Sandra Duarte Tavares. “Ainda há muitos recantos da língua portuguesa por explorar”

Sandra Duarte Tavares. “Ainda há muitos recantos da língua portuguesa por explorar”


Sabia que o correcto é dizer “ovelha ronhosa” e não “ovelha ranhosa”? Há mais 499 erros comuns para desmistificar.


Mestre em Linguística Portuguesa, Sandra Duarte Tavares quer pôr os portugueses a dominar a própria língua. Conhecida dos ouvintes pelos dois programas de rádio em que colabora – “Jogo da Língua”, na Antena 1, e “Pontapés na Gramática”, na Antena 3 –, a linguista é professora do ensino superior, formadora no Centro de Formação da RTP e ainda consultora do portal Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. “500 Erros Mais Comuns da Língua Portuguesa” é o seu mais recente livro.

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O título fala em 500 erros. Há assim tantos erros comuns?
É verdade. Quando a editora me apresentou o título deste projecto, eu confesso que entrei em pânico. Eu sou professora e ao longo destes 15 anos de ensino fui coleccionando erros dos meus alunos, mas não tinha 500. Não foi fácil. Durante um ano e meio recolhi os erros e trabalhei-os individualmente. Estes são os mais comuns do meu ponto de vista enquanto linguista porque, como sabemos, tudo na vida é relativo. Outro linguista pensará que há outros. 

De um modo geral, considera que os portugueses dominam a língua? Porquê?
Seria bom que a minha resposta fosse “sim”. Gostava de dizer que amamos, respeitamos e dominamos a língua mas, infelizmente, não é o caso. As justificações que vou dar são meras hipóteses. Primeiro, porque lemos menos: a leitura de qualidade contribui, em grande medida, para que possamos fazer um bom uso da língua. Ao ler um livro, eu estou em contacto com palavras e, mesmo que não conheça algumas delas, o contexto vai-me ajudar a conhecer. Inconscientemente, nós incorporamos essas palavras no nosso armazém lexical. Ora, se eu tenho muitas palavras no meu armazém, melhor será a comunicação escrita e oral. Mas nós lemos cada vez menos. Há cada vez mais atractivos digitais e a vida corre a um ritmo alucinante. Outra das hipóteses é não termos o hábito de consultar dicionários, gramáticas e prontuários. Um conselho: sempre que houver uma dúvida, consultem um bom dicionário de referência. Por fim, possivelmente há pouco tempo para praticar a língua nos ensinos básico e secundário.

Os alunos chegam ao ensino superior bem preparados em termos de língua portuguesa?
Chegam com muitas fragilidades linguísticas de vária ordem, não só ortográficas mas também sintácticas, de construção frásica e até de coesão textual. A língua é constituída por vários domínios: a pronúncia, o vocabulário e a sintaxe – que combina as palavras. Quando eu tenho um texto, tenho palavras ligadas entre si e frases que devem ser ligadas por articuladores de discurso. Os alunos que chegam ao superior, muitas vezes, não usam esses articuladores que conferem a tal unidade ao texto. Não chegam bem preparados. 

Deve-se muito ao que falávamos há pouco, falta de leitura e as novas tecnologias?
Sim, passa muito por aí. O livro é preterido e ocupam demasiado tempo a utilizar as novas tecnologias. Estas são algumas das causas, mas gostaria também de salientar que os media têm um papel muito importante. Há profissionais da comunicação que não fazem um bom uso da língua. Quando se vê um erro nos rodapés da televisão, por exemplo, e não se sabe que se trata de um, as pessoas interiorizam. Mais tarde, vão usar como viram, porque essa imagem gráfica fica no léxico mental. Quando nós, linguistas, que temos a missão de corrigir, dizemos “não é ovelha ranhosa, é ovelha ronhosa”, “não é alcoolémia, é alcoolemia”, dizem que não é possível porque a imagem gráfica que têm é a do erro.

Quais são os erros que todos continuamos a cometer?
Há tantos! “Rúbrica”, com acento, é uma palavra que não existe em português. Devemos dizer “rubrica”, sem acento. Outro exemplo: “mandato” de busca ou de captura. O correcto é “mandado”, significa ordem judicial. “Mandato” é o período de tempo em que a pessoa que está no poder fica no cargo. “Reinado” para rei, “mandato” para presidente. Ou ainda “pessoas evacuadas”. O verbo evacuar significa esvaziar: não se esvaziam as pessoas. Esvaziam-se os lugares, por isso devemos dizer: “A aldeia foi evacuada. As pessoas foram retiradas.”

