O que aconteceu quando Varoufakis tentou cortar os salários dos funcionários da troika?

O que aconteceu quando Varoufakis tentou cortar os salários dos funcionários da troika?


O ex-ministro fez um extenso relato dos dias que se seguiram ao referendo a uma revista australiana, em que aborda a reacção de Tsipras à vitória do “Oxi”, os problemas do Estado grego e conta a sua tentativa de cortar os salários de 18 mil euros mensais dos técnicos da troika.


“Deixe-me só descrever o momento após o anúncio do resultado. Fiz uma declaração no ministério das Finanças e fui encontrar-me com Alexis Tsipras e o resto do governo ao Maximos [residência oficial do PM grego]. Estava exultante. Aquele ‘não’, inesperado, foi como um raio de luz que perfurou uma escuridão demasiado densa (…). Mas no momento em que entrei no Maximos o sentimento desapareceu. A atmosfera também estava eléctrica, mas carregada negativamente. Parecia que o governo tinha perdido o apoio do povo. A sensação que tive foi de terror: O que fazemos agora?”

O relato é de Yannis Varoufakis e foi dado pouco depois do referendo do início de Julho e já depois de ele próprio ter apresentado a demissão das Finanças, mas só agora é conhecido já que foi publicado na edição de Agosto da “Monthly”, uma revista australiana. O ex-ministro revela vários detalhes do pós-referendo e das consequências do mesmo.

A posição e a saída do governo. “Vi que ele [Tsipras] estava desanimado. Tinha sido uma tremenda vitória, uma que ele poderia saborear mas que não conseguia gerir. Ele sabia que o seu gabinete não conseguiria gerir a vitória. Era claro que havia elementos no governo a pressioná-lo. Em poucas horas já várias figuras proeminentes do governo queriam tornar o ‘não’ num ‘sim’, queriam capitular”, relata Varoufakis na conversa com a revista australiana.

A decisão de abandonar o governo foi tomada por esta altura: “Quando percebi isto, disse-lhe que tinha uma escolha clara a fazer: ou usar os 61,5% do ‘não’ para ganhar uma nova energia, ou capitular. E disse-lhe, antes que respondesse, que ‘se escolhes a última, eu saio’.”

A resposta de Tsipras foi igualmente clara: “Olhou-me e disse: ‘Sabes que eles nunca nos vão dar um acordo. Querem ver-se livres de nós’. E depois contou-me a verdade, que havia membros do governo a empurrá-lo para a capitulação. Estava deprimido.” Varoufakis decidiu-se assim pela demissão.

Questionado sobre a posição dos países do euro durante as negociações em que tomou parte, Varoufakis voltou a singularizar a posição do ministro alemão, Wolfgang Schäuble, único promotor activo da expulsão da Grécia do euro, acusa. “Não é má fé, é um plano. Chamo-lhe o ‘Plano Schäuble’. Está a planear a saída da Grécia do euro como parte do seu plano de reconstruir toda a zona euro. Não é uma teoria, foi ele que me disse.”

Austeridade? É um mero jogo. A análise de Varoufakis avança depois para o porquê de tanta austeridade depois de tantas provas de que ela falha, referindo que as medidas de austeridade não são mais que “um jogo político que a Comissão Europeia está a jogar para assustar os outros membros do euro”.

Para alguns, estes programas de austeridade são o trabalho de uma vida, o seu pequeno bebé. É como o Frankenstein: é um monstro mas é o teu monstro

“É a forma de Schäuble conseguir extrair concessões da França e da Itália, é esse o jogo desde o início. O jogo é entre a Alemanha, França e a Itália”, avalia. “É uma estratégia para influenciar Paris e Roma, especialmente Paris, para aceitarem a criação de um modelo disciplinador e teutónico para a zona euro.”

