A palavra “sida” surge uma única vez em palco. Mas são quase 40 minutos em que nada fica por dizer. Pela primeira vez há uma peça de teatro profissional em cena no país dedicada ao vírus, que só em Portugal afecta 30 mil pessoas. A ideia por detrás de “Minha Senhora” partiu de dois amigos actores, Marisa Carvalho e Flávio Gil. Desta vez foi ela quem escreveu o texto, uma homenagem a familiares diagnosticados com a doença, contou ao i. Ele é o protagonista e, sozinho em palco, experimenta as várias emoções associadas a um diagnóstico de VIH. O encenador Paulo César aliou-se ao projecto e agora todos partilham um objectivo: levar o espectáculo a todo o país e usar o teatro como arma de sensibilização e prevenção.
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“Gostávamos de ter apoio das autoridades de saúde para fazer essa apresentação e transmitir a mensagem”, diz Paulo César, com idade para se lembrar do início da epidemia do país e do estigma, que sempre associou a doença à homossexualidade e à boémia, quando se sabe não ser assim. Conviveu também ele de perto com um doente com sida e toda essa emoção foi vertida para o palco, para as luzes e para o drama de uma doença que Paulo César defende que não se deve omitir, mas pode ser transmitido com uma luz ao fundo do túnel. Acredita que não é tarde para esta mensagem, talvez seja mesmo a “altura certa”.
Para já a peça está em cena até ao final do mês na Academia de Santo Amaro, em Lisboa, às segundas e terças pelas 21h30. O trio do mundo do espectáculo associou-se à Abraço, que trabalha há mais de 20 anos com seropositivos e para a qual reverte parte das receitas de bilheteira. O destino dos donativos já está escolhido: reabilitar o serviço de psicoterapia da associação, explicou ao i Filipa Barbosa, da direcção da Abraço. Psicóloga de formação, Filipa diz-se emocionada com a história e a interpretação de Flávio Gil, um testemunho que não é verídico mas que a psicóloga diz assemelhar-se a muitos dos novos casos que chegam à associação.
Uma doença sem classes Flávio protagoniza um jovem bem-sucedido, de classe alta e com uma carreira internacional. Apanhou o vírus da sida em Nova Iorque, numa das muitas relações desprotegidas com que descomprimia do stresse do trabalho, com que “mascarava a vida de aventura”. Regressa a casa e tenta apresentar a sua nova companheira à pessoa que o criou. Fala-lhe de ser para sempre num mundo em que nada o é, da solidão, do medo, da culpa, do arrependimento, da vergonha. E por fim da esperança e do encontro consigo mesmo, da sua descoberta quando à primeira vista pareceria mais normal ter-se perdido.
Homenagear e dar esperança a todas as pessoas que passam por isto – e em Portugal há mais de mil novos diagnósticos por ano –, mas também insistir que o VIH não escolhe idades, sexo e estatutos sociais e económicos é um dos grandes objectivos do espectáculo, explicou ao i Marisa Carvalho, até agora mais habituada ao teatro de revista. Este é o seu primeiro trabalho “sério” e o seu maior cuidado foi, dentro da ficção, falar de uma preocupação comum que testemunhou na primeira pessoa: não existe razão para um doente com VIH se esconder ou pensar que é diferente. Nem para os que com ele privam se afastarem.
Marisa emociona-se com a reacção que a peça teve de colegas de profissão como Eunice Muñoz ou Luís Aleluia, mas sobretudo com as palavras daqueles que a inspiraram. E admite que também ela teve como primeira reacção perante o VIH recuar, atitude que defende ser necessário combater usando todas as forças, mesmo as da arte.
O jovem protagonizado por Flávio aceita a doença e trata-a com respeito. Mesmo assumindo que nem a vida inteira chegaria para se ter preparado, faz dela a sua senhora – a ideia que dá nome ao espectáculo. O fio condutor de toda a história é uma música original do cantor FF, que lembra que uma pessoa com VIH não deixa de ser quem é.