“Está cheia, esta casa”, exclama Rui logo ao chegar. A alegria vê-se nos olhos. Impossível esconder. O primeiro dia do campo de férias de Verão na Casa dos Marcos, na Moita, começou bem cedo, com os pais a chegar, prontos para deixarem os filhos embarcar nesta aventura. Duas semanas cheias de actividades em que vale tudo menos desistir. Tempos de desafio e aprendizagem: aqui não há lugar para a tristeza, apenas para superar os desafios.
Os laços nascem logo nos momentos iniciais. É visível e palpável o carinho que os jovens já sentem uns pelos outros. A primeira foto de grupo teve logo lugar e, sem medos, Ana Rita pede aos monitores que organizem uma festa de pijama com as amigas Nádia e Ana Rita Oliveira: “Claro!”, foi a resposta imediata.
O entusiasmo é contagiante e não atingiu só os participantes: assim que entramos na sala, Joaquim vem ter connosco, ajoelha-se, pega na mão da jornalista e dá-lhe um beijo. O “pinga-amor”, que no final do campo de férias já contava com “duas namoradas”, vira-se de seguida para o fotógrafo e dá-lhe um aperto de mão à homem para depois soltar sem inibições: “Amoooor.” O afecto chega para todos e este grupo tem muito para dar.
Está na hora de começar a entender os ritmos. Um grupo de jovens com doenças raras e bastante variado nas cadências e na autonomia. Deixar cada um ser ele próprio é a chave para os conhecer melhor. Rapidamente chega o lanche de reforço da manhã, a primeira vez que o silêncio toma conta da casa. Deviam seguir-se momentos de relaxamento com música, mas é difícil travar tanta emoção. Catarina gosta de passear no jardim acompanhada pela monitora. Luís faz o mesmo mas tem outra companhia: a cadeira de rodas, que até gosta de puxar. O seu ar vivaço denuncia que se está a preparar para uma travessura. Os grandes óculos deixam transparecer a alegria que lhe enche o coração.
Joaquim, o pinga-amor da festa, quer cantar e dançar. Na sala, depressa encontra quem queira fazer parte da sua banda. “Tu aqui, tu ali”, diz, e aponta para cada um se pôr nas posições que programou. Toca guitarra e canta, enquanto improvisa uma coreografia para cada um dos voluntários. Aqui todos são um – uma banda, uma família.
Ainda durante a manhã é preciso passear Tonicha, a cadela da Casa dos Marcos. João, um dos moradores, fica com essa responsabilidade. Deixa-nos brincar com ela e aproveitamos para meter conversa: “Qual é o teu clube, João?”
Sem perder tempo – e também sem qualquer hesitação – responde-nos: “O Benfica.” Fica incrédulo quando lhe contamos que as águias perderam 3-0 com um clube mexicano na madrugada anterior. “Perdeu?! Nãaaaaaaaaaaaao”, atira.
Chega a hora do almoço, e com ela outra aventura. Há que ter em conta as necessidades alimentares de cada um e uma atenção reforçada à medicação. Para que tudo seja feito a tempo e horas, esta tarefa cabe aos monitores, todos eles voluntários. Aos menos autónomos também dão o almoço. Só depois comem eles. A primeira refeição são salsichas, a comida preferida do João. As mesas redondas do refeitório estão cheias, não cabe mais ninguém.
Vale tudo neste jogo Com a barriga cheia, o grupo junta-se na sala para as actividades de relaxamento. Todo o ambiente convida ao descanso e à sesta, mas quando a digestão acaba está na hora de mais diversão. Pelos balões de água e seringas de plástico gigantes que esperavam no jardim devíamos ter percebido o que estava para vir. Era um jogo de seringaball, um clássico dos campos de férias. Neste caso, o grande momento do primeiro dia estava mesmo à porta. O melhor é explicar as regras: vale tudo para molhar o adversário. “Quem quer levar uma vacina?”, perguntam os primeiros a chegar às seringas com água. Foi o sinal de partida da brincadeira. Ninguém saiu ileso.
E quando os balões de água acabaram o jogo continuou. Os miúdos, com a astúcia típica da idade, encontraram forma de prosseguir: baldes e copos ocuparam o lugar das seringas e dos balões e mostraram-se ainda mais eficientes. Todos tinham histórias para contar, tão boas como os risos que ecoavam no jardim. Mas, claro, estávamos ainda longe do final da aventura.
