A miséria familiariza um homem com estranhos companheiros de cama.” Isto vem na “Tempestade” de Shakespeare e, horas antes de o comício em defesa da Grécia começar, já Pacheco Pereira tinha notado que a questão grega (e a da austeridade e do rumo da Europa) o tem apanhado ao lado de “strange bedfellowes”. Afinal o homem que já foi líder parlamentar e vice-presidente da comissão política do PSD nos tempos de Cavaco Silva, Marcelo e Ferreira Leite, defende quase sempre o oposto dos seus companheiros de partido. Desta vez, o simbolismo dos “strange bedfellowes” foi ainda mais impressionante.
Na noite de quinta-feira no Fórum Lisboa, ao lado de Manuel Alegre, Francisco Louçã, da eurodeputada do Bloco Marisa Matias, do economista do PCP Eugénio Rosa, de uma mensagem de Freitas do Amaral e da escritora Hélia Correia, Pacheco Pereira abriu assim a sua intervenção: “Eu estava hesitante sobre se vinha para um debate ou para um comício. Se isto fosse um debate começaria com ‘minhas senhoras e meus senhores’. Mas como é um comício vou usar a fórmula que se ouvia à noite antes do 25 de Abril na Rádio Argel pela voz de Manuel Alegre: ‘Amigos, companheiros e camaradas.’” A sala exultou: nos últimos anos Pacheco Pereira é o mais querido dos “strange bedfellowes” da esquerda.
“Falemos de patriotismo.” Pacheco Pereira passou em revista 1640, a Guerra Americana da Independência e a França colaboracionista de Pétain: “Todas estas situações muito diferentes têm algo em comum. Todos ouviram as mesmas palavras e os mesmos sábios conselhos. Também todos ouviram as mesmas ameaças: ‘Deixem-se estar quietinhos porque as consequências serão terríveis. A realidade é muito forte e quem a contestar verá cair-lhe em cima toda a força dos poderosos.’”
Pacheco Pereira contestou os “teóricos” que “com desenvoltura e topete” “atiram à cara dos que discordam a PDR [puta da realidade, Pacheco não disse a palavra “puta”, substituindo-a por um “pi”]”. “Vamos devolver-lhes a realidade com juros. Havia algo pior que 1640, 1765 ou 1940?”
Pacheco invocou a coragem dos “founding fathers” da América, Benjamim Franklin, John Adams, Jefferson, George Washington que se tivessem tido em conta a “PDR” hoje não seriam “pais fundadores mas apenas pais”. “Foi assim que foi fundado esse país esquerdista chamado Estados Unidos da América”. Invocou também “o radical esquerdista chamado de Gaulle que foi para Londres” para combater a França do marechal Pétain e depois “lá se foi a realidade”.
“Amigos, companheiros e camaradas”, repetiu José Pacheco Pereira. “Eu gosto do meu país. Alguém anda a encolher o meu voto. Não gosto, não aceito e protesto. Também no meu país há colaboracionismo e submissão”. Manifestando o seu apoio ao “não” no referendo, Pacheco Pereira criticou o papel dos socialistas europeus neste processo “que acham que são membros suplentes do PPE”.
ALEGRE: “A CRISE DA ESQUERDA”
Antes de Pacheco Pereira falou Manuel Alegre. Para o histórico socialista, “a crise da Europa é também a crise da esquerda, a crise da Internacional Socialista e daqueles dirigentes que, dizendo-se socialistas, estão a permitir esta vergonha”. Alegre diz que “a austeridade está a matar a democracia” e que “os velhos fantasmas europeus estão de volta”.
“A liberdade não é compatível com o visto prévio de Bruxelas e de Berlim. Os socialistas europeus não podem ficar nas encolhas e serem cúmplices. Já não havia tanto medo na Europa desde a II Guerra. Mais uma vez é preciso resistir ao medo, à chantagem, à tentação colaboracionista”, disse Alegre para quem, qualquer que seja o resultado do referendo, “a Grécia já nos deu uma lição de dignidade e por isso não será vencida”. Em mensagem lida, também Freitas do Amaral se insurgiu contra a posição dos partidos socialistas europeus na questão grega. “A hora é de coragem e de lucidez. Não é para cegueiras ideológicas”, foi a mensagem de Freitas à sessão.
Francisco Louçã afirmou que “a Europa ficou gelada com o referendo”: “A Europa colocou-se em estado de golpe de Estado permanente. É proibido que haja governos que possam ter aquela cor. Atenas tem que ser normal, vergada ou corrompida. Nunca tinha acontecido na União Europeia um ultimato como este”.
O ex-coordenador do Bloco de Esquerda lembrou o facto de Varoufakis ter sido “convidado a sair numa reunião do Eurogrupo” e a recusa do apoio aos bancos por parte do BCE, ao contrário do que aconteceu em Espanha e na Irlanda. “Draghi usou a arma de fechar os bancos”.
Louçã invocou o documento do FMI que apontava para uma projecção da dívida pública em Atenas de 118% depois das “medidas” para concluir: “Eles sempre souberam que estas medidas só podiam ter como consequência destruir a economia”. E criticou a Europa do “partido único”, onde não há diferenças entre Merkel e Gabriel. “Nesta Europa de partido único só há lugar para partidos que sejam correias de transmissão. Foi assim que aqui chegámos porque ninguém lhes fez frente. A Europa é uma mistificação democrática, reduziu a democracia a uma cerimónia. Ou a esquerda se define contra a submissão ou será submissão e não será esquerda”.
E apelou: “Começamos um tempo de todos os perigos. Temos pequenas jangadas e não sabemos quem vai vencer. Não sabemos se David ou Golias vencem este domingo. Mas não esqueceremos aqueles que nos disseram: ‘Nós atrevemo-nos’”.