Brilhante menina má dos anos 70, protagonista da vagabundagem rock’n’roll lado a lado com heróis como Tom Waits e Chuck E. Weiss, Rickie Lee sempre teve nome de garota sem rédea e cumpriu à risca as regras do género. Acabou por acalmar a rotação, mas nem por isso deixou de cantar como quem não sabe nada sobre amanhã-e-o-dia-a-seguir. Nos últimos anos fez uns discos de versões e regravou umas quantas canções, mas há uma década que Rickie Lee Jones não arriscava gravar um novo álbum de originais. Porque não queria e porque não tinha dinheiro para isso. Vendeu material que não usava, recorreu à ajuda dos fãs (através do serviço Pledge Music, em que os artistas propõem um projecto e esperam o apoio do público), mudou-se para Nova Orleães e fez “The Other Side of Desire”, à venda desde ontem. Como sempre como dantes, dizia o sábio: folk, jazz, bluegrass e tudo o que é americano. Com a ajuda de John Porter, chegou a um álbum que merece a nossa atenção dedicada. Falámos com Rickie Lee, contente mas insatisfeita, sem um arrependimento que seja, mas com nostalgia que chegue nos intervalos das certezas. A conversa, ao telefone, acabou porque tinha de ser. Caso contrário, ainda o roaming estava a contar.
Finalmente, um novo álbum. Podemos dizer finalmente?
Podemos. E hoje vi a primeira crítica e achei tudo muito estranho. Nunca sabemos muito bem o que as pessoas vão dizer, o que vão achar da música. Gostámos do resultado final, mas bom, essa é a parte normal. Quanto ao que os outros pensam, nunca tive ideia nenhuma. Quando vi uma primeira crítica de quem gostou, fiquei muito contente.
E é importante saber o que os outros pensam?
Claro que é. De mim não vais ter aquelas frases do estilo “não quero saber da opinião dos outros” e tal. Nada disso. Não é possível não querer sentir as palavras dos outros, não querermos saber como é que as pessoas reagem ao nosso trabalho. Noutros tempos fui diferente…
Não queria saber.
Sim, nem sequer lia as críticas, nada, fazia questão de estar distante de tudo isso. E é muito fácil sentirmos que o que estamos a fazer é só nosso e é só para nós. Quando estamos nesse ponto, levamos a peito as críticas e acreditamos mesmo que quando alguém não gosta da música que fazemos é porque não gosta de nós, da nossa individualidade. Entretanto dei a volta a isso e já não é uma questão de ego como foi no passado.
Tinha saudades dos discos e do estúdio ou nem por isso?
Não sei se tinha saudades. O que aconteceu foi que a minha vida pessoal me ocupou muito tempo, não estava sintonizada em quase mais nada. Para escrever canções é preciso tempo para sonhar, é preciso disponibilidade para estimular a criatividade. Porque não importa apenas escrever e compor sobre o que sentimos. Há algo mais.
O que é esse “algo mais”?
Uma canção é um instante, mas também é algo que se perde no tempo, que não tem validade. Assim sendo, é um motor de imaginação, é algo que nos leva até um sítio onde nunca estivemos.
E para chegar aí tinha de estar noutro sítio, tinha de ter espaço para isso. É preciso não esquecer que para isso também é preciso dinheiro, dinheiro que nos permita ficar em casa ou seja onde for. Isso não é muito fácil. Consegui fazê-lo através de crowd sourcing. Por isso, mais uma vez, é ridículo estar aqui a pensar que não importa aquilo que os outros pensam.
Foi gravar para Nova Orleães, porquê?