E quem se lembra de uma forma ainda mais eficiente de molhar um grupo quando estamos num jardim? A resposta é o sistema de rega: “Rega o jardim e também nos rega a nós”, atiram alguns. Os corajosos não arredam pé.
Chega o fim da tarde e os guerreiros precisam de descanso. É a hora da higiene e de iniciar os preparativos para o jantar. Alguns tomam banho sozinhos, outros são ajudados pelos monitores, os melhores amigos. Os mais autónomos ficam ainda com a responsabilidade de levar a refeição à mesa de todos, cortar os legumes para a sopa, entre outras tarefas. Com os pratos vazios, chega o momento de descansar. Foi um primeiro dia longo.
Queremos mais No segundo dia já não há estranhos. Os monitores passaram na avaliação dos jovens e são dignos da confiança. Inseparáveis. São 9h30, o que significa que está na hora de ir para a praia. O almoço vai ser um piquenique no parque de merendas, por isso, além de tudo o que é preciso levar para a praia, também é necessário embalar as refeições. Malas na bagagem, jovens bem sentados, comida a postos. Vamos a isto. É urgente ver o mar.
Chegados à praia, o objectivo é sempre o mesmo, independentemente da doença ou da idade: experimentar a água. Estava fria, mas, como não há barreiras que parem estes miúdos, houve quem arriscasse. Ao final da manhã, o sol forte mandou arrumar tudo e voltar para o autocarro. Depois do almoço no parque, volta-se para a Casa dos Marcos numa tarde que não foi menos interessante: no jardim, à espera dos jovens, estava um escorrega de água. Com mais ou menos receio, não houve quem quisesse ficar de fora.
O terceiro dia foi dedicado ao Jardim Zoológico. E havia duas grandes atracções: ver o espectáculo dos golfinhos e leões-marinhos e ir ao reptilário. A ida à Baía dos Golfinhos foi o programa que agradou à maioria. As raparigas nunca acharam grande graça a répteis, convenhamos. No final das férias, os golfinhos, “com todas as cambalhotas”, como conta Ana Rita, foram uma das visitas que ficaram mais gravadas na memória.
Quinta-feira voltou-se à praia. Apanham-se conchas que, no dia seguinte, logo pela manhã, foram usadas para fazer postais: uma das primeiras lembranças que os jovens levariam deste campo de férias. “É uma concha, a água é a cartolina azul e o algodão é o sal”, explicou João David quando terminou o seu postal de capa amarela.
Para o último dia da semana estava reservada outra surpresa. Que adolescente não fica feliz com uma ida ao McDonald’s? O grupo juntou-se rumo ao almoço no restaurante da cadeia de comida rápida no Centro Comercial do Montijo. À satisfação contagiante de comer um dos hambúrgueres preferidos juntou-se uma corrida de cadeira de rodas dentro do centro comercial. 1,2,3, partida. Todos ganharam.
vamos surfar? A segunda semana abriu com mais praia, uma oficina de papagaios de papel, um churrasco e até karaoke, em que cada um fez o seu próprio microfone de cartolina. Mas nada bate a expectativa acumulada para a actividade de quarta-feira: o surf adaptado. De manhã cedo já todos estavam prontos para a partida rumo à praia do Castelo, na Costa de Caparica. A viagem fez-se entre música e a ansiedade da estreia. Para muitos era a primeira vez que iam surfar.
Ao chegar à praia há que escolher o fato de surf que melhor assenta a cada um. Enquanto espera a vez, Afonso aproveita para distribuir carinho pelos colegas. Põe os braços em posição de abraço bem apertado, a que todos têm direito. Quando os primeiros acabam de se equipar, começa o burburinho. Querem também ser os primeiros a chegar à água. Liderados por Joaquim, iniciam a debandada rumo ao oceano.
Vão velozes, mas desaceleraram quando o primeiro contacto com o oceano lhes gela os pés. Estendem-se as toalhas e organizam-se grupos para que todos tenham oportunidade de surfar e ninguém esteja na água sem supervisão. Avançam os primeiros. Os jovens, um de cada vez, deitam-se na prancha e, com a ajuda de dois surfistas, vão em direcção às ondas. Não há espaço para medos. Enquanto os amigos surfam, os outros jovens estão na areia ou pedem aos monitores que os levem à água. Leonor está mais satisfeita que nunca e não quer sair da água. Joaquim pede-nos que o vejamos mergulhar. Ana Rita, Itália e João David também querem o fresco da beira-mar. Este passa a ser o palco principal das brincadeiras.
