Espionagem ao Eliseu obriga dirigentes gauleses a voltar à dança da indignação

Espionagem ao Eliseu obriga dirigentes gauleses a voltar à dança da indignação


Diplomatas admitem que sabiam que a NSA ouviu a conversa de vários governos.


Seguimos com o som e a fúria, e desta vez cabe ao governo de França o papel de ofendido, reagindo com grande indignação a uma surpresa que, afinal, não parece ter apanhado ninguém desprevenido. O site WikiLeaks divulgou novos documentos da NSA (Agência de Segurança Nacional norte-americana) que, entre 2006 e 2012, espiou as conversas privadas de vários líderes franceses, incluindo três presidentes – Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande – e dezenas de figuras de topo dos executivos.

O escândalo já nasceu morno, tendo em conta que a organização que espia os espiões tinha já conseguido fazer estragos nas relações diplomáticas entre os EUA e outro grande aliado, a Alemanha. Em Outubro de 2013, com os documentos divulgados pelo antigo consultor informático da NSA Edward Snowden, e que dizem respeito às actividades da agência no mesmo período, o mundo soube que o telemóvel de Angela Merkel fora alvo de escutas, o que obrigou a Casa Branca a autopenitenciar-se, com Barack Obama a tomar uma série de medidas para limitar o terreno de caça da NSA, particularmente no que toca a acções contra aliados. Este mês, o Ministério Público alemão engavetou a investigação ao assunto, supostamente por falta de provas.

No ano passado, após uma visita oficial a Washington, Hollande parecia ter apaziguado as suas preocupações, afirmando ontem que “as autoridades americanas adoptaram [então] compromissos que devem ser recordados e estritamente respeitados”. No fim da visita, depois de ser informado sobre a espionagem no Eliseu, o líder francês declarou o assunto arrumado. Mas ontem o tom mudou ligeiramente e Hollande convocou de emergência uma reunião do Conselho de Defesa para discutir as novas revelações, vindo depois dizer que o comportamento norte-americano era “inaceitável” e que não irá “tolerar quaisquer acções que ponham a segurança do Estado ou a protecção dos interesses franceses em causa”.

À luz do que já se sabia, as anotações dos espiões entregues pela WikiLeaks ao jornal online francês “Mediapart” e ao diário “Libération” não trazem nada de muito estimulante. Consistem sobretudo na longa lista de dirigentes franceses que foram alvo da atenção da NSA, o que levou o primeiro-ministro Manuel Valls a falar num modelo de “espionagem sistemática”, com o seu partido (PS) a referir como esta demonstra “uma assombrosa paranóia de Estado”. As revelacões mais curiosas são três, uma para cada presidente. Em Dezembro de 2006 são seguidas as manobras de Chirac para, através de instruções muito detalhadas, manobrar o ministro dos Negócios Estrangeiros à altura, Philippe Douste-Blazy, de modo que este tentasse influenciar a nomeação de Terje Rød-Larsen para a equipa de Ban Ki-moon, no cargo de vice-secretário-geral ou outro de “responsabilidade semelhante”. Segundo as notas do espião que seguia o caso, os cuidados de Chirac seriam motivados pela pouca confiança que tinha no ministro, que no passado tinha “demonstrado amplamente a sua propensão para fazer observações inoportunas ou incorrectas, o que o levara a ser alvo de várias reprimendas do presidente”.

Quanto a Sarkozy, o que as notas do espião que o escutava dão a entender é que não havia dúvidas quanto à mania das grandezas do ex-presidente conservador e candidato às presidenciais de 2017, que em 2008 se sentia “o único homem capaz de resolver a crise financeira” mundial e que se queixava das dificuldades de Paris e Washington em pactuarem no sentido de uma maior colaboração entre os seus programas de espionagem.

O documento mais recente é de Maio de 2012, e nele a NSA relata como o recém--investido Hollande tinha sérias preocupações quanto à saída da Grécia da zona euro e como encontrou em Merkel alguém mais preocupada com o pacto orçamental europeu, alguém que não ia ceder perante o cenário da crise grega, organizou reuniões secretas com a oposição, os social-democratas alemães. A ideia que lhe fora sugerida pelo então primeiro--ministro, Jean-Marc Ayrault, pode vir a ser um dos aspectos mais sensíveis destas revelações, com a quebra de protocolo de Hollande a deixá-lo exposto.

 Os protestos em França vieram de todo o espectro político, com a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, a afirmar que os novos dados mostram que os EUA “não são um país amigo”. E há também reacções de alguns dirigentes espiados. Pierre Lellouche, ex-secretário de Estado do Comércio, diz que se trata de “um comportamento indigno e lamentável entre nações democráticas”.

Mas talvez o mais revelante nestas revelações seja o seu timing. Os deputados franceses tinham agendado para o final do dia um voto sobre um projecto de lei que autoriza as autoridades a procederem à recolha maciça de dados dos seus cidadãos na internet e colocar escutas telefónicas sem controlo judicial – isto sob o pretexto de aumentar a capacidade de resposta à ameaça jihadista. Uma emenda de última hora especifica que os agentes franceses podem espiar estrangeiros de visita ao país, mas que para isso terão de pedir autorização ao primeiro-ministro. O governo veio entretanto anunciar que essa cláusula será eliminada, uma vez que a considera inconstitucional.

Bernard Debré, um membro do Partido Republicano, chefiado por Sarkozy, escreveu no seu blogue: “Os políticos dizem-se espantados por terem sido espiados pelos americanos! Que ridícula hipocrisia. Há anos que toda a gente é espiada pela NSA, que foi acusada por senadores e governantes e reduziu drasticamente as suas operações. Ao mesmo tempo, a França segue na direcção oposta.”

Sarkozy não comentou até ao momento as revelações, mas se vários ex-ministros e conselheiros seus denunciaram a prática, o seu antigo conselheiro diplomático, Jean-David Levitte, cortou com a converseta da indignação ao afirmar que as notícias não o surpreenderam, adiantando que enquanto embaixador francês nas Nações Unidas sempre soube que estava sob escuta. “A partir do momento em que sabemos o que se passa, adaptamos o nosso comportamento”, disse ao “Mediapart”.

A secundar esta noção, Arnaud Danjean, um antigo membro dos serviços secretos franceses e actual deputado europeu do Partido Republicano, disse que não havia nada de novo nas revelações, acrescentando: “É tudo muito emocional, mas de um ponto de vista técnico e geopolítico não há nada de novo em vir dizer que os espiões espiam. Quando se é diplomata, qualquer um entende que é um alvo. Quando se está na esfera pública, parte-se do princípio que os outros países têm interesse em nós e adoptam-se medidas defensivas.”