Miguel Gomes. “Cada vez mais, não tenho ideia daquilo  que ando a fazer”

Miguel Gomes. “Cada vez mais, não tenho ideia daquilo que ando a fazer”


Os três volumes de “Mil e Uma Noites” são um retrato do Portugal empobrecido, desempregado. 


Os três volumes de “As Mil e Uma Noites” de Miguel Gomes contam um ano de Portugal a braços com a crise económica e social. “O Inquieto”, “O Desolado” e “O Encantado”. Histórias reais e outras nem tanto contadas pela personagem mítica de Xerazade. Hoje estreia a primeira parte, mas há mais dois volumes, que se seguem nas próximas semanas. Este primeiro, entre outros assuntos, aborda os despedimentos nos Estaleiros de Viana do Castelo, os desempregados em Aveiro, a troika e a história do galo em Resende. 

Os três volumes d’ “As Mil e Uma Noites” de Miguel Gomes contam um ano de Portugal a braços com a crise económica e social. ‘O Inquieto’, ‘O Desolado’ e ‘O Encantado’. Histórias reais e outras nem tanto contadas pela personagem mítica de Xerazade. Hoje estreia a primeira parte, mas há mais dois volumes que se seguem nas próximas semanas. Este primeiro, entre outros assuntos, aborda os despedimentos nos Estaleiros de Viana do Castelo, os desempregados em Aveiro, a troika e a história do galo em Resende.

E os dois seguintes?

A história do Palito. Um personagem baseado no Palito em fuga e a GNR atrás dele, até ao momento em que é apanhado e recebido pala população com aplausos. A chamada crónica de fuga de Simão sem tripas. Um processo judicial num anfiteatro ao ar livre com uma juíza que interroga uma mãe e um filho acusados de venderem móveis de uma casa que estava alugada. Como se toda a sociedade portuguesa estivesse lá. Uma compilação de crimes tão absurdos como o roubo de um sistema de rega num estádio de futebol no interior do país. Tudo coisas que aconteceram em Portugal durante o ano em que estivemos a trabalhar.

Chama-se o Desolado.

Os personagens são muito mais solitários e parece que estão muito mais desesperados. Se o personagem principal é Portugal e a comunidade, os portugueses, no segundo filme, dá ideia que estamos todos lixados, que não temos qualquer hipótese. Não há nada a fazer. É o volume mais sombrio.

E O Encantado?

Tem dois blocos maiores, a Xerazade que reage ao volume anterior que com as histórias de Portugal vão-lhe cortar a cabeça. Escapa-se e pondera se vai voltar ao palácio. Essa parte foi filmada em Marselha, uma Bagdad mediterrânica, onde ela se cruza com uma série de personagens. Regressa ao palácio depois de uma série de acontecimentos e decide contar uma história que é a maior história das mil e uma noites: a história dos passarinheiros. Este volume é mais documental, um retracto de um colectivo, uma comunidade em Lisboa que eu não conhecia. Pessoas que capturam pássaros, a maior parte delas, nascida em bairros de lata na Musgueira, no Bairro da Boavista, Chelas. Capturam e treinam tentilhões para os levar ao concurso de canto de tentilhões. São pássaros que combatem pelo canto. Marcam o território. Quando há outro tentilhão ao pé, fazem uma guerra de cantos. O concurso é na antiga Musgueira, agora Alta de Lisboa. Mesmo ao lado do aeroporto, uma série de pessoas, do proletariado, desempregados, com um ar muito duro que ficam calados a ouvir o canto dos pássaros. Depois discutem o canto como se fossem jogadores de futebol.

Porquê esta história?

Senti que aquela história era o projecto do filme. Filmar o mundo real, o mundo material e contar a história daqueles bairros em Lisboa, que estabelecem uma teia de relações, quem é o grande vencedor do concurso, o grande caçador, uma mitologia a partir daí ganhando quase contornos míticos. A oportunidade de fazer algo com um lado surrealista: uma série de tipos muito duros que se dedicam ao canto dos pássaros e ao mesmo tempo, abordar algo muito realista, de bairros que não se falam muito e filmar como vive hoje aquela espécie de sub-proletariado.

