“Se não fosses tu, nada disto existia, porque é que não há-de aparecer o teu nome?” Sandrine lá aceita aparecer nestas linhas. Afinal, foi por causa dela que os pais tomaram uma decisão que a muitos poderia parecer arriscada: largar empregos estáveis em França e regressar a Portugal nos anos 1980 para ver a filha crescer “em casa”. Ainda a mandaram primeiro, com oito anos, mas não deu para aguentar a distância. Faz 30 anos que se instalaram na terra de Isaac, Pousafoles do Bispo, no Sabugal, e abriram o Café Central, mais tarde também restaurante. Durante anos, a casa esteve sempre cheia, até as pessoas começarem aos poucos a desaparecer e a crise arrumar de vez o assunto.
Há um ano deixaram de servir refeições diariamente para passar ao regime de restaurante só para grupos e por reserva.“Como é que dá para ter o pão fresco, a carne e as sobremesas, e depois não aparecer ninguém?”
Se a paisagem é bonita, o interior do país revela-se desolador nestas perguntas. Damos com o lugar por acaso, na demanda por cafés centrais. O nome chama a atenção, se calhar por estarmos contaminados com a leitura de “O Crime do Padre Amaro”, clássico que vale sempre a pena revisitar entre os mergulhos de Verão. Como é bom de ver, a aldeia não tem nada de pecaminoso, antes pelo contrário. O acontecimento que atrai mais pessoas são as cerimónias da Páscoa, onde não há bailaricos mas o ritual solene do Senhor dos Passos. De resto, em pleno Agosto não se vê ninguém nas ruas, embora nos garantam que há alguns emigrantes e filhos da terra, como Sandrine, que apesar de não viverem ali voltam sempre para as férias grandes.
O Texas Estamos no concelho do Sabugal, um dos mais envelhecidos do país. Isaac e Ana, na casa dos 60, são das pessoas mais novas da terra. Foram para França com os pais nos anos 1960. Quando Ana regressou em 1984 de Clermont–Ferrand, cidade com 100 mil habitantes, pensou que a terra do marido era um Texas. O que dizer agora. Ainda assim, o trabalho era tanto que nem dava para irem a França passar o Natal com a família, o que hoje parecem coisas de outra vida. “Só temos isto aberto para não estarmos isolados”, diz Ana. “Vendia 80 euros em pacotes de batata frita por semana, e hoje nem num ano.”
O declínio tem sido contínuo. “Quando era miúdo, só na minha rua havia 63 garotos dos cinco aos dez anos”, conta Isaac, que há números que nunca se esquecem. Pousafoles tinha duas escolas, hoje só tem uma criança e um bebé. Havia cinco casas de ordenha e hoje não se vê um animal.
Quando regressaram de França, já não havia tanta gente como nos anos 1950, mas havia trabalho nas obras e no campo. A procura deu para terem um mini-mercado ligado ao café, que fechariam nos anos 90 quando as roupas de cama se começaram a acumular nas prateleiras e as pessoas passaram a acorrer aos supermercados para as compras maiores. Aproveitaram o espaço para abrir o restaurante “Fole”, conhecido pelos pratos de javali e cabrito, e durante mais de dez anos Ana foi a rainha da cozinha, onde aliou à tradição receitas trazidas de França, como os clafoutis de fruta. Tudo águas passadas. Hoje, quase só servem cafés, minis e cálices de favaios.
O futuro O futuro de um lugar assim, onde viverão não mais que 40 pessoas a tempo inteiro e estão contadas 270 em toda a freguesia, é algo incerto em que mais vale não pensar. Sobretudo quando se tem a família por perto, de férias, e dá para usar as mesas do restaurante numa boa almoçarada. Certo é que nem Isaac nem Ana se arrependem de ter regressado. “Foi uma opção”, sorri Ana, em Clermont-Ferrand empregada numa fábrica de seringas enquanto o marido trabalhava na construção civil. Sandrine, com 41 anos, não teve dificuldade em adaptar-se ao meio bem mais pequeno que a cidade francesa e guarda boas memórias da infância na aldeia, que hoje revê nas férias de aventura da filha Vânia. “Queria ser como as raparigas da aldeia, usar meias até ao joelho em vez de soquetes. Vi algumas coisas primeiro que elas, como os centros comerciais, mas não notei mais diferenças.”
E porquê o nome Pousafoles?Hoje, ninguém o diria, mas o lugar chegou a ser paragem obrigatória nas viagens pelas serra das Beiras e daí o o topónimo, explica Isaac, que tem tanto carinho pela aldeia onde nasceu há 65 anos que até liderou o movimento para criar um lar.
No século xviii, a aldeia chamava-se Vale Verdinho, mas aos poucos abriram hospedarias e tabernas para dar abrigo aos viajantes. Seria comum os vendedores de azeite pararem ali com os odres carregados quando vinham a subir a serra da Malcata e se punha a noite. E há duas teorias: ou o nome Pousafoles vem da ideia de recuperar o fôlego ou de ser terra de ferreiros – e nos momentos de descanso se pousarem os foles com que se forjava o ferro. Esta é a explicação de Isaac, que fez do instrumento antigo o cartão-de-visita do café-restaurante.
Mais tarde, quando os bispos de Braga arranjaram residência na aldeia, acrescentou-se mais um termo para honrar os eclesiásticos que faziam daquele recanto o seu retiro. Hoje mantém-se essa paz e, além da igreja de pedra, é bonito ver ao longe o Cabeço das Fráguas, onde se pensa que terá morrido o valente lusitano Viriato. Podem faltar pessoas, mas não hão-de faltar histórias ao país.
Café Central de Pousafoles
Ano: 1984
Dono: Isaac Inácio
Especialidade: Javali e cabrito assado
Preço do café: 0,60€
Preço da cerveja: 0,80€ – só há minis