A sua vida profissional é tão internacional como o território que serve de sede ao evento criado em 1973 e levou-a a lugares como Inglaterra ou Singapura. Continua a viajar frequentemente para preparar a programação do festival, mas divide a tarefa, tal como outras, com a equipa que trabalha consigo num evento que actualmente apresenta cerca de 130 performances e mais de 30 programas diferentes todos os anos. Com a duração de cerca de um mês, o Hong Kong Arts Festival realiza-se entre Fevereiro e Março e os espectáculos distribuem-se por 18 salas. A eles somam-se cerca de duas centenas de outros eventos, sobretudo masterclasses, workshops e debates. Nos últimos anos o festival evoluiu, como o território, regressado à soberania chinesa, depois de ter estado sob o domínio britânico do século xix até 1997.
Como é preparar um festival desta dimensão?
Temos 30 pessoas a trabalhar na equipa anual e durante o festival empregamos mais 300 porque há muita coisa a acontecer. Acho que o número máximo de actuações que tivemos num só dia foram 16. É muita azáfama e é tudo muito divertido.
E desafiador, suponho…
Nem por isso. Quer dizer, há muito trabalho de preparação, mas penso que em Hong Kong estamos muito bem posicionados geograficamente para fazer isto. Geralmente acolhemos cerca de 1500 artistas internacionais e depois temos artistas locais também. E isso acaba por não ser assim tão difícil porque em Hong Kong há uma boa engrenagem para fazer todas estas coisas.
Viaja muito para ver o que se está a fazer no mundo, uma vez que é um festival internacional? Como é que se processa essa parte do seu trabalho?
Faço viagens para pesquisar o que se vai fazendo no terreno, claro, mas também tenho uma equipa na programação e boa parte é feita por ela. O que me satisfaz muito neste festival é o trabalho não ser dirigido por uma pessoa, como se fosse uma inteligência superior. É uma equipa, partilham-se responsabilidades, dividem-se tarefas. Por isso actualmente consigo viajar para participar em conferências e outras coisas, sem ser para ir ver programas, embora tente sempre ver alguma coisa. Depois, quando a equipa volta a estar junta, começa-se a pensar o festival em todas as opções que temos de modo que faça sentido e que o total seja mais que a soma das partes.
O festival já vai para a 44.a edição e atravessou o processo de devolução do território à administração chinesa. A mudança reflectiu-se no evento?
Sim, essas influências sentem-se porque a cidade evolui e muda com elas. E no caso de uma grande instituição cultural tem de se responder a essa mudança, não podemos ficar parados. Mas não é algo que tenha a ver com um momento singular ou com uma mudança drástica. A história da cidade é contínua e o festival mantém-se como parte dessa história. Também vai mudando gradualmente e evoluindo, como a consciência da própria cidade e de como nos vemos e vemos o nosso lugar no mundo.
E como vê a cidade?
Às vezes brinco e digo que não vale a pena darmo-nos ao trabalho de chamar internacional a Hong Kong porque foi sempre assim.
A ligação do festival com a cidade é, de resto, o tema sobre o qual vai falar na conferência do próximo sábado. Ele também ajudou a dar forma à cidade?
Seria demasiado forte dizer que o festival deu forma à cidade ou a mudou. Hong Kong tem 6 a 7 milhões de habitantes e muitas coisas a acontecer. É tudo isso que a transforma. Mas quando começou não havia o mesmo número de salas e espaços que hoje. Somos parte dessa história e penso que fomos, de certa forma, impulsionadores dessa necessidade, embora não sejamos os únicos a usar esses espaços e a criar essa demanda. Nos últimos sete anos temos feito produções teatrais próprias com actores locais e também produzimos óperas contemporâneas. Isso é possível porque há esse género de artistas em Hong Kong e por termos estado com eles. Há essa junção positiva de forças. Gosto de pensar que somos parte deste círculo e que temos um papel activo no desenvolvimento do sector na região. E na discussão do que é importante actualmente, do que somos, de qual a nossa identidade.
E que identidade é essa?