Sobre os restantes peões neste jogo político, Varoufakis não tem grandes dúvidas: “É uma mistura de indiferença e interesses próprios. Para alguns destes, os programas de austeridade são o trabalho de uma vida, o seu pequeno bebé. É como o Frankenstein: é um monstro mas é o teu monstro. Têm as carreiras dependentes disto. Veja que o Poul Thomsen, que liderou o programa grego do lado do FMI entre 2010 e 2014, foi promovido a líder do departamento europeu do FMI por causa deste trabalho. Quando esta gente olha para os efeitos do que fizeram – como haver pessoas a procurar comida em caixotes do lixo e o desemprego explosivo – entram em funcionamento todos os seus mecanismos de auto-racionalização: ou dizem que não havia alternativa ou que a culpa é de quem não fez suficientes reformas.”

De salientar que Poul Thomsen, o premiado pelos programas de resgate na Grécia, foi também o líder da missão do FMI a Portugal, Fundo que também recebeu Vítor Gaspar, ex-ministro português, oferecendo-lhe um ordenado de 23 mil euros mensais livres de impostos.

Salários milionários dos técnicos. Além de Vítor Gaspar, a existência das troikas assegura também ordenados chorudos a centenas de “técnicos”, “consultores” e “especialistas” que orbitam à volta destas instituições. Disso mesmo deu conta Yannis Varoufakis na conversa com a “Monthly” agora publicada.  

Percebi que os salários destes funcionários eram monstruosos para os padrões gregos. Num país com tanta fome e onde o salário mínimo foi cortado para 520 euros, esta gente ganhava qualquer coisa como 18 mil euros por mês

“Temos uma coisa chamada ‘Hellenic Financial Stability Facility’, uma ramificação do ‘European Financial Stability Facility’, fundo que recebeu 50 mil milhões para recapitalizar a banca grega. Este é dinheiro que os contribuintes gregos pediram emprestado para impulsionar a banca mas, enquanto ministro das Finanças, não me deixaram escolher o CEO e nem sequer podia participar nas relações do fundo com os bancos. O povo grego, que nos elegeu, não tinha assim qualquer controlo sobre como é que este dinheiro foi e é usado”, começa por apontar Varoufakis.

Depois de estudar a lei que criou estes mecanismos, “descobri que só tinha um poder sobre estes, que era o de determinar o salário desta gente. Percebi que os salários destes funcionários eram monstruosos para os padrões gregos. Num país com tanta fome e onde o salário mínimo foi cortado para 520 euros, esta gente ganhava qualquer coisa como 18 mil euros por mês”, revela.  

Assim, “decidi exercer o meu único poder e usei uma regra muito simples: se as pensões e os salários caíram em média 40% desde o início da crise então decretei um corte de 40% nos salários destes funcionários. Mesmo assim ficavam com um salário elevadíssimo. Sabe o que aconteceu? Recebi uma carta da troika a dizer que a minha decisão tinha sido anulada pois não estava devidamente justificada. Ou seja, num país onde a troika insiste que as pessoas que vivem com 300 euros por mês devem viver com 100 euros por mês, recusaram o meu exercício de corte de despesas e anularam os meus poderes enquanto ministro para cortar os salários desta gente.”

Os problemas gregos. Na longa conversa tida com a “Monthly”, Varoufakis aborda também os problemas que levaram a Grécia até ao ponto actual. “Cleptocracia” é como o antigo ministro define o Estado grego.

“Enfrentámos uma imensa aliança de interesses instalados e de práticas oligárquicas, um verdadeiro triunvirato do pecado na Grécia: primeiro, os bancos, os bancos falidos que são mantidos vivos com o dinheiro dos contribuintes mas sem que os contribuintes possam dizer seja o que for sobre o que eles fazem. Em segundo lugar, os media, particularmente os jornais e os meios electrónicos, que também estão falidos. Mas são controlados pelos bancos, que usaram o dinheiro do resgate para apoiar os jornais e assegurar que cumprem o seu papel de propaganda. Em terceiro lugar, os interesses associados aos investimentos públicos.”

Para explicar este último ponto, o ex-ministro lembra que o custo de construção de um quilómetro de auto-estrada na Grécia é três vezes mais do que na Alemanha ou França, “e não é porque as pessoas trabalham menos ou são menos eficientes… Se querem saber o porquê, vejam o Norte de Atenas e estudem as villas sumptuosas e quantos donos e presidentes dessas empresas vivem por lá”, atira.