Kornél Mundruczó. “O mundo não é o mesmo quando saímos da sala de cinema”

Kornél Mundruczó. “O mundo não é o mesmo quando saímos da sala de cinema”


Falámos com Kornél Mundruczó, o húngaro que realizou “Deus Branco”.


Lili (Zsófia Psotta) vai deixar de viver com a mãe e passar a ter morada fixa com o pai. O maior de todos os problemas é Hagen. Daniel (Sándor Zsótér) não quer animais em casa e decide que o bicho deve ficar na rua, ao abandono. O que acontece depois é uma simples mas ambiciosa analogia com a sociedade, em que os rejeitados decidem tomar o controlo e iniciar a revolta. Mas em “Deus Branco” a revolta é feita por 300 cães à solta pelas ruas de Budapeste, com vontade e marcha organizada, decididos e com objectivos claros. O realizador, Kornél Mundruczó, é o primeiro a admitir que este não é um filme sobre animais, ainda que sejam eles os protagonistas. Diz-nos que nada foi fácil mas que só assim se consegue mudar alguma coisa.

Este parece um filme bastante difícil de fazer, começando pelo aspecto logístico. Foi assim?

Sim e não. A maior dificuldade na verdade nem esteve relacionada com o acto de filmar, com a rodagem em sim. O mais complicado foi mesmo a preparação, tudo o que tivemos de fazer antes de começar a rodar o filme. Por exemplo: os ensaios com os animais e as câmaras começaram a ser feitos meio ano antes do início dos trabalhos do filme. E durante esse meio ano foi preciso encontrar o melhor método, tomar decisões que haveriam de influenciar o filme todo. E mesmo com estes ensaios, a preparação foi uma coisa contínua.

Já durante a rodagem.

Sim, porque gravávamos durante uma semana e na semana seguinte ensaiávamos o que iríamos gravar daí a duas semanas. Sempre assim, durante toda a produção. Demorámos quase quatro meses a rodar o filme todo. Era preciso fazer tudo isto para fazer com que os animais estivessem vivos no ecrã, ao contrário do que acontece em muitos outros filmes.

O que é que acontece noutros filmes?

Nada. Os animais aparecem mas nada acontece. Não queria isso.

E sem efeitos visuais.

Exacto. Foi um dos nossos princípios fundamentais. Queria ter os animais com as suas reacções e emoções reais. E além disso queria também ter apenas animais de abrigos, de canis, nada de cães de raça pura com hábitos burgueses, nada disso. E no início foi muito difícil sequer encontrar gente que quisesse financiar este filme, ou até treinadores profissionais disponíveis para trabalhar connosco. E sem eles nada seria possível. Acabámos por descobrir génios na área, que fizeram um trabalho impossível, impensável mesmo.

Mas teve que haver um casting primeiro, certo?

Claro que sim, um processo muito semelhante ao que acontece com os actores, foi preciso descobrir os intérpretes certos. Sobretudo Hagen.

O cão principal.

Sim, o protagonista do filme, na verdade. Era um papel muito difícil. Precisava de um cão que fosse um herói, pronto para tudo, mas que também fosse divertido, que fosse um brincalhão. Parece um cão de família mas estava pronto para as cenas mais agressivas, para ser um líder. Para encontrar um cão assim, que pudesse mudar a sua postura tantas vezes, foi muito difícil. Daí dizer que o processo tenha sido como aquele que é feito para escolher actores. Tive que ver muitos cães, para perceber o que eles podiam ou não fazer. E os cães são tão inteligentes, foi surpreendente. Mas tive fazer compromissos.

Não fez tudo o que queria?

Não consegui. Porque só ao longo da realização do filme é que fui percebendo o que eles conseguiam ou não fazer. Por exemplo, na história original tinha um momento em que os cães corriam por Budapeste e depois atravessavam o Danúbio. Bom, tive de me render à evidência que seria impossível ter todos aqueles cães a fazer isso e lá mudei o plano. Ao fim e ao cabo, os cães acabaram por escrever o argumento comigo.