Nos primeiros tempos do festival Hong Kong era mais pequena, tinha menos actividade cultural. Não tinha uma orquestra, agora tem três ou quatro, nem companhias de teatro, dança, ballet. O festival fazia-se sobretudo com artistas de fora, porque localmente não estava tão desenvolvido a esse nível e havia mais a ideia de Ocidente e Oriente, de Hong Kong como parte do Império Britânico na China. O cruzamento do Ocidente e do Oriente dominava o imaginário. Isso era grande parte da consciência da identidade, mas foi-se tornando menos importante. Nos anos 80 e 90 a questão, em muitas cidades, passou a ser mais a multiculturalidade, a cidadania global. E Hong Kong sempre foi isso, mas não era esse o vocabulário, a consciência. Em 1997, quando se deu a reunificação com a China, houve uma fase em que nos tornámos mais conscientes das questões da identidade, do nosso papel no mundo, mas sem nunca perder a dimensão internacional. É um território pequeno de mais para não estar em contacto com o mundo.
Na nova realidade de Hong Kong, seria fácil o festival exibir uma exposição do artista Ai Weiwei como a que está a ser preparada em Londres?
Sim, não existe qualquer censura em Hong Kong. A cidade mantém-se, como disse, muito cosmopolita, e nesse sentido fazemos muito trabalho internacional. Isso não mudou. O contexto alterou–se um pouco porque agora é uma grande cidade numa região administrativa especial da China. É interessante porque actualmente muitos artistas que chegam já dizem que estão na China. Para nós é um misto. Mas Hong Kong permanece muito livre, podemos fazer exposições do que quisermos. A única alteração, talvez, é que sinto que a minha equipa tenta estar em sintonia com aquilo que se passa em Hong Kong. Por isso não vou dizer que não trabalho com determinados artistas por causa do que se passa na China. Para nós a arte vem primeiro. E Hong Kong tem um nível muito elevado de aceitação de ideias diversas. Temos grandes nomes, os clássicos, mas também intervenções mais arrojadas, contemporâneas. Intervenções que exploram os limites, não só a nível político, mas também artístico. Podem não ser sempre bem sucedidas, mas é importante tê-las no festival.
Há alguma coisa que seja um factor de diferenciação das artes performativas contemporâneas na Ásia?
Hong Kong é uma cidade muito cantonesa e muito do teatro que fazemos é em cantonês. Será isso um factor distintivo? Não sei, é teatro. Temos todos os géneros que são feitos em qualquer lado. Talvez uma das coisas diferentes seja a ópera em cantonês, que é algo que nasceu aqui. Ao longo de 44 anos de festival, em praticamente todas as edições, a ópera em cantonês integrou o programa, entre obras-primas do repertório e novas criações. Em alguns anos estivemos centrados nos novos artistas.
Quando começou a trabalhar neste sector tinha alguma área preferida?
Qualquer área em que esteja a trabalhar é a minha preferida. Penso que me senti atraída pelas artes performativas no primeiro jardim-de-infância em que andei. Adorei sempre a música, a dança e o teatro. A ópera apareceu mais tarde, como costuma acontecer porque é mais sofisticada. Quando era criança assistia a óperas chinesas com a minha avó, mas depois esse género esteve arredado da minha vida durante algum tempo. Foi dez anos depois de ter regressado a Hong Kong que voltei a ver óperas em cantonês, e quanto mais ia mais queria ir. É preciso tempo para as artes performativas. E a maioria das pessoas anda demasiado ocupada e não tem muito tempo.
E praticou algumas dessas artes?
Sim, cantei, dancei, representei, dirigi. Fiz todas essas coisas, mas não acho que o deva fazer profissionalmente [risos].
Porquê?
Porque reconheço o talento quando o vejo e, da mesma forma, também sei quando não ele não existe [risos].
O que procura quando está a programar?
Há tanta coisa no mundo! É fantástico! Vemos muito mais trabalhos e artistas de que gostamos que aqueles que conseguimos apresentar. Actualmente as capacidades técnicas já nem são a questão. A escolha tem mais a ver com o que o artista tem a dizer, com o que tem de especial. Penso que a arte, sobretudo na música e no teatro, é mais reveladora do que se supõe. Dois músicos podem tocar a mesma peça e vai ter uma sonoridade diferente, apesar de as notas serem as mesmas. E é diferente porque é aquilo que eles são.