Não é preciso ir longe para descobrir um cemitério que seja atracção turística. Mas aqui os números contam outra história. Fiquemos por enquanto só com este: em Glasnevin estão enterradas mais pessoas do que há gente viva em Dublin.1,5 milhões de urnas, enquanto na cidade não se passeiam mais de 1,2 milhões de pessoas. Noves fora, Glasnevin é também parte activa do roteiro turístico da capital da República da Irlanda e é, desde o ano passado, estrela maior de um documentário que serve de visita guiada a esta cidade dos mortos e de diário dos vivos que por lá trabalham.
Glasnevin funciona desde 1832.Então era o único cemitério oficial para os católicos, agora (há várias décadas, na verdade) é considerada a necrópole nacional. Ao longo de quase 200 anos transformou-se também no destino em jeito de romaria para os que procuram prestar homenagem a algumas das mais importantes figuras da história da Irlanda, de Daniel O’Connell a Michael Collins – a mais popular das figuras enterradas no cemitério, que “recebe flores e balões”, como explica a florista que também é personagem do filme.
Tudo isto está inscrito na lista de factos do documentário assinado por Aoife Kelleher. Dizia a realizadora ao jornal irlandês “Independent” que este é “um local icónico para a história irlandesa. Há muitas figuras, da política às artes e à literatura, o que torna Glasnevin um sítio perfeito para fazer um filme”. Mas o que mais surpreende e cativa em “One Million Dubliners” é a equipa de gente viva que faz o quotidiano do cemitério, os que o mantêm pronto a receber visitantes, que lhe conhecem os cantos e as histórias mais ou menos macabras, os que pouco falam mas tudo fazem.
De entre todos estes, Shane McThomais é aquele que o filme acaba por transformar em herói. O inesperado deu uma ajuda a este resultado final: Shane, o guia de Glasnevin, o melhor guia de cemitérios que alguém vivo alguma vez viu – provavelmente o melhor guia de todos os guias de toda a história, coloquemos a coisa neste nível de categoria –, morreu poucas semanas após o fim da rodagem, ainda o processo de montagem estava a decorrer. Antes disso, na história de “One Million Dubliners”, é o maior conhecedor da área, é o que melhor fala com quem lá trabalha diariamente e o que recebe na perfeição qualquer visitante, do mais concentrado dos turistas à menos focada das crianças. Pode não ser um historiador oficial, com carimbo e carta registada, mas é só isso que lhe falta. Segui-lo é um gozo, mesmo à distância.
Outros são tão dedicados como este Shane. Outra vez os responsáveis pelos quiosques das flores, os que coordenam as cremações e que dizem, a pés juntos, que “nunca ninguém se habitua”, apesar de ser “apenas mais um trabalho”. E os administradores de Glasnevin, que vão decidindo – se isto é possível – como dar a volta ao tal milhão e meio para acolher sempre mais funerais. Alguém dá conta do recado. Aoife Kelleher está lá para ver como tudo funciona, no sítio certo dos bastidores. No meio dessa correria, a autora do documentário soube também dar tempo de antena (e privilegiado) aos visitantes de Glasnevin. No meio destes encontrou, como explicou ao “Independent”, “gente que lida com o luto de uma forma muito sensível” e outros que “falam sobre as pessoas que perderam com a maior das naturalidades, até com vontade de partilhar todas as memórias”.
“One Million Dubliners” não é um simples olhar curioso e fácil para uma espécie de freakshow que é a rotina, os desafios e as maravilhas (isso mesmo) de um cemitério – sobretudo um com estas dimensões. É, primeiro, um trabalho documental com critérios e exigências. Ao mesmo tempo, uma exploração inteligente de um cenário pouco habitual.