“Deus Branco” é um filme com muitos cães mas não é exactamente sobre os cães…

Não, e por isso o mais difícil foi encontrar quem confiasse em mim, porque todo o mercado era completamente contra o projecto. Ninguém dizia encontrar potencial comercial no filme. Porque não é um filme de adolescentes mas também não é só para adultos, não é de animais mas tem poucas pessoas, é um drama mas também é um thriller e um filme de acção. A catalogação tornava tudo muito complicado. Nem eu sei bem descrever ao certo que aqui se passa. Mas também não me preocupa, o que interessa é que quem veja o filme decida como o que descrever e sentir. O público, as pessoas que gostam de ver filmes, ao contrário do que possa parecer, não têm gostos nem decisões absolutas, não são dogmáticas.

Mas depois conseguiu algumas conquistas face a isso, ganhou prémios, foi quase nomeado aos Óscares. Isso resultou como uma vitória?

Claro que tudo isso foi bom mas não fez com que o mercado mudasse e o mercado é muito conservador, as decisões são sempre muito previsíveis. O melhor mesmo foi depois dos prémios, as reacções à saída das salas, foram essas reacções que levaram o filme a este nível. E houve outro problema. É que muita gente entendeu este filme como uma crítica especialmente apontada à sociedade húngara e isso não foi muito bem aceite junto de algumas pessoas. O que muitos não entendem é que é uma crítica geral. Ainda que seja óbvio que na Hungria as coisas não estão bem, mas sou o primeiro a não ter prazer nenhum em reconhecer isso. E é claro que a ideia geral do filme foi compreendida por todos, independentemente do país.

E qual é a situação particular da Hungria?

Os últimos anos foram muito difíceis. Primeiro por causa da crise económica, claro. E um medo geral de existir, receio em relação ao futuro. A crise económica pode estar a passar, ou a começar a passar, mas há uma crise moral instalada e essa é ainda mais difícil de resolver. Há cada vez mais um sentimento nacionalista, há cada vez menos liberdade, os políticos são populistas… é difícil encontrar um compromisso entre tudo isto.

E enquanto artista…

Enquanto artista não quero fazer política mas tenho de criticar a sociedade, tenho de criar diálogo em volta dos problemas. E sei que a Hungria é só mais um exemplo daquilo que a Europa é hoje.

Portanto, com este filme há uma vontade deliberada de tentar mudar as ideias de quem vê o filme?

Claro. Se não acreditasse na possibilidade da mudança nem me metia nisto. E faço isto porque lembro-me de sentir esse tipo de efeito quando era miúdo e ia ao cinema. O mundo não é o mesmo quando saímos da sala de cinema. A arte pode mudar, a arte deve mudar, não nos podemos esquecer. O cinema húngaro é um bom exemplo disso.

Um exemplo com tradição mas também com renovado impulso, é assim que o vê?

Também. O cinema húngaro tem uma tradição e uma história muito grande, seja através de realizadores que saíram para Hollywood seja com os que fizeram os filmes a partir de dentro do país, ao longo de todas as transformações sociais e políticas ocorridas. O que aconteceu entretanto foi um período em que a corrupção minou a produção cinematográfica. Isso está finalmente a desaparecer e há uma nova estabilidade que promove mais e melhor criatividade.

Ainda que este filme não seja necessariamente sobre os animais em questão, filmes com ou sobre animais fazem parte das suas influências?

Não, de todo, nunca fizeram. Aliás, em vários filmes que fiz anteriormente tinha cenas com animais e acabei sempre por eliminá-las, nunca foi a minha cena. Tenho algum gosto por filme com monstros, “Alien”  ou “Godzilla”, mas acho que o que sempre me fascinou nesses casos é o nosso medo comum enquanto espécie, os terrores que todos temos e como é que os gerimos.

Esse medo comum, pode fazer às pessoas ou que faz aos cães neste filme, à revolta e a uma tomada de posição mais violenta?

Mais tarde ou mais cedo sim, se tudo continuar como está. Até porque estes cães aparecem no filme com um lado humano muito forte e esse lado que os leva a fazerem o que fazem.

Tem um cão?

Cresci com cães, mas agora não tenho nenhum… a não ser 300, vá, parece-me um bom número?