Onde se inspirou para coleccionar estes erros?
Nos meus alunos. De facto, os testes e exames têm alguns erros. Também nos media: artigos de jornal e de revista, rádio e televisão. Costumo também encontrar erros nas ementas dos restaurantes. Quando aparece “cozido” escrito com “s”, eu pergunto se o peixe vem cosido com linha e agulha [risos]. Até no talho, quando vejo escrito “peru” com acento no “u”.

É verdade que a língua portuguesa é complicada de aprender?
Sim, a língua é muito complicada. Tem uma flexão verbal muito complexa. Há vários tempos verbais e não temos só um infinitivo: temos o impessoal, que está nos dicionários – “estudar”, “trabalhar”, “escrever” – e o pessoal: “Vamos à loja para comprarmos o livro.” Ainda por cima, a nossa ortografia não tem uma correspondência unívoca com os sons. Por exemplo: a letra “x” corresponde a quatro sons. 

Sente que os portugueses são interessados em tirar dúvidas?
Sim, querem aprender. Não dominamos a língua, mas há esse interesse. Eu sou consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e, nas respostas que dou às perguntas que são feitas diariamente, quando eu digo “as duas formas são correctas”, a pessoa quer sempre saber qual das duas é a mais correcta. 

Ainda tem muitas dúvidas sobre a língua portuguesa?
Cada vez mais. E ainda bem que assim é! Quanto mais pesquiso, estudo e investigo, mais dúvidas tenho. O português é rico, valioso, complexo e tão apaixonante! Ainda há muitos recantos da língua por explorar. 

Qual é a sua posição sobre o acordo ortográfico? 
O acordo ortográfico é um documento legal que regula apenas os aspectos da escrita. Ortografia significa escrita correcta. O acordo, este documento escrito em 1990, não interfere com os outros domínios da língua, como a sintaxe ou a pronúncia. Se interfere apenas com a escrita, as variedades do português europeu, do português brasileiro e as restantes variedades faladas nos países africanos mantêm a sua identidade linguística. A minha posição é favorável neste sentido. Nós continuamos a dizer “autocarro” e o português do Brasil dirá “ónibus”. Agora, não concordo com todos os aspectos alterados. Se me perguntar se concordo com os nomes dos meses e das estações do ano passarem a escrever-se com minúscula, não concordo. A língua é vaidosa, escrever com maiúscula confere um certo estatuto. A propósito do hífen, há incongruências: cor-de-rosa tem hífen, mas cor de laranja já não tem. Para quem está de fora é fácil apontar o dedo, mas a verdade é que existem algumas incongruências.

Quais as principais vantagens?
Há uma grande vantagem: existe apenas um único documento que representa a língua portuguesa. Antes, nas diversas entidades internacionais, Portugal tinha um e o Brasil tinha outro. Agora temos apenas um documento que regula todos. 

E desvantagens?
Isto é um pau de dois bicos. Continua a haver casos de dupla grafia. Nós, portugueses, dizemos “receção”, não dizemos o “p”, por isso não o escrevemos. Mas o Brasil já diz o “p” e já o escreve. Então, a par do documento oficial, há outro que se chama Vocabulário Comum que tem a lista das palavras que no português europeu são de uma forma e no português do Brasil são de outra. Mas afinal não era tudo igual? Não era para simplificar? 

E quanto aos estrangeirismos? Já usamos o budget e o flyer. Não estamos a perder a identidade? 
Eu acho que é uma batalha perdida. Imagine o que é um conjunto de linguistas tentar levantar o dedo e dizer “não usem flyer porque existe a palavra folheto”. Vão rir-se na nossa cara. Em cada domínio, como a gestão ou a informática, há uma gíria. Deixo um conselho enquanto linguista: sempre que possível, se há termo português, use-se o português. Se existe a palavra “desempenho”, não vou dizer “performance”. Se há “reacção” e “opinião”, não digo “feedback”.