É o terceiro álbum, mas conta quatro discos, porque também há um EP. Márcia, que seguiu por “caminhos tortos” até vir dar à música, começou a compor cedo, apesar de entretanto ter feito o curso de Belas-Artes e ponderado um percurso de documentarista. Sobre este quarto trabalho, olhado de dentro para fora, diz que revela uma evolução sonora, um crescimento tanto profissional como pessoal, que se espelha na “fase boa” que está a viver.
Diz sobre este “Quarto Crescente” que tem algo de nocturno e de lisboeta.
Sim, é um disco um bocado urbano e com uma solidão típica desse meio, mas não só. Acho que há um crescimento, pelo menos gosto de pensar assim. Toda a gente acha que a minha música é melancólica e eu gosto de música melancólica porque ela me põe em sintonia comigo própria, e isso é muito positivo. A música, para mim, sempre foi uma maneira de desabafar, de me sentir acompanhada. Apesar disso, não gosto que as minhas canções sejam apenas um desabafo desesperado. Eu tenho sempre esperança, nunca acho que é o fim. Já passei por tanta coisa e há uma música que fala disso no disco que é o “Lado Oposto” (antes chamava-se “Sem Sentido”), mas não vou assentar aquilo que é feio. É preciso assumir que houve essa tristeza, mas depois procurar o sol e o brilho.
O que serviu de inspiração ao nome?
Este é o meu terceiro álbum, mas para mim é o meu quarto disco, porque lancei um EP primeiro. Acho que a intimidade deste álbum é muito escancarada e isso é um amadurecimento para mim, um quarto que cresceu. Penso muito nos títulos, por isso o nome tem muito sentido para mim. Quarto crescente é a lua, uma fase positiva, em que semeias e as coisas dão frutos.
Quanto tempo demorou a crescer este disco?
Por acaso, foi um disco muito moroso. Há um ano tinha já algumas canções, mas imagino que já tenha sido há ano e meio que comecei a pensar nelas e em que disco é que ia fazer agora. Gosto de ser surpreendida por mim própria e acontece--me muito, porque deixo as coisas virem naturalmente e tento sempre não censurar, apesar de ser difícil, porque autocritico-me muito, ponho-me muito em causa. É a minha maneira de trabalhar e também aqui há um crescimento. Fiz Belas-Artes e isso marcou-me profundamente.
Em que sentido?
Tem-se reflectido bastante. Tirei pintura, segui por “caminhos tortos” e vim dar à música, mas componho desde os 13 anos. Fui fazendo aquilo que queria fazer. Com 18 anos recusei a proposta de uma editora porque achei que não tinha nada a ver comigo. As belas-artes vêem-se talvez nas imagens que eu crio. Quando faço uma música, consigo imaginar o vídeo dela, mesmo que acabe por não o fazer – felizmente, sou casada com um grande realizador. As músicas têm para mim uma imagética e neste disco aconteceu-me muito estar no Cais do Sodré, ver os carros a passar e também o rio, daí que ache o disco urbano e talvez um pouco nocturno. Mas a maior influência das Belas-Artes foi a experiência do curso. Tinha de legitimar muito aquilo que criava e isso trouxe-me o vício de pôr em causa as coisas, de as fundamentar e entender. Por outro lado, na música era livre de desabafar, sem justificar nada a ninguém.
Diz que, criativamente, o processo não se afastou muito da linha anterior, mas a nível da estética de composição houve algumas mudanças. Fale-nos um pouco sobre elas.
Comecei as fazer as maquetes, desenvolvi-as sozinha, com algumas sonoridades novas para mim. Fiz canções, como a “Urgência”, em que o mote foi uma linha de baixo que gravei primeiro com a voz. Há músicas que são com teclados e é a primeira vez que toco com teclados.
As tais surpresas que vêm ter consigo?
Sim, essas e algumas letras que apareceram tão directas, como a “Linha de Ferro”. Isso foi uma surpresa e não censurei. Em relação aos teclados pensei: “Se calhar não toco isto muito bem, mas deixa lá ver.” Acho que componho com a voz; mesmo guitarra, nunca toquei muito bem nem me esforcei com aulas, por exemplo. O meu instrumento é a voz, tive muitas aulas, frequentei o Hot Club para estudar voz, aulas privadas de canto, dei aulas de voz. Com a voz e a melodia é que eu faço as canções. Passou essa fase, surpreendi–me em algumas coisas, porque ainda por cima, em vez de fazer a música toda e depois a letra, ia compondo no computador com aqueles teclados e a letra ia saindo. Fui delapidando, depois a censura alguém haveria de a fazer [risos].
