Antes havia um engraxador em cada canto do centro de Lisboa. Os clientes eram em número suficiente para todas as caixinhas e banquinhos espalhados pela cidade. Eram tantos que alguns se davam ao luxo de só confiar num, o seu engraxador. Os tempos mudaram. Um sapato impecavelmente engraxado perdeu importância e já não há tempo para ficar sentado à conversa. Sobram uns quantos fiéis que ainda querem graxa nas suas botas e sapatos e vão à procura do seu engraxador. Mas são tão poucos que o dinheiro que se ganha com esta profissão não chega para sobreviver.
Carlos Manuel Fernandes, o Fininho devido ao seu aspecto, alto e magro, é engraxador há 42 anos. Encontramo-lo na Rua do Amparo, perto do Rossio, em Lisboa, lugar onde está sempre com a sua caixinha e o seu banco. “Foi o pessoal que me deu a alcunha. Já vem de há muitos anos”, conta, acrescentando com orgulho: “Sou o mais conhecido aqui!”
Fininho sente na pele que a sua profissão está a acabar mas nem assim perde o humor. “Agora há mais engraxadores mas é de outra maneira. Com esta minha profissão já não restam muitos”, brinca. “Uns morrem, outros desaparecem ou arranjam um trabalho diferente. Antigamente éramos muitos, agora somos muito poucos”, diz em tom mais sério.
Aprendeu a arte da engraxadoria, mas confessa que seguir esta profissão não fazia parte das suas ambições. “O meu pai que tinha esta profissão é que me ensinou o ofício.” O que Carlos Manuel Fernandes queria mesmo era ser cromador. Aprendeu a arte na Casa Pia. “Cromar pára-choques dos carros de antigamente”, conta, “foi isso que eu aprendi melhor.”
Calhou ser engraxador, coisa que lhe provoca sentimentos contraditórios. “Gosto e não gosto. Especialmente por causa do tempo.” Chova ou faça sol, Carlos Manuel Fernandes é fiel ao seu trabalho e aos seus clientes, ainda que poucos. “Gosto muito de falar com as pessoas, sejam homens ou mulheres. Gosto de falar com qualquer um”, desabafa. Hoje os clientes são na maioria homens, com quem tem o hábito de conversar “sobre a bola e a política”. Mas Fininho não esquece as suas clientes femininas: “Também aparecem, trazem aqui as botas e os sapatos.” Tem pena que o seu trabalho não seja mais reconhecido, mas continua sempre com um espírito positivo. “Gosto dos lisboetas. São muito civilizados.”
As histórias do passado continuam presentes na sua memória: “Há muitos anos um polícia levou-me a caixa da graxa para a esquadra. Eu não fiz mais nada: levei também o banco. Já não me lembro há quantos anos isto aconteceu, mas ainda era chavalito”, recorda quando lhe pedimos que conte uma dessas histórias que fazem parte do seu álbum de recordações. É a única coisa que sabe ter como certo porque o futuro, esse, continua incerto: “Não sei quantos mais anos vou ser engraxador. Aí pelo menos até aos 70, talvez, mas até lá muita coisa pode acontecer.”
O ENGRAXADOR caçador No Rossio também está José Luís Silva. Tem 62 anos e dá graxa aos sapatos há 15. Devido à crise diz que “não há outra possibilidade de sobreviver”. “É a profissão que tenho. Foi um amigo meu que me aconselhou a arranjar uma caixinha e vim para aqui trabalhar”, conta. Tal como Fininho, sabe que tem um ofício que ninguém mais quer. “Há muito poucos engraxadores. A malta jovem não quer saber disto. Dizem que é vergonhoso estar a engraxar. Não sei porquê. É mais uma estupidez que outra coisa. É um trabalho como outro qualquer.” Antes até havia engraxadorias, conta José Luís para mostrar quão importante já foi o seu ofício: “Agora são os engraxadores de rua”, suspira com pesar.
Antes de ser engraxador, José Luís Silva, ou o Bigodes – como lhe chamam devido ao acessório farfalhudo e “amarelo do tabaco” que tem por baixo do nariz –, era soldador e serralheiro mecânico. Para a reforma ainda lhe faltam alguns anos mas por agora recebe o rendimento mínimo: “Não é nada. Mas olhe, é uma migalha que ajuda.”
É da profissão de engraxador que tira o sustento. “Uma vez o centro de emprego mandou-me para o Cartaxo porque havia lá uma oportunidade. Quando cheguei disseram-me: ‘Ah, se fosse mais novo…’ Fizeram-me gastar gasolina e tive de voltar para trás”, diz, acrescentando: “Sou profissional da soldadura, mas nem disso querem saber. Querem é a malta nova.” Com o passar dos anos os clientes diminuíram e o Bigodes começou a fazer contas. “No local onde estamos a trabalhar não convém estarmos muito juntos. Se viessem para aqui mais um ou dois engraxadores acabava com os clientes. Se para dois já não dá, imagine para três ou quatro.”
Num dia bom, Bigodes pode ter “oito, nove ou dez” clientes. “Nos maus só tenho um ou dois, não chega nem para a bucha”, conta. Está na rua e “desde que não chova e não faça frio até se está bem”.
José Luís tem mais clientes homens, mas “mulheres também há muitas”, avisa. E não esconde os trunfos para seduzir outros clientes: “Falo outras línguas.” Tem sucesso com os clientes estrangeiros: “Ficam encantados e às vezes tenho aqui dois ou três turistas. Engraxam todos!” E também arranjou fregueses dispostos a pagar bem por um bom serviço. “Tenho clientes angolanos que me dão muito dinheiro. Chegam aqui e dão 50 euros. Tenho um cliente que é deputado no parlamento de Angola. E não engraxa com mais ninguém. Se eu não estou aqui senta-se e espera que eu venha. Somos amigos há muitos anos”, conta, lembrando que por duas vezes o deputado chegou com um par de botas e nem perguntou quanto era: “Deu-me 50 euros e disse-me para eu ir almoçar.”
Das gorjetas dos portugueses também diz que não se pode queixar. “Há clientes que em vez de darem os 2,5 euros da graxa dão cinco. Quando vou para dar o troco dizem que fica assim. São mais 2,5 euros! Assim é bom. Vale a pena.”
Antes de ser conhecido por Bigodes, José Luís Silva era o Caçador. O nome surgiu de um dos seus principais passatempos. A caça e a pesca têm um lugar especial no seu coração: “De vez em quando vou pescar e caçar. Quando pesco trago peixinho em condições. Vamos para o lado das Berlengas e ficamos lá o dia inteiro.” Mais indefinido é o futuro. Não é carne nem é peixe: “Não é bom nem é mau. Se a malta da minha idade souber preservar, isto continua. Não podemos é perder a coragem nem desanimar. Não há trabalho para os novos… e para os velhos também não”, conclui.