Porque não há outro sítio como este no mundo, não há. As pessoas são amigáveis em qualquer parte, o tipo da mercearia, a miúda bonita, o vagabundo…
A minha referência está em Los Angeles, uma cidade onde ninguém olha para ti, ninguém. Em Nova Orleães não é assim. Sei que é só um detalhe, mas é também um sintoma de algo mais profundo. Quem vive nesta cidade é porque o quer fazer. Em LA não é bem assim, vais para lá porque tem de ser. Em Nova Orleães ninguém quer ser rico, não é isso que preocupa as pessoas. Juntam-
-se para ouvir e tocar música, para ler e ouvir poesia, e não fazem nada disso para serem mais famosos ou terem mais dinheiro do que os outros. Podemos estar sentados a conversar e, de repente, está uma parada a passar, três crianças pelo caminho, a tocar banjo. A cidade está sempre em celebração. Tudo parece meio decadente, meio pantanoso, muito quente. Já viveste numa ilha?
Não…
Pois… mas é mais ou menos isso, uma espécie de ilha sempre em festa, onde estamos isolados do resto do mundo mas com gosto. Vivo no meio de pessoas de todas as origens. Na maior parte das cidades dos EUA, e apesar do que as pessoas dizem, existem divisões raciais, é um facto: a parte coreana, a parte afro–americana, etc. Aqui não, estamos todos juntos.
E o que fez tudo isso pelas canções, pelo disco?
Fez tudo, fez o inevitável. Gravar é uma coisa meio mística porque o que fica registado é o sentimento de cada momento, mais do que o formato da emoção. Sabia bem o que queria, quanto tempo queria passar em cada tema, que pessoas convidar para estarem comigo em estúdio. Até porque isto é mais ou menos como o sexo. Quando estamos sozinhos, não temos muitas hipóteses e gostamos, apesar disso, do que estamos a fazer. Mas é sempre muito melhor quando temos companhia. E é a principal razão pela qual fazemos ambas as coisas, certo? Para estarmos com alguém. E quando ouvi o disco depois de estar pronto achei–o lindo, foi isso.
Com tanto a acontecer nessa cidade, esses momentos sozinha de que falava, para reflectir e criar, não serão muito fáceis de encontrar…
Mais ou menos. A verdade é que agora, quando desligar o telefone, vou estar sozinha. Está por aqui o cão, vá, mas vou para o jardim. Vai tudo das escolhas que se fazem.
E de vez em quando escolhe ficar sozinha.
Não, isso era antes. Noutras alturas escolhia ficar sozinha de vez em quando. Agora tenho de escolher estar com alguém, é mais isso. Mas vou andar de bicicleta e vejo pessoas, e isso é algo precioso. Como explicar-te isto…? Nos últimos anos em Los Angeles, por exemplo, tentava muitas vezes estar com amigos, nem que fosse para ir ao cinema, para estar à mesa de um café. E é sempre tão difícil, há sempre uma agenda, um calendário, depois o ioga… Enfim. Aqui sou só um bocadinho famosa. Lá aparece alguém muito surpreendido por me ver na rua, mas na maior parte das situações ninguém diz nada. Gosto sobretudo quando alguém me diz que me conhece porque a mãe ou o pai me ouvia. Não sou o Matthew McConaughey, não sou actriz, sou cantora e compositora. E em Nova Orleães os músicos são estimados.
Tem ideia de como é vista e ouvida hoje, daquilo que o seu nome representa?
Não, nem por isso. Imagino sobretudo que a maior parte das pessoas não me conhece. Os que me conhecem, provavelmente – espero eu – têm alguma admiração por mim, acho que é isso. Acho que cheguei a um estatuto de relativo respeito, não me parece que esteja a pedir demais.
Parece justo, sim. E enquanto fã de música, ouve gente que trabalha a mesma matéria, a música americana?
Não ouço muita música quando não estou a trabalhar na minha. Acho que o devia fazer mais vezes, mas isto de ouvir canções é muito emocional, cansa muito. Quando o faço, ouço o que sempre ouvi, não consigo fugir a isso. Bluegrass e jazz, mas também psicadelismo. O meu pai era fã do Harry Belafonte, da Nina Simone, Billie Holiday, discos de swing, muitos. Mas depois tinha aquilo que dava na rádio. Hoje vou pelos mesmos camin