Finalista do Prémio Leya em 2014, “Perguntem a Sarah Gross” é o romance de estreia de João Pinto Coelho. Nascido em Londres em 1967, o autor viveu também nos Estados Unidos, outro dos cenários deste romance.
Há alguns anos integrou duas acções do Conselho da Europa em Auschwitz, a cidade que se tornou sinónimo do mais conhecido campo de extermínio da História. Mas o escritor garante que, mesmo que não tivesse passado por lá, esse seria sempre o cenário da sua história.
Diz que a ideia seminal deste seu primeiro livro surgiu em 2009, quando visitou campos de concentração na Polónia. O que o fez partir daí?
No imediato, nada de palpável. Era ainda uma imagem bastante desfocada. Depois, com o tempo, essa ideia passou a ocorrer-me cada vez com mais frequência, mais definida. E decidi dar-lhe atenção. Até porque já não vinha sozinha, aparecia muitas vezes acompanhada por outra ideia, outra personagem. O propósito era claro, havia uma história por contar. Tinha de haver alguma coisa antes de o inferno se instalar. E foi através do olhar de duas famílias judias que decidi contar como se transforma uma cidade feliz numa coisa obscena como Auschwitz.
Que desafios encontrou?
Não foi fácil. A História não reserva espaço à cidade; o campo de concentração sobrepõe-se a tudo. Tive de regressar à Polónia, procurar debaixo das pedras, falar com sobreviventes, com habitantes da cidade que assistiram com os próprios olhos a esse período devastador. Muito do que descobri não pude reproduzir na narrativa, não soube como fazê-lo. Está lá, mas apenas entre as palavras que escrevi. E por isso o livro é duro. Não poderia deixar de o ser.
A acção desenrola-se também noutro país e noutro tempo. Porquê?
Existe uma pequena cidade do Connecticut chamada Shelton que tinha de aparecer. Todos temos memórias instaladas em lugares concretos, são os nossos territórios, os sítios aonde queremos regressar sempre. Shelton é um desses lugares. Visito-o vezes sem conta, mesmo não indo lá há quase 30 anos. Convocá-lo para o meu romance significou tornar esse regresso tangível. Não concebo escrever em cenários de papel. Preciso de me ausentar enquanto escrevo, e para isso prefiro viajar até onde me apetece estar. E é por isso que os Estados Unidos surgem no romance. Já no que respeita ao tempo, tive menos liberdade, como é natural. A narrativa estabelece uma ligação intocável entre o que se passa na América e o que ocorreu na Polónia na primeira metade do século XX. Como algumas personagens percorrem os dois contextos, as datas teriam de ser aquelas.
O facto de ter nascido em Londres e ter vivido em Lisboa, mas também em Nova Iorque, influenciou esta multiplicidade de espaços e tempos?
Não sei até que ponto os itinerários da minha vida possam ter determinado essa multiplicidade. Seguramente emprestaram-me contextos para o livro, e nesse aspecto, sim, a influência é óbvia. Por outro lado, Auschwitz, o cenário polaco do romance, apareceria sempre, mesmo que eu nunca tivesse passado por lá.
Centra o romance também em personagens femininas. Porquê?
Porque, sobretudo no caso de Kimberly Parker, a quem atribuí uma voz na primeira pessoa, precisava de me desencaixar da personagem. De outro modo, a escrita iria parecer-me demasiadamente autobiográfica, e isso era um desconforto a evitar a todo o custo.
Licenciou-se em Arquitectura e em Nova Iorque trabalhou num teatro profissional. Como é que a escrita apareceu na sua vida?
Até há pouco, a linguagem da minha criatividade era o desenho, e não a escrita. Acontece que desenhar é escrever em traços largos, vem tudo do mesmo sítio, até os terminais são os mesmos. E quando a criatividade se torna uma pulsão, pode exprimir-se em diferentes disciplinas. A minha aventura literária, enquanto autor, acontece porque a escrita me pareceu naquele momento o único suporte adequado para a história que queria contar.
Qual foi o livro que mais o marcou até hoje?
Não consigo eleger apenas um, porque a literatura foi-me deixando marcas desde muito novo. Mas, postos de lado os livros extraordinários das minhas primeiras leituras, tenho de falar de “Se Isto é um Homem”, de Primo Levi. O que ainda hoje me impressiona nesse texto é a lucidez. E só é lúcido em Auschwitz quem aceita prescindir das palavras inventadas pelos homens livres, como o próprio Levi reconhece. E essa abstenção, que ele vai usando para destapar o inexprimível, foi um aviso permanente ao longo da escrita do meu próprio livro.
E, além desse, que outros escritores lhe servem de referência?
Todos os que li mas, descontando o que referi antes, nenhum em particular. As referências que encontrei alcançaram sempre mais longe do que a escrita dos outros. Lembro-me, por exemplo, do cinema, do documentário, de Alain Resnais, de Claude Lanzmann ou, mais recentemente, de Costa Fam, todos eles autores à procura das imagens aceitáveis para falar de Auschwitz. E todos eles com respostas tão diferentes.