Sena denuncia esta democracia que é “uma arte do diálogo entre surdos”.
A sua grandeza não se discute, mas discute-se, como em tudo, a conveniência aos outros desta. Jorge de Sena sofre ainda de ser um poeta demasiado contemporâneo. Os seus restos mortais foram transladados há uns anos para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, isto 50 anos depois de ter partido para o exílio no Brasil e nos EUA. Foi exilado pelo nojo, pelo país pequeno que somos ainda todos nós, o país a que não pode perdoar, pelo amor que lhe teve, pelo amor que nunca lhe foi retribuído. Foi-lhe dado um jazigo “condigno”, tendo na altura a filha, Maria José de Sena, confirmado que era desejo do pai ser devolvido um dia à terra, que os anos se encarregarão de fazer mais sua do que daqueles que a pisam.
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A tristeza terrível e mágoa que os seus poemas elevam a um pranto nacional é própria de um génio que não se resguardava em simpatias, mas afrontava a medíocre governação e, por isso, sempre foi malquisto. É difícil, contudo, nacionalizar a sua obra. Não é menor a sua importância que a de Sophia, mas a ideia de que pudesse ser levado para o Panteão, como a amiga e correspondente de muitos anos foi no ano passado, não passaria pela cabeça dos senhorios do imóvel que tratam dessas questões. Podia estragar o ambiente. Afinal, para que Sena descansasse, a maioria de nós andaria bem desassossegado. Isso não impede que venha a tornar-se um símbolo, uma das vítimas predilectas da máquina mesquinha de promoções e silenciamentos que não deixou de se aperfeiçoar depois do 25 de Abril. Sena voltou, cheirou o ar e concluiu que estava tudo na mesma.
Porque este artigo encerra uma semana temática em que procurámos discutir a importância de algumas obras malditas ou proibidas, a pretexto de falarmos sobre a figura que, em nosso entender, melhor reflecte o conflito do grande intelectual português com o meio à sua volta, destacámos o seu livro “Peregrinatio ad loca infecta” que, se é dos mais emblemáticos, não tem como o ser suficientemente de uma obra vastíssima e multifacetada que, além da poesia, abarca o teatro, a ficção, a crítica, o ensaio e ainda a tradução. Este livro foi descrito pelo próprio poeta como um “esparso diário” dos seus exílios americanos, abrangendo a relação com a pátria portuguesa, que veio a encarar também como um lugar de exílio.
É neste livro que surge o poema que Sena dedica a Portugal, partindo para ele com um verso de Camões: “Esta é a ditosa pátria minha amada.” Mas logo lhe adianta que não, e trata de renegá–la, “porque eu não mereço/ a pouca sorte de ter nascido nela”. O que se segue é o exemplo mais feroz de um ataque à imagem que serviu sempre aos discursos que alimentam o orgulho patrioteiro, a lábia que serve aos que se propõem como filhos dignos da terra e a representam a uma luz que embeleza a história em favor da sua glória mítica. “Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta/ quanto esse arroto de passadas glórias.”
Grande parte da seu obra viria a ser publicada postumamente graças aos cuidados da viúva, Mécia de Sena. E foram os amigos, os poucos, os insistentes, que mais fizeram para não deixar que a sua memória fosse também esquecida. A contribuição de Jorge Fazenda Lourenço neste sentido é inestimável, devendo-se a ele a organização de alguns volumes em que a obra do autor é alvo de atenção crítica, num esforço para que ela não se perca num tempo em que o mercado dos livros representa cada vez menos um programa cultural.
A figura de Sena é absolutamente singular na cultura portuguesa pela forma como toda a sua obra contraria a distância a que a vida o obrigou. É uma obra de um pendor marcadamente realista, embora o seu insaciável desejo de conquistar novos territórios do conhecimento o tenha levado a gozar de um domínio fulgurante da abertura que o modernismo significou. Assim, a sua obra consegue ligar a vertente de denúncia social e moral à renovação que as vanguardas operavam não só ao nível da literatura, mas noutros horizontes artísticos. Sena representa a figura que é capaz de pôr em diálogo as sensibilidades que concorrem na modernidade e fazê-las fluir num discurso de tom fortemente pessoal.
A rispidez do seu tom nuns poemas, naqueles de cunho mais político, contrasta com a sua capacidade para capturar momentos de enlevo e de uma alegria estética quando se dedicava àquilo que o comovia. Como acontece no belíssimo poema que dedica a Édith Piaf que, na língua em que cantou, não mereceu certamente um eco mais alto que este: “Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,/ ou docemente lírica e sentimental,/ ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do “ça ira”,/ ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,/ dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,/ e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado/ nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma/ de não ter tido plenamente a carne que a traiu,/ esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,/ como exactamente a vida que os outros continuam vivendo/ (…) como melodias valsando suburbanas/ nas vielas do amor/ e do mundo.
Sena debateu-se com a tendência de alguma arte e, especificamente, da poesia portuguesa contemporânea para abdicar do poder de ser clara, de denunciar e assim assumir um papel social mais evidente. Segundo ele, “quase toda a gente, mesmo os melhores, vive na aflição e na inibição de não dizer nada claramente, de não mencionar nada concretamente, de não estabelecer conexões racionais e lógicas com experiência alguma – o que nada tem a ver com liberdade de imaginação ou com a experimentação linguística, e é apenas o resultado de décadas de meias-palavras cifradas”. A censura tornara-se auto-censura, a reboque da ideia de que a “poesia é coisa delicada e para delicados, em que parece mal e é mau escrever duramente e directamente, usando de termos ‘grosseiros’”. Em grande medida, Sena foi o oposto do sentido de moderação que marca o tom geral. Da política à poesia. “Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:/ infantilmente doentes de esquerdismo/ e como sempre lendo nas cartilhas/ que escritas fedem doutras realidades,/ incompetentes competiram em/ forçar revoluções, tomar poderes e tudo/ numa ânsia de cadeiras, microfones,/ a terra do vizinho, a casa dos ausentes,/ e em moer do povo a paciência e os olhos/ num exibir-se de redondas mesas/ em televisas barbas de falácia imensa.”