma desculpa universal. Pedimos desculpa por tudo, as pessoas são educadas para isso. O que, na verdade, quer dizer que não pedimos desculpa por nada.

Os meios de comunicação de massas são referidos no livro entre os responsáveis pelo que aconteceu. É porque acredita de facto que são maus para as pessoas?
Temo pelo papel que as redes sociais possam vir a desempenhar no futuro. O que teria acontecido se a Europa tivesse Twitter há 80 anos? É possível que nos pudesse ter salvo de alguns horrores. As notícias correm depressa dessa maneira. Mas os boatos e os preconceitos em massa também. Para cada onda de compaixão e simpatia há a correspondente dose de intolerância e desprezo. E devemos temer sempre qualquer sociedade em que as pessoas pensem todas da mesma maneira. A argumentação faz parte da vida. Quando as pessoas se juntam para destruir com quem discutem, é o fim. 

No livro usa a expressão “twitternacht”. O que significa? 
Para me referir a ódio e desinformação que se espalham de forma descontrolada e que levam à catástrofe conhecida como “o que aconteceu, se é que aconteceu”. Mas também acontece que, em “J”, quem manda no mundo tem medo das redes sociais e de telemóveis.

Não é utilizador de internet, redes sociais, smartphones?
Uso a internet – até demais –, ainda que não goste muito. Afinal de contas, apesar das vantagens que apresenta, é algo que nos faz perder tempo. Não me chego perto de redes sociais. Um dia vamos arrepender-nos de que esse tipo de coisas tenham sido inventadas. Mas isto é o profeta do Antigo Testamento em mim a falar.

A ideia distópica que criou em “J” está a pedir uma adaptação ao cinema…
Nunca tinha pensado nisso. Todos os escritores que tiveram romances adaptados ao cinema odiaram a experiência. O mais inteligente é deixar que quem faz o filme trate do assunto. Se alguma vez alguém adaptar “J” ao cinema, provavelmente vão querer fazê-lo ao estilo “feel good”. Ora “feel good” não é comigo. 

Algumas críticas têm apontado este livro como a sua obra mais séria. Será?
Fico contente que assim pensem, mas esse não é o tipo de coisas que me preocupa quando escrevo. Nunca sou não sério. Acredito que a função de um romance é entreter, mas isso não é incompatível com seriedade. Claro, este é um romance sobre um desastre no futuro, mas há algo de júbilo nisso. Nietzsche entendia a energia da tragédia, como imaginar o pior desperta os nossos espíritos. Há sempre comédia nos meus romances, é-me impossível escrever de outra forma. Há comédia na linguagem como há na situação e no pensamento, é um dos maiores recursos da linguagem. É liberdade de imaginação, mas não tem de significar leveza. Quem escreve comédia não o faz porque o mundo é divertido, mas sim porque não é. A minha comédia é sempre negra e talvez em “J” esteja mais negra que nunca. À medida que me aproximei do final de “J”, tremi perante o abismo que se abria à minha frente.

A palavra “judeu” nunca aparece no livro, mas é fácil associá-la ao título e à história. Isso foi deliberado, certo?
Não uso a palavra porque evitá-la é como se fosse um jogo, com o leitor e comigo mesmo. Mas também porque depois “do que aconteceu”, a palavra “judeu” já não é usada. É esta a solução final para o problema judeu, não só o desaparecimento das pessoas, mas a própria ideia e memória. Estar livre da palavra é estar livre das pessoas. E “J” é, em parte, a história de como isso não resulta assim tão bem. E é também sobre uma verdade geral: as pessoas não conseguem funcionar sem ter um “outro” que odeiem e que, de alguma forma, os defina.

Este pormenor é apenas um dos que não revela de forma óbvia e há várias coisas que ficam por esclarecer. Não teme que quem lê possa não perceber a história como a imaginou?
Há sempre esse perigo. Como profeta da desgraça, claro que temo o dia em que ninguém vai perceber nada. Mas não nos podemos preocupar com isso. Um romancista não deve ser fácil por princípio, mas também não deve ser difícil. É uma questão de tacto. Mas acredito que um dos prazeres de ler está na luta que se trava com o significado. Quem quer essa coisa horrível que é uma “leitura fácil” não é leitor de todo. Neste “J”, as pessoas querem ler romances baratos até quando estão a matar alguém. E é o que acontece quando se tira seriedade intelectual da sociedade.

Há muito jazz neste livro. É fã?
Fã? Não. Mas gosto de alguma coisa. Fats Waller, por exemplo.