Gentes da Praia da Leirosa e a tradição Arte Xávega.

Gentes da Praia da Leirosa e a tradição Arte Xávega.


O tempo quente convida a aproveitar os raios de sol, tomar uns banhos de mar ou se este for bravo, dependendo da zona, explorar e conhecer gentes que resistem e fazem resistir a tradição da Arte Xávega. 


Gente simples, que até há pouco tempo vivia em barracas de madeira tapadas com umas chapas de zinco e oleados. Famílias inteiras, várias gerações, que partilhavam o mesmo espaço para dormir, comer e viver. Mas que, partilharam, sobretudo, uma tradição, um saber-fazer, estar e ser.

Na Praia da Leirosa, o mar está quase sempre bravo e ir a banhos é quase impossível, nesse caso, a razão de estar e ficar é apenas uma e vale muito a pena. Ver chegar as embarcações de pesca que praticam a Arte Xávega.

Este é um dos mais antigos e característicos processos de pesca artesanal, que muito se pratica nesta praia invulgar, onde do pontão sul, que separa a localidade da mata atlântica, se consegue ver os restos de um cargueiro que aí encalhou, há cerca de 30 anos. Parece que transportava madeira e foi ao fundo devido a duas vagas consecutivas: uma que fez deslizar a carga do navio, que estaria mal estivada, outra que apanhou o barco meio adornado e fê-lo encalhar nos bancos de areia próximos da costa. Perigos do tempo e do mar!

Perigos que, ainda hoje, são enfrentados pelos pescadores da Praia da Leirosa, homens corajosos que resistem e lutam para manter viva a tradição da Arte Xávega. O processo de pesca artesanal, cujo nome é originário da palavra árabe xábaka, que significa rede, e é usado tanto para definir rede para pesca de arrasto como para o próprio barco (de fundo chato) que transporta a rede para o lanço. Arte Xávega é o processo de pesca ao cerco em que a embarcação vai ao mar lançar as redes, ficando um dos extremos em terra e o outro extremo arrastado ao largo algumas centenas de metros. À medida que a faina se aproxima de terra, fecha-se a “largada” e puxa-se para terra toda a rede lançada. Tarefa, actualmente, feita com a ajuda de tractores, mas que em tempos foi suportada por juntas de bois e força braçal.

Hoje as embarcações já são poucas, muito características com a forma de um crescente de lua, fundo plano e proas bastante elevadas para suportar o impacto das ondas. Feitos assim, para entrarem e saírem de forma perpendicular em direcção das ondas. Armados na praia, com as redes, são depois empurrados directamente contra a rebentação das ondas. Um processo extremamente difícil e perigoso, pois os barcos não têm outro modo de locomoção a não ser dois remos operados manualmente por um ou dois pescadores. É de coragem! E muitas vezes o final não é feliz. Muitas famílias de pescadores já perderam seus entes queridos, quando os barcos se viram na rebentação.

 O “Estrela do Mar da Leirosa” é uma dessas embarcações e ainda vai ao mar. Percebe-se quando se chega à praia e se ouve a algazarra e um aglomerado de gentes. Há quem não se aperceba e julgue que alguém se afogou ou se sentiu mal. Mas não, foi o “Estrela do Mar de Leirosa” que chegou a terra.

A guiar as redes podem contar-se mais de 20 pessoas, entre as quais, pescadores, ajudantes de pescadores, ajudantes de ajudantes e outros curiosos que parecem estar apenas a puxar as cordas na expectativa que o dono do barco lhes dê um peixinho. É assim que, sem hierarquia, muita confusão e gritaria as cordas são puxadas para terra, até que se ouve uma voz que em tom entusiástico grita: “É pá ca granda pescaria!”

É uma diversão ver descarregar o peixe e ajudar a puxar a rede. Uma autêntica festa, também para os turistas. Queixam-se os pescadores que, às vezes, até atrapalham.

Já com o saco (o local da rede onde se acumula o peixe) em terra, chega a altura de recolher o peixe, muitos ainda vivos e sem intenções de lutar pela vida, saltam e rabeiam vigorosamente dentro da rede. E que divertido é ver os peixes ainda a mexer por entre as malhas ou atirar os que estão mortos para junto do imenso bando de gaivotas que entretanto invadiu a praia.

Entretanto, o pescador mais velho e experiente corta o meio da rede para revelar o tesouro do dia: são sardinhas, carapaus, cavalas, gatas, peixe-galo, robalos, douradas, safios, cantaril, imperadores, linguados, pregados, raias e petingas. De entre todos, não interessa a gata, parente do cação, com o formato de tubarão às pintas mas totalmente inofensivo. Como em Portugal não há a tradição de comer peixes cartilaginosos, além da raia e do cação, os pescadores não têm qualquer interesse pela espécie, sendo esta atirada para fora das redes como se de desperdício se tratasse. Já dentro da rede e apenas prevenido com umas galochas, para não ser picado pelo peixe-aranha, que intruso se misturou com os outros peixes, o pescador começa a separar o peixe, cada espécie para seu balde.

Entretanto, as mulheres dos pescadores que também já estão junto às embarcações, algumas entusiasmam-se com a pescaria, tendo como por ritual levantar um dos maiores peixes, como se de um prémio se tratasse. E basta-lhe um pregado de 2 quilos. Diz que é mais saboroso que o rodovalho porque vive junto à costa, na rebentação, em águas mais oxigenadas e revoltosas, daí resultar uma carne mais firme e com sabor. Vai render-lhe cerca de 60 euros. Sabemos que se o vendesse para um restaurante em Paris pagar-lhe-iam à volta de 200 euros!

Acabada a pescaria, e noutros tempos, juntavam-se á mesa de escolha os populares e donos de restaurantes para comprar o peixe, directamente, ao pescador. Hoje, a prática está banida pela EU e todo o peixe apanhado deve ser comercializado na lota. Coitadas das peixeiras da Leirosa! Que tem de fazer 20 quilómetros para ir à lota da Figueira da Foz, que é a mais próxima, para comprar o peixe, que ainda vendem de porta em porta, pelas terras e aldeias dos arredores da Leirosa. Mas fazem-nos. Porque é a vida que aprenderam, desde os seus tenros sete ou oito anos.

É um outro mundo, são outras vidas, que se desenvolvem ao sabor do mar.

{relacionados} Artigo escrito ao abrigo da parceria entre a Aptece com o Jornal i.