Gravar um novo álbum não estava no horizonte, pelo menos não agora. Mas as propostas começaram a “cair do céu”, como nos diz, e não foi possível recusá-
-las. O resultado é um duplo CD, em que Aldina Duarte canta exclusivamente poemas de Maria Rosário Pedreira, para melodias tradicionais. A partir daí, o produtor do disco, Pedro Gonçalves, dos Dead Combo, criou uma outra versão musical. A experiência trouxe à fadista uma nova percepção de si própria enquanto intérprete e acaba por encaixar num dos seus lemas de vida: gostar de aprender, “mais que tudo”.
Neste novo disco, “Romance (s)”, gravou exclusivamente poemas de Maria do Rosário Pedreira, com quem já tem colaborado. Apesar de tudo, foi uma tarefa desafiadora. O que foi mais complexo ou difícil para si neste processo?
Tive dois grandes desafios, um com a Maria do Rosário Pedreira e depois, como se não bastasse, outro com o Pedro Gonçalves. Ou seja, há dois discos e duas etapas, duas Aldinas e duas fases. Na primeira fase tinha tomado a decisão de não gravar mais discos, porque faço sempre tudo sozinha, edito-me e produzo-me a mim mesma, crio os conceitos e não tinha nada que achasse interessante para dizer em disco nem estava com vontade de trabalhar num. E pela primeira vez posso dizer que as coisas me começaram a cair do céu em catadupa, o que não é comum no meu percurso.
Como…?
Não me cai nada do céu, não dou tempo, meto-me logo ao caminho. É tudo muito novo. Mas a Maria do Rosário Pedreira é uma das minhas amigas mais íntimas, assim como o marido, o Manuel Valente. São ambos editores e foram os livros que nos ligaram. Aliás, o último livro que a Rosário me recomendou foi “A Herança de Eszter”, de Sándor Márai, e o que eu lhe sugeri foi “O Clube da Sorte e da Alegria”, de Amy Tan. Bom, então num jantar com eles a Maria do Rosário diz-me que gostava de escrever um romance em verso, para as melodias do fado tradicional e para mim. Achei a ideia extraordinária, mas como não estava com vontade de gravar discos sugeri que poderia ser eventualmente para um espectáculo ao vivo. E ela disse: “Claro, é uma boa ideia. Então vou começar.” A partir daí passou a ser natural ao fim dos jantares ser a Maria do Rosário a dizer “vamos trabalhar”.
E como se desenrolou esse processo?
Ela tinha um guião dividido por capítulos, começámos a discutir a história, a linguagem e a escolha da melodia. E passados uns três, quatro meses, estavam feitos 14 fados, entre muita discussão e muito trabalho, sobretudo da Rosário. Na nossa parceria criativa decidimos que iria ser um romance, um triângulo amoroso, reforçando os clichés dos triângulos amorosos, quase à laia da literatura de cordel, enquanto enredo.
Mas porquê um triângulo amoroso?
O triângulo é o cliché dos clichés das histórias de amor. Queríamos fazer uma história que pudesse ser de alguma maneira comum ou familiar a qualquer pessoa e depois porque o amor é o tema do meu trabalho. Duas amigas que se traem por um homem já é extremar o cliché e quando demos por ela começámos a extremar também os retratos e os momentos dessa história, com uma particularidade, que é o final, pelo qual me bati: não aceito, não vejo sentido nenhum em duas mulheres virarem-se uma contra a outra por causa de uma paixão. Não aceito que uma paixão destrua uma amizade. Para esta história fazer sentido a amizade tinha de vencer a paixão. E foi o que aconteceu.
E como é que o disco venceu a ideia inicial do espectáculo?
