O novo Museu dos Coches já teve mais reclamações nos seus escassos quatro meses de vida do que o antigo museu nacional durante os seus cerca de 20 anos. O desabafo foi feito por uma das pessoas que todos os dias têm de lidar com as situações graves provocadas pelas falhas existentes num edifício público acabado de inaugurar, mas que está fora da lei.
Os problemas são sobretudo de segurança e de acesso a deficientes ou pessoas com necessidades especiais. Apesar de ter sido inaugurado a 22 de Maio deste ano, e aberto ao público no dia seguinte, o edifício não cumpre o regime das acessibilidades (Agosto de 2006) e um cego já ficou com um enorme galo na testa quando bateu com a cabeça num pilar impossível de detectar pela sua bengala (bastão de Hoover), um segurança abriu um pulso quando tropeçou no chão mal pensadoe uma turista americana teve de ser puxada a braços por cima das portas de ferro da casa de banho onde ficou presa.
Estes são apenas alguns dos relatos que fomos ouvindo aqui e ali, da boca de diversos funcionários e utilizadores, mas poderíamos continuar. Muitos constam dos relatórios da Prestibel, a empresa de segurança. Outros ainda vêm descritos no livro de reclamações, mas a percentagem das queixas que lá fica é mínima, desde logo porque uma grande parte dos visitantes, cerca de 90%, são estrangeiros e estão em Portugal apenas de passagem.
Entre as queixas apresentadas no livro de reclamações conta–se, por exemplo, a falta de uma cadeira de rodas. Várias pessoas viram-se obrigadas a cancelar a visita no último minuto por não terem como se deslocar dentro do museu, dada a sua mobilidade reduzida. E houve quem lamentasse o facto de o governo ter gasto tanto dinheiro na obra e não se ter lembrado de incluir no orçamento uns euros para a compra de cadeiras de rodas. Ou mesmo para simples cadeiras. É que se alguém se sentir mal ou estiver cansado, dificilmente poderá sentar-se a meio da visita a não ser no chão, uma vez que também não existem cadeiras disponíveis para este efeito, só as que estão destinadas às funcionárias do museu.
PS pensa, coligação faz O novo Museu dos Coches custou aos cofres do Estado 40 milhões de euros. O plano é do governo de José Sócrates, mais precisamente de Manuel Pinho, então ministro da Economia. Foi ele o grande mentor da obra que, em 2008, acabaria por ser considerada um projecto-âncora da reabilitação da zona de Belém-Ajuda, em Lisboa, com financiamento público assegurado.
O edifício ficou desde o início a cargo do arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, Prémio Pritzker em 2006, em parceria com o português Ricardo Bak Gordon. No entanto, as obras estiveram paradas durante muitos meses e a construção viria a ser retomada e terminada muito mais tarde, pelo executivo de Passos Coelho, aquele que não tem um Ministério da Cultura.
Mas, já em 2012, o arquitecto Homem Gouveia, da Câmara Municipal de Lisboa, em conjunto com Clara Mineiro, da DGCP – Direcção-Geral do Património Cultural, fizeram um relatório demolidor em relação às acessibilidades, aconselhando os arquitectos a fazerem uma série de alterações que nunca foram feitas.
A lei e a Responsabilidade O actual secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, diz que entre 2011 e 2014 “foram investidos mais de 100 milhões de euros na reabilitação do património cultural”. Mas não em rampas de acesso ou em cadeiras de rodas, ou em pisos nos quais seja fácil andar sem sobressaltos. O do Museu dos Coches é bonito, mas as pessoas tropeçam– o segurança que abriu o pulso que o diga. E não foi o único. É assim na zona exterior e no rés-do-chão.
A americana também não ganhou para o susto, o cego viu estrelas, os operadores turísticos não querem levar lá turistas, até pelo tempo de espera no arranque dos elevadores, programados para carregar 70 pessoas em cada viagem e sem botão para fechar portas. Se estiverem apenas três, é esperar que entrem os restantes 67 imaginários. A verdade é que o Museu dos Coches abriu. Onde estava a ASAE?
Se o Museu dos Coches fosse um barómetro da democracia, e a avaliar pelo que diz a lei, esta estaria pelas ruas da amargura. Pior: se a lei fosse cumprida, e por causa do regime das acessibilidades, o Estado seria obrigado a pagar avultadas coimas.
A lei diz que a “promoção da acessibilidade” é “um elemento fundamental na qualidade de vida das pessoas” e “um meio imprescindível” para o exercício dos direitos de uma sociedade democrática e para o aprofundamento da solidariedade no Estado social de direito.
E que o Estado deve garantir e assegurar os direitos das pessoas com necessidades especiais, ou seja, pessoas com mobilidade condicionada, em cadeiras de rodas, incapazes de andar ou de percorrer grandes distâncias, com dificuldades sensoriais, como os cegos ou surdos, e ainda grávidas, crianças e idosos. Por exemplo.
A legislação de 1997 foi alterada em 2006 para “proporcionar às pessoas com mobilidade condicionada condições iguais às das restantes pessoas”, lê-se no decreto-lei. Surge um novo diploma porque o que existe é “insuficiente” pela “sua fraca eficácia sancionatória, que impunha, em larga medida, coimas de baixo valor, que fez que persistissem na sociedade portuguesa as desigualdades impostas pela existência de barreiras urbanísticas e arquitectónicas”. A falta de “fiscalização” foi outro problema que levou à mudança. No entanto, nenhuma destas questões parece ter tido peso no edifício inaugurado no primeiro semestre de 2015, nove anos depois.
A legislação em vigor prevê a responsabilização disciplinar de “funcionários e agentes da administração pública central, regional e local e dos institutos […] que deixarem de participar infracções”. O artigo 16.o fala ainda em “responsabilidade contra-ordenacional” para, por exemplo, a “concepção ou elaboração de operações urbanísticas em desconformidade com os requisitos técnicos estabelecidos no decreto-lei” ou a “emissão de licença ou autorização de funcionamento de estabelecimentos que não cumpram as normas técnicas constantes do anexo ao presente decreto-lei”. Está preto no branco: “Incorrem em responsabilidade contra-ordenacional os agentes que tenham contribuído, por acção ou omissão, para a verificação dos factos descritos no artigo anterior, designadamente o projectista, o director técnico ou o dono da obra”, diz o artigo 17.o.
Quanto às coimas, os valores podem ir de 250 a 3740,98 ou de 500 a 44 891,81, dependendo de ser pessoa singular ou colectiva. Em caso de negligência, os montantes máximos previstos são, respectivamente, de 1870,49 e 22 445,91 euros.