Chegamos ao Castelo para uma visita guiada que se promete diferente do convencional. Não há mapas para seguir, datas e nomes de reis que acabam esquecidos, nem bandeirinhas ao alto a identificar o grupo. O bairro trocou essas formalidades pela presença de Ana e Catarina, que podem não debitar dados históricos em catadupa, mas conhecem o bairro como poucos. Ana faz a primeira paragem em frente àquela que serve agora como única entrada e saída do bairro, desde que a chamada entrada do Menino de Deus está em obras “que parecem eternas” para Ana, moradora do Castelo desde sempre.
“Estou em vias de extinção, sabe?” Aos 19 anos, é das poucas jovens que ainda permanece num dos bairros mais típicos da cidade. “Além de mim, conto uns 15 jovens. Fora isso, são só velhotes.” Os poucos que ainda saem de casa cumprimentam quem passa, num cruzar de bons-dias personalizados ao qual se junta sempre o nome. “Este é um bairro especial, funciona quase como uma família”, conta Ana, enquanto responde a quem se mete com ela pelo seu novo trabalho.
Há duas semanas que mostra aos turistas o bairro que conhece como casa, de um modo tão informal que abre espaço para sabermos a escola em que andou, a casa onde vive ou a rua onde esfolou os joelhos em brincadeiras de miúdos. Foi quando procurava trabalho, depois de acabar o secundário, que surgiu a oportunidade de fazer parte do projecto Moralá Castelo, criado para combater a tendência de desertificação do bairro e procurar o equilíbrio entre moradores e turistas.
Raquel Morais e Patrícia Ramalho são arquitectas e as responsáveis por esta ideia, que começou por ser posta em prática em regime de voluntariado mas entretanto ganhou o impulso financeiro da câmara, “que deu para o arranque, mas não dá para a continuação”. Raquel espera a chegada de outro tipo de financiamento que não faça morrer o projecto, tendo em conta que o único dinheiro que entra são os dez euros cobrados por visita. “Queremos também abrir uma oficina/loja para venda de produtos artesanais feitos por pessoas do bairro”, explica. Esta é a ideia que vai ocupar o primeiro piso do centro comunitário que criaram no número 9 da Rua do Recolhimento. Os espaços do primeiro andar já servem de ateliê para workshops, ponto de internet e consulta de jornais diários, e até para sessões de cinema. “Fazemos uma matiné de 15 em 15 dias, sempre com filmes portugueses”, explica-nos Catarina. “Sabe que muitos dos nossos espectadores já não conseguem ler legendas.”
É ela que toma agora as rédeas da visita. Não mora no bairro só porque ainda não arranjou casa. “O meu namorado vive cá e queremos uma casa para os dois, mas ou são pequenas, ou são caras, ou são para turistas.”
A paragem seguinte mostra um refúgio que ainda escapa a quem passa. O Jardim das Oliveiras está aberto há 15 dias e serve de miradouro para a cidade. É aqui que as duas revêem a matéria estudada. “Ali é o Panteão, ali o Mosteiro de S. Vicente e ali a Igreja de Santo Estêvão”, aponta Catarina, dando um seguimento ao olhar que vai da esquerda para a direita, acabando no Tejo.
“Estávamos perto do rio, estrategicamente situados num ponto alto e auto–suficientes em termos de água – as condições perfeitas para que fosse aqui que começasse Lisboa”, acrescenta Ana. À saída deste espaço ainda imaculado e longe dos olhares dos turistas está a mercearia do Sr. Hermínio e da D. Natividade, a única que se mantém aberta no bairro. “Chegámos a ter seis, mas ninguém resiste à falta de moradores e à concorrência das grandes superfícies”, conta-nos Hermínio, morador do Castelo há 46 anos. Já à porta, Ana revela que mesmo sendo a única, o casal já teve a proposta para que seja transformada num hostel. “Este deixou de ser um bairro para moradores e passou a ser um bairro de turistas”, admite. E os tuk-tuks? Ana nem precisa de responder. O revirar de olhos não deixa dúvidas. “Já ninguém os aguenta”, admite.
A visita segue, o que traduzido em linguagem de colina significa mais uma subida. A paragem é feita em frente ao vencedor do concurso de tronos de Santo António, instalado na entrada do Grupo Desportivo do Castelo. Falar-se em Santo António seria o mesmo que falar na semana-auge do bairro, não fosse este ano uma espécie de tema tabu. “Não vamos participar porque houve uma confusão e a inscrição não foi feita a tempo”, conta Ana que, sendo marchante há sete anos, ainda se lembra de quando o grupo de 50 pessoas se completava apenas com os moradores do Castelo.
“Agora temos de ir buscar gente de fora”, conta, enquanto folheia uma capa de fotos que a mostram vestida a rigor em vários 12 de Junho. “E qualquer dia temos turistas a marchar pelo Castelo”, interrompe D. Carmita, dona de uma das casas mais peculiares do bairro. À porta tem dezenas de vasos, um animal de peluche e um azulejo que avisa “Cuidado com o cão”. “A fachada desta casa já é vendida até como postal. É verdade, comprei no outro dia”, conta Catarina.
Carmita faz uma pausa no programa da manhã da TVI que a fazia dar gargalhadas que se ouviam à distância para lembrar o passado. “Vivo cá há 64 anos. Sou fã do meu país, adoro a minha cidade e amo o meu bairro.” Mesmo sem esforço, cada frase que lhe sai da boca soa a slogan bairrista. O único lamento vem do facto de a casa onde vive não ser a original. “A reabilitação urbana do bairro ia durar nove meses e já lá vão 16 anos.” Mas tal como o bairro, também Carmita não perde o vigor. “Nasci aqui e tenho uma certeza: é aqui que vou morrer.”