Pois, estávamos nós a trabalhar no nosso espectáculo chamado “Romance” e vem a Paula Homem, que é a minha editora de sempre e talvez, desde que comecei, a pessoa que mais se tem batido pelo meu trabalho discográfico. Como entretanto ela tinha voltado para uma multinacional disse-me “tens de gravar um disco”. Eu já não gravava há quatro anos e não estava com muita vontade de o fazer. Mas ela disse que me ia ajudar. Falei-lhe do projecto e ela achou maravilhoso. “Não tens de te preocupar com nada, eu trato de tudo.” Bom, já me tinha caído a proposta do romance escrito em versos, a seguir veio outra das minhas melhores amigas exigir que gravasse esse romance. Então pensei que não podia dizer que não. A Maria do Rosário achou maravilhoso e passada uma semana a Paula Homem disse-me que o produtor musical ia ser o Pedro Gonçalves.
E aí entra o segundo grande desafio.
Ela disse “não sei porquê mas eu acho que vocês vão ligar muito bem”. Eu não o conhecia pessoalmente, mas adoro a música dos Dead Combo. Achava que ele não conhecia o meu trabalho. E a verdade é que ele reagiu da mesma maneira. A mulher dele foi a responsável pelo primeiro contacto com o meu trabalho e é ela que depois sugere, quando ele não sabe bem o que vai fazer com os temas, que ele faça outro disco, que em vez de fazer um fizesse dois. E ele levou à letra o que ela lhe disse. Quando nos conhecemos foi fulminante, as afinidades artísticas eram as fundamentais, porque para me envolver criativamente ou são da minha família artística ou não dá, têm de ser pessoas que fazem exactamente aquilo em que acreditam e gostam, independentemente dos resultados. Sou dessa escola e é essa artista que quero ser. No dia em que os prémios e as vendas forem o critério para avaliar e investir no trabalho artístico podem ter a certeza que estão a acabar de vez com a cultura. Estou desse lado da barricada.
Essas afinidades também implicaram um envolvimento mútuo nos dois discos?
Não, o Pedro no disco de fado tradicional disse que não tinha nada para meter, a única coisa que quis fazer foi pôr o meu timbre ao vivo no disco, porque na maior parte deles está muito limado e do que ele mais gosta no meu timbre é precisamente das sujidades, da rouquidão, do sopro, o que normalmente na indústria discográfica era habitual limpar. E ele achou que isso tinha de aparecer num disco meu, porque é uma das coisas únicas da minha voz. Assim foi e esse timbre está lá. É o timbre que oiço no Sr. Vinho, sem amplificação sem nada, todas as noites. Só que com a inteligência musical e o talento que o Pedro tem essa humildade traduz-se sempre em pontos de luz que mudam tudo.
Que pontos foram esses?
Nunca tinha ninguém que me estivesse a ouvir de fora, fora dos fados, das letras. Ele não escreveu nada, não toca nos fados. Estava completamente fora e ouvia coisas que eu e quem está por dentro dos fados e das letras às vezes não ouve. Por exemplo, o meu murmúrio. Nunca me tinha apercebido de que há um murmúrio na minha interpretação que é quase não cantar. Tomando consciência tirei muito mais partido dele. Isto foi o Pedro que ouviu e me fez ouvir e conseguiu dar-me pistas para que isso se tornasse audível. Ele ficou muito marcado pela experiência do primeiro disco e daí então surgiu a ideia brilhante de fazer uma espécie de banda sonora para ele. Depois houve outro grande desafio porque no primeiro CD tive de interpretar personagens que não têm nada a ver comigo, com as quais não me identifico e onde a minha visão não interfira, em vez de cantar fado a fado é cantar um disco inteiro sem nunca perder de vista a história e o fio condutor, cantar diálogos. E tudo isso levou um ano a preparar.
Dessas personagens com as quais não se identifica, qual foi a mais difícil de interpretar?
Por exemplo, fazer de codrilheira. Eu detesto a codrilhice, tenho um trauma com isso. Em Chelas a codrilhice foi a causa de desgraças terríveis, que se passaram com vizinhos e a que eu assisti. Vi isso causar danos gravíssimos, como a violência doméstica, por exemplo, e na melhor das hipóteses. Nem consigo brincar com a má-língua, quando alguém vem com uma conversa nesse tom já nem estou a ouvir. Portanto tive de tomar consciência destes “demónios” e afastá-los. Há um trabalho de fundo que faço sempre, mas que desta vez aprofundei mais.