“Viste, viste? Eu a surfar?”, perguntam–nos assim que saem da água. O sorriso vai de uma ponta à outra. Cada jovem sente que ultrapassou mais uma barreira e alcançou algo que até este dia foi desconhecido. Ana Rita acaba por chorar. Os mistos de alegria e receio encheram-lhe o coração: “As ondas eram grandes”, desabafou, confessando logo de seguida que adorou a experiência. Quando já todos surfaram chegou a altura de voltar ao início. “Quem quer repetir?” A maioria, obviamente.
Entrar de novo na água e debater-se com as ondas não deixa ninguém indiferente. Os sorrisos, a alegria e a sensação de que não há nada que não se consiga alcançar leva a que todos queiram ir mais longe. “Viste? Fui outra vez?”, chama-nos João David a atenção. Joaquim continua na água. Quando damos por ele, está de pé na prancha. De mão dada com os surfistas, vence a primeira onda. Parecem profissionais.
Um até breve A segunda e última semana está a chegar ao fim, mas antes de mais é preciso começar a preparar a peça de teatro para os pais. Na quinta--feira, jovens e monitores começam a fazer os fatos para o dia seguinte. Todos queriam estar bonitos e, pela alegria com que fomos recebidos, era mais uma missão cumprida. Joaquim, Ana Rita e João fizeram questão de nos mostrar os fatos que criaram: havia quem envergasse desenhos de bolas de Berlim, chapéus-de-sol, corações, pranchas de surf e até tubarões.
A manhã de sexta-feira foi dedicada a deixar uma marca da passagem pelo campo de férias de Verão da Casa dos Marcos. Em pasta de moldar, cada um fez um pequeno objecto que representaria o seu testemunho. Depois de terminados, as pranchas de surf, os corações, as toalhas e as bóias de praia são postos no jardim, junto à árvore mágica, casa de recordações de participantes em campos anteriores. Uma grande família que aumenta todos os Verões.
A meio da manhã, a azáfama dos fatos para a peça de teatro estava perto do fim. Mas faltavam os ensaios finais. Cada jovem entra em cena acompanhado pelo seu monitor e com uma música ou palavra que resuma sua passagem por ali. O primeiro ensaio é confuso mas o segundo mostra uma grande evolução: já todos sabem quando é a sua vez de entrar e as músicas estão a postos.
Já decidiu o que vai fazer quando chegar a altura de se apresentar. Há quem queira dançar, quem opte por cantar ao mesmo tempo e até quem prefira saltar. Vale tudo para mostrar a alegria. “Mais um ensaio?”, perguntam os responsáveis. “Nãaaaao, já chega!”, respondem. Estavam todos prontos.
Ao início da tarde chegam os pais, que se sentam no refeitório tornado palco para espectáculos. Os filhos esperavam inquietos no jardim a sua vez de entrar. É o momento do reencontro e de matar as saudades. Mas não sem antes brilharem.
Chega o espectáculo e, um a um, os jovens entram no refeitório. Os pais batem palmas, orgulhosos de tudo o que os filhos conquistaram ao longo destas semanas. O “desfile” que caracteriza a Catarina, a “musiquinha” do Henrique, a “cadeira” que o Luís tanto gosta de empurrar, o “sorriso” da Sara, o “riso” do Filipe e até o “beijinho” do Hugo. Todos estavam presentes. Houve lugar a reencontros e às primeiras conversas dos pais com os monitores que acompanharam os jovens. Lágrimas? Algumas, mas de alegria.
“Um sorriso pode mudar a vida de alguém e eles com certeza mudaram as nossas”, dizem os monitores no final da peça. Fecha o pano. Com a convicção de que para o ano todos vão voltar. Síndrome de Kabuki, de Angelman ou de Sturge-Weber. Tetrassomia 18p. Espinha bífida. Delecção cromossoma 22. Síndrome de Prader-Willi ou de Lennox-Gastaut. Lisencefalia. Síndrome X-frágil, de West ou Cornélia de Lange. São só algumas das doenças com que estes jovens vivem. Relatório final: provas superadas.