Como surgiu a oportunidade de gravar no Brasil com o Dadi Carvalho?
Com a editora, pusemos alguns nomes em cima da mesa, falámos da Feist, da Marisa Monte. E quando surgiu o da Marisa Monte, falámos do Dadi, porque ele tem sido um colaborador assíduo dela e a Carminho também tinha estado a gravar com ele. Acabou por ser por intermédio da Carminho que percebi que o Dadi era essa pessoa e foi uma bênção conhecê-lo, é um homem incrível e é um entusiasta. Acho que foi a pessoa que mais elogios me fez até hoje e isso deu-me uma força enorme para acreditar nas canções e no passo que estava a dar.
O Criolo e o Vinícius Cantuária participam neste disco. Foi através do produtor que se deu essa colaboração ou já tinha havido outros contactos?
Foi através dele, se bem que eu conheci o Criolo aqui em Portugal. Fiquei rendida quando vi o concerto dele em Janeiro. Já conhecia o trabalho dele e achava lindo quando ele cantava. É um hip-hopper diferente, tem muita melodia na voz e muita espiritualidade a cantar. Fui ao Rio de Janeiro, pela primeira vez, e uma das coisas que me impressionou imenso é a carga da floresta na cidade. E acho que é uma carga muito mística que se sente em alguma música brasileira e nos brasileiros em geral. Conhecendo o Rio de Janeiro, deu para entender porque é que eles são tão espirituais. E o Criolo é um óptimo exemplo disso, é muito dramático, directo ao coração. É tudo fortíssimo.
Sente-se também uma certa tropicalidade em certos temas do disco. Foi o ambiente do Rio que influenciou ou o dedo do Dadi Carvalho?
A “Insatisfação” tem muito do Dadi, mas talvez tenha também um bocado dessa atmosfera da cidade. O Manuel Dordio, que é o meu guitarrista, também foi connosco e acabou por acompanhar o disco todo. E lá ele fez aquelas guitarras na “Insatisfação” que são supertropicais. O Manuel é completamente aficionado do Brasil. E para mim a imagem deste disco tem muito a ver com o Rio de Janeiro, a selva urbana com a selva natural. Há esse contraste, que existe também em Lisboa. A ponte que nos une termina com o mesmo Redentor lá em cima. Acho engraçado porque há uma grande analogia entre o Rio e Lisboa. Digo que o disco tem muito de Lisboa, mas tem imenso do Rio de Janeiro também.
Entre os discos “Dá” e “Casulo” foi mãe. Isso reflectiu-se?
O “Casulo” é um disco mais interno, este “Quarto Crescente” está entre os dois, é mais expansivo, mas também é muito íntimo, porque eu escrevo sobre uma verdade que é só minha. Descobri isso à medida que fui fazendo vários trabalhos. Este disco olha de dentro para fora.
O que partilha nas redes sociais também é, em parte, pessoal, como a admiração pelo seu pai.
Se não fosse o meu pai, não tinha seguido Belas-Artes. Ele era pintor e deu-me muita força. É uma pessoa que admiro bastante. Já é octogenário, nasceu nomeio rural do Alentejo e poderia ter sido uma pessoa machista e fechada, mas não é. Foi ele que me apresentou o Zeca Afonso, a liberdade. Talvez não tenha feito o que queria realmente, foi projectista numa empresa grande, mas na verdade acho que ele gostava de ter sido só pintor. E ele dá-me muita força para continuar o meu caminho, para acreditar sempre. Acho que tirei dele esta vontade de não ceder às vicissitudes, ir tentando, dar a volta e ir em frente.
E a Márcia deste “Quarto Crescente” mudou muito?
Se falarmos em termos sonoros, acho que mudou muito, que cresceu, e tenho orgulho nisso. Em termos pessoais ou de de-senvolvimento, houve coisas que mudaram na minha vida e ainda bem, estabilizei, tenho uma filha, pretendo ter mais, tenho uma casa, paz, um óptimo companheiro. Há outras coisas que se mantêm: não muda a minha vontade e a minha maneira de fazer música. Continuo a querer olhar para dentro para falar para fora e a ir procurar aquilo que quero dizer, mas ainda não sei. Acho que esta é uma fase boa, dou muito valor àquilo que tenho.