O título aparece com a letra “s” entre parênteses – “Romance(s)” – convertendo-se em plural. Alguns dos temas sobrevivem sozinhos mesmo tratando-
-se de uma história?
O “s” tem a ver com serem dois discos e duas visões da mesma história. Mas seis deles sobrevivem, os outros não, têm de estar contextualizados senão não fazem sentido. Sobrevivem “A Maçã de Adão”, “Dois Ponteiros”, “A Fada do Lar”, “Sem Chão”, “Arte de Fado” e “Fogo Posto”.
E há algum tema que lhe soe melhor na vertente mais pura, do fado tradicional, e outro que goste mais de ouvir no segundo disco?
Na versão do Pedro Gonçalves, digamos assim, os temas tristes são mais duros e mais tristes. Os alegres e sensuais são mais picantes e irónicos. Em “O Casamento: as Noivas”, por exemplo, ele foi buscar um sarcasmo extraordinário, porque na história a grande ferida acontece no casamento, com a traição. E então o Pedro usa uma ironia extraordinária na versão, que eu tento transmitir a cantar e ele através do arranjo, com o som a sair do megafone, aquele ambiente de “Meu Querido Mês de Agosto”, que é uma forma musicalmente irónica de tratar um casamento que afinal é uma falsidade. Tentámos acentuar isso. Quanto a gostar mais, não. A minha casa há-de ser sempre o fado tradicional. Mas também não gosto mais do disco um.
Suponho então que seja difícil eleger uma canção favorita neste trabalho…
Não tenho favoritos nas artes. Na história do fado há fadistas que não são particularmente dotados e continuam a servir de cartilha porque criaram, talvez, alguns dos melhores fados de sempre. No entanto, ninguém os conhece. A arte não pode ser tratada como uma corrida de cavalos, não vive de apostas. É muito mais subjectiva, mais misteriosa e mais encantadora por isso.
Interessa-se por outras artes…
Tudo me interessa. Até canalização [risos]. Adoro saber tudo.
E já tentou pôr esse interesse em prática?
Não, mas quando eu vejo alguém que é bom e apaixonado no que faz também quero aprender a fazer. E houve uma fez um senhor que foi lá a casa arranjar a canalização e que gostava tanto do que fazia que não resisti e fiquei ao pé dele a tentar perceber como funcionavam os canos, as ligações e isso tudo. Gosto de aprender, mais que tudo, mais que cantar, mais que ler. Só há uma coisa que gosto mais que de aprender que é dos meus sobrinhos, que são quem me ensina mais.
O que é que eles lhe ensinam?
Ensinam-me a ser mais gente, a lembrar–me do essencial, a querer estar inteira em cada coisa que faço. Só as crianças é que têm isso.
Começou esta conversa por dizer que tinha tomado a decisão de não gravar mais discos. Também escreve. Se não tivesse gravado este disco, dedicaria esse tempo à escrita, por exemplo?
Ando a tentar fazer um livro de letras há três anos. O projecto é uma letra para cada um dos 180 fados tradicionais. Neste momento tenho 40. Está a ver o que ainda me falta? Com as letras tenho uma relação muito descontraída. Acho que tenho jeito para escrever, não tenho talento. Talento é outra coisa.
Porque é que diz isso?
Porque o talento atira-nos para a frente, as adversidades fortalecem-nos. O jeito não. Tudo nos demove. O talento converte tudo em utilidade para a criação e não há adversidade que nos demova.
Comissariou em Junho do ano passado o programa no São Luiz “Fados e Tudo”, onde, entre outras coisas, cabia o humor. O Ricardo Araújo Pereira foi um dos convidados…
O Ricardo Araújo Pereira com o Carlos Vaz Marques e o Camané. Meu Deus! Sou eu que invento os concertos, porque sempre tive um sonho que era ter uma pequena sala e ser programadora. Adorava.