Esteve no terreno um ano. Foi uma espécie de embate com a realidade?
Filmámos de Agosto de 2013 a Agosto de 2014. Estamos habituados a separar o mundo do jornalismo, da realidade, do mundo da ficção. O que é interessante, e se pode fazer no cinema e me interessa a mim especialmente, é fazer passagens de um a outro. O imaginário vem de algum lado. É a nossa realidade mental. E em tempos de crise existe um imaginário colectivo feito da experiência de viver neste tempo. O facto de a maior parte da sociedade ter empobrecido, como se vê no filme, e de se viver este tempo de crise, acho que faz com que as pessoas tenham medos e desejos.

Numa altura de eleições, estes filmes podem influenciar?
Como é visível, não tenho nenhuma simpatia por este governo, agora seria inocente pensar que o filme pudesse ter influência. Apesar de tudo, em Portugal as pessoas vêem sobretudo televisão. Ir ao cinema, e sobretudo ver filmes portugueses, não faz parte dos hábitos da maioria. O filme não é neutro, mas também não aponta uma direcção. Não tenho a certeza de nada. Não tenho ambição política – se alguma vez tiver, peço aos leitores que estão a ler esta entrevista que me mandem internar porque não devo estar bom da cabeça. Às vezes é difícil ter ideias sobre o que é bom para mim, quanto mais para os outros. Para retratar a realidade temos de juntar estas coisas, não só as reuniões da troika, os depoimento dos desempregados de Aveiro, dos trabalhadores do estaleiro, mas também o lado da fantasia que é deste tempo, causada pela nossa experiência colectiva do aqui e agora.

Este filme ganhou prémios no estrangeiro. Para nós esta realidade está próxima, mas como o viram fora de Portugal?
Em França, num diálogo com os espectadores, houve um que me disse ter estado em Lisboa e não ter visto nada daquilo. Provavelmente não é a melhor maneira de reparar que há uma crise, estar num hotel em Lisboa. Sinto que existe desconhecimento. Toda a gente fala da Grécia, mas Portugal é a crise tímida, quase invisível. A Europa conseguiu vender a imagem de que Portugal teve os seus problemas, mas foi um caso de sucesso.

Não podia ter sido só um filme?
Poder podia. Se pusesse de lado histórias que tivesse filmado, fizesse uma espécie de best of, mas achei que esse não era o caminho porque o filme tinha a ambição de fazer o retrato do estado de alma de um país durante um ano. Era como se cada nova história pudesse corrigir, alterar o olhar que se tem sobre o país. Não existe só uma maneira de olhar o país e a crise. Há sempre uma nova personagem que vem questionar a história precedente. E depois o filme tem este título baseado num livro extenso sobre um manancial de histórias sem fim. Podiam ser as duas mil e duas noites.
 
Leu o livro?
Fui lendo. Nunca o acabei. Acho que nunca ninguém o leu até ao fim. É um livro para ir lendo. Queria que as histórias fossem sempre mudando, introduzir novas personagens. Que fosse quase barroco em termos narrativos. Várias maneiras de contar, vários registos, foi por isso que trabalhei com actores e não-actores. Queria que tivesse escala e espaço para acolher muita diferença e diversidade, o que dá a riqueza ao filme. Embora a decisão de fazer três filmes tenha sido tomada durante a montagem.

Foram fáceis os contactos com os não--actores?
Contactámos com centenas, senão milhares de pessoas, a maior parte para o processo de investigação, que era conduzido por jornalistas, mas muitas delas eram convidadas para fazer delas próprias. Acho que há um desejo de participar no filme que virá da infância, da brincadeira de crianças, de fazer um papel, uma personagem. Das pessoas contactadas houve cinco ou seis que disseram que não. 

