“António e Maria”. Um monólogo de vozes mutantes a partir de Lobo Antunes

“António e Maria”. Um monólogo de vozes mutantes a partir de Lobo Antunes


Maria Rueff interpreta personagens femininas da obra do escritor, que Rui Cardoso Martins adaptou ao palco.


Maria Rueff tinha 14 anos quando leu o livro “Memória de Elefante”, de António Lobo Antunes. Aquela que define como a grande leitura da sua adolescência viria a fornecer-lhe material que, segundo diz, a inspiraria no seu percurso como actriz e comediante, como a personagem do taxista Zé Manel. A par disso, a actriz foi acalentando o sonho de levar a obra de LoboAntunes ao palco. A ideia começou a desenhar-se há cinco anos, numa conversa com o encenador Miguel Seabra, e a ser preparada a partir de 2013, depois de a actriz ter sido escolhida para ler um texto do autor, no encontro intitulado “Dia António Lobo Antunes”, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, que acolhe agora a peça que materializa essa ideia. “António e Maria”, uma produção do Teatro Meridional, está em cena no Pequeno Auditório até dia 16 e é um monólogo em que Maria Rueff representa múltiplas mulheres do universo literário do escritor.

“O que eu gosto no António [Lobo Antunes] é que os seus heróis somos todos nós. Põe em cena, na literatura, o doméstico, o comum a todos nós, e é isso que eu amo e também trabalho. E estas mulheres são isso exactamente. Não há aqui nenhuma rainha, nem nenhuma deusa, há mulheres como nós, que trabalham, de todas as classes, mas todas com a característica comum de serem portuguesas, de se perguntarem quem são”, explicou aos jornalistas. Maria Rueff recorda a altura em que participou na homenagem ao escritor e que motivou o arranque do projecto. “Sem eu saber porquê, o próprio Lobo Antunes convidou-me para ser uma das actrizes a ler coisas dele, o que espantou as pessoas e a mim própria porque ele nem sequer sabia daquele meu desejo. Ele gosta de cómicos e eu nesse dia aproveitei e disse-lhe que tinha um grande sonho, que era trabalhar a obra dele. Ele disse: ‘Faça o que quiser.’ Nesse dia começámos a avançar com o projecto.” Depois foram dois anos até “pôr as coisas a andar”. O Teatro Meridional, pelo tipo de produções em que aposta, foi a casa ideal para acolher este trabalho marcado e centrado na interpretação da actriz e com “uma adaptação cénica da literatura não dramática”, como sublinha Miguel Seabra.

O projecto não só encaixa a lógica e a filosofia do Meridional, como junta, pela primeira vez, o encenador e a actriz, apesar de terem sido colegas na Escola Superior de Teatro, há 25 anos, e de acompanharem o trabalho um do outro desde então. “A Maria Rueff tem um percurso ligado à área mais humorística, mas acima de tudo é uma grande actriz, muito completa, com uma formação muito sólida.” Na peça, que Miguel Seabra define como “um monólogo de vozes mutantes”, as personagens entrelaçam-se no corpo da actriz, sendo “vividas por ela, enquanto personagem que se multiplica”, como explicou RuiCardoso Martins, que fez a adaptação da obra de Lobo Antunes para o espectáculo, recorrendo a todo o tipo de material produzido pelo escritor e até a frases que não estão na chamada obra.

“Conheço-o há muitos anos e tenho em casa, não só os livros, mas livros dele ainda em prova. É um trabalho complexo, que foi feito nos últimos meses, mas que também tem os meus anos todos como leitor e amigo do António.” Para este processo, que disse ter sido feito com tesoura e com algum medo, ao início, Rui Cardoso Martins pegou nos livros todos, espalhou-os e acabou por ir buscar algumas personagens femininas de que tinha memória, incluindo as das crónicas. Todas elas reflectem de alguma forma a riqueza da escrita de Lobo Antunes. “Ele entende muito bem as pessoas, entende muito bem as mulheres, principalmente mulheres que não conhecem bem o seu lugar no mundo”, afirmou Rui Cardoso Martins. Também Maria Rueff se sentiu por vezes perdida num género difícil, ao qual se junta uma obra complexa. “Limitei-me a pôr alguma criação como actriz, mas essencialmente a ser um veículo da sua enormíssima sabedoria. Mesmo assim há zonas lodosas, no sentido em que não sei exactamente se esta voz era daquela mulher ou se ainda é outra, ou se é um eco na cabeça dessa outra. É ser um corpo que de alguma maneira ganha atitudes, gestos, suavidades ou coisas mais ásperas para servir esta amálgama.” E esta estende-se também aos homens, ou não se chamasse a peça “António e Maria”, em que o primeiro nome serve como exemplo de identidade masculina e portuguesa, ao mesmo tempo que não deixa de ser o de António Lobo Antunes.