Para juntar todas as paixões e o tal desejo de aprender?
Sim, e porque o meu quotidiano é feito dessas coisas. Juntava-se o útil ao agradável. Inventei esse ciclo chamado “Fados e Tudo” e agora todos os anos crio cinco espectáculos diferentes, em que há cinema, teatro, dança, música e em que parte tudo do fado. Há sempre alguém ligado ao fado. Nesse evento, o Ricardo Araújo Pereira e o Carlos Vaz Marques inventaram a parte do humor e eu seleccionei o alinhamento do Camané, do leque de fados alegres e bastante irónicos até que ele tem e as pessoas conhecem menos. Foi um sucesso. Este ano vou fazer com outras pessoas, outros espectáculos.
No seu novo disco há alguns que tenham o efeito gargalhada?
Sim, farto-me de rir na versão do “Casamento: as Noivas” no segundo disco. Aliás, estamos a montar ao vivo o “Romance(s)”, dois espectáculos distintos, e no do “Romance II” – que é o “Romance Ambulante” – eu nem canto, é mesmo a gravação do megafone. Porque só me dá vontade de rir, nessa versão que o Pedro fez. O “Amor em Dó Maior” também tem partes que me fazem sorrir e “O Encontro: as Duas Graças”. Acho que o início do disco faz sorrir e faz rir.
Apercebi-me que tempero mal as iscas graças ao “Fada do Lar”.
A sério?
É verdade.
Olhe que isso a mim agrada-me imenso. Está a ver ao ponto que pode ir a utilidade da canção? Vou dar só um pormenor do cenário do espectáculo “Romance Ambulante”, que é à Peter Gabriel. À nossa escala, é claro. Mas uma das coisas que vamos usar nessa música é exactamente um vídeo a passar sempre receitas, ambientes de cozinha e de cozinheiros. É uma letra muito visual. No fado há também uma regra muito importante para mim: quero que me ouçam como se estivéssemos aqui à conversa. Nada pode tropeçar em nada, nem a letra na música nem esta na letra, nem a voz em lado nenhum, a não ser que seja essa a intenção.
O seu percurso profissional também tem sido variado. Trabalhou num centro de paralisia cerebral. Que importância teve essa experiência para si?
Costumo dizer que foi a minha primeira grande formação humana no mundo. Sou de me entregar apaixonadamente a tudo o que faço, mas apercebi-me de que não tinha vocação. Acho que fiz um trabalho muito sério, entreguei-me de corpo e alma, mas as adversidades eram terríveis e enfraqueciam-me. Se a burocracia e as injustiças sociais e políticas já nos confrontam diariamente de uma forma bastante violenta, imagine o que é sentir essas mesmas injustiças a serem aplicadas sem dó nem piedade a gente indefesa, que não tem sequer a capacidade de pensar ou de se mexer. Aquela profissão fez-me focar no essencial, e dada a minha idade, entre os 21 e os 23 anos, ensinou-me uma coisa para a vida: a relativizar certos problemas, a não ser autocentrada. Só quem não conheceu a debilidade de perto é que se dá ao luxo de achar que pensar é uma seca.
Partindo do nome do documentário “Aldina Duarte: Princesa Prometida”, que promessas ou sonhos ainda tem por cumprir?
Sonhos vou ter sempre. Não sei viver sem isso e até gosto de ter alguns que não se realizem. Não sou nada ambiciosa, contra a vontade da minha mãe, que é a pessoa ambiciosa mais bem formada que conheço. Mas não tenho sonhos profissionais, só o de viver a fazer o que gosto, como quero e ter liberdade total para errar. Neste momento já não é um sonho porque é assim que vivo. Tenho utopias, convicções. Os sonhos que tenho não posso dizer, porque são absolutamente pessoais e intransmissíveis.