O projecto foi difícil de concretizar?
Este filme teve um orçamento bastante alto, 3,7 milhões de euros, dos quais 60% dinheiro da Alemanha, da França e da Suíça. O filme anterior, “Tabu”, correu muito bem. Fiz filmes que tiveram visibilidade internacional e foram vendidos para outros países. Tenho a sorte de já ter este reconhecimento e ter acesso ao investimento estrangeiro. 

Não há mais gente a ver filmes portugueses?
Neste momento há um fenómeno, “O Pátio das Cantigas”, que está a bater todos os recordes do mercado interno. Um filme que se pague a si próprio na bilheteira é uma excepção, uma raridade. O Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) tem uma tabela com os maiores êxitos de bilheteira em Portugal. Acho que se devia propor ao ICA uma outra lista em que se contabilizassem os resultados de bilheteira de um filme português também no mercado internacional. Acho que íamos ter grandes surpresas. O “Tabu” foi vendido para mais de 50 países com cerca de meio milhão de espectadores. Esses espectadores são menos importantes? Cá o filme teve à volta de 25 mil. O Manoel de Oliveira não vem nessa lista do ICA. Os filmes mais comerciais, comédias, não conseguem estrear fora. Estou a lembrar-me do “Crime do Padre Amaro”, que agora “O Pátio das Cantigas” destronou, uma espécie de softcore erótico português. Noutros países têm filmes desses, comédias, populares, eróticos, a pontapé. Não precisam dos filmes portugueses para nada. O que passa a fronteira é aquilo que tem alguma singularidade. O que o produtor Luís Urbano gosta de chamar mercearia fina, o que é um pouco burguês. Mas é quase artesanato. Filmes que se parecem apenas consigo próprios. Isso desperta a curiosidade de quem gosta de cinema. Desde os anos 60, quando o Fernando Lopes e o Paulo Rocha começaram a fazer filmes, até hoje houve sempre gerações rejeitadas cá dentro e defendidas lá fora. E muitos deles são considerados mestres, como Manoel de Oliveira ou João César Monteiro. 

Há algo de neo-realismo italiano e nouvelle vague francesa?
Rótulos para mim não valem a pena. Cada vez mais não tenho ideia daquilo que ando a fazer. Não sei se é defeito, mas estou a ser honesto. Quando me lanço num filme é como se estivesse a recomeçar. Sei das possibilidades de que disponho, de actores profissionais, de argumentos, mas muitas vezes vou inventando. No primeiro filme há uma música punk chamada “Caos” que achei apropriada para o filme e também para nós. Eu e os colaboradores mais próximos andamos a fazer filmes há muito tempo e sentimos que é mais interessante estar abertos, mesmo que cause imensas dores de cabeça ao produtor, que é incapaz de calcular o orçamento porque não faz ideia do que lhe vou pedir na semana seguinte. Neste filme contratámos quase uma trupe de actores dizendo-lhes que queríamos saber da disponibilidade para aquele ano, porque podiam, ou não, entrar no filme, uma vez que as histórias iam nascer daquilo que fosse sucedendo no país e nos fossem interessando ao longo dos 12 meses. Estão nessa ou não? Eles disseram que sim. 

Tudo em aberto?
É uma espécie de folha em branco e tudo é uma experiência muito caótica. Mas tenho ideia que desse caos podemos mais facilmente agarrar o que está a chegar e introduzi-lo no filme do que se eu estiver sentadinho numa secretária em minha casa, só com aquilo que sei na minha cabeça. É mais fechado, mais isolado. Para mim é uma experiência mais pobre do que posso dar se estiver em contacto com o mundo. Nesse sentido, o meu método de trabalho pode ter a ver com o neo-realismo e a nouvelle vague porque tinham disponibilidade para agarrar o aqui e agora.