Sérgio Graciano. “Em Portugal não vai acontecer nada no audiovisual nos próximos 20 anos”


É um homem apaixonado pelo que faz. Abre o Mac e mostra as cenas de batalha do seu filme sobre a Rainha Ginga. Foi um desafio filmar as cenas com mais de 400 figurantes, como é uma permanente aventura trabalhar em Angola. O país não pára de crescer e a ficção dá passos de gigante.…


É um homem apaixonado pelo que faz. Abre o Mac e mostra as cenas de batalha do seu filme sobre a Rainha Ginga. Foi um desafio filmar as cenas com mais de 400 figurantes, como é uma permanente aventura trabalhar em Angola. O país não pára de crescer e a ficção dá passos de gigante. Daqui a um mês e meio estará a rodar uma nova telenovela. Foi construída uma cidade cenográfica para as filmagens e tem nas mãos meios técnicos comparáveis aos que a Globo usou na “Avenida Brasil”.

Está a terminar um filme e uma série sobre uma das figuras míticas da história de Angola, como é que a Rainha Ginga se cruzou com o Sérgio Graciano?

Foi um projecto que tenho com a TPA (Televisão Popular de Angola) que era uma série com a Rainha Ginga que é um dos principais símbolos angolanos. Com a excepção de um documentário realizado por uns brasileiros [Hank Levine, Marcelo Machado e Tocha Alves] que tem a Taís Araújo como protagonista, não havia nenhum registo televisivo e cinematográfico sobre ela. A ideia partiu daí, de fazer uma série o mais abrangente possível, e tendo em atenção que existe uma grande diversidade de trabalhos históricos que não são consensuais nas suas conclusões. E como o nosso projecto inicial era uma série de ficção aproveitámos para romancear um bocadinho, coisa que se estivéssemos a fazer um documentário não teríamos essa liberdade. Não é que não tivéssemos sido fiéis aos factos, mas tivemos liberdade para poder contar a história. A série tem uma componente de animação manga na parte de recriação das batalhas. Ficámos muito satisfeitos com o trabalho e a administração da Semba colocou-nos o desafio de fazer um filme. Nesse projecto passámos para imagem real muitas das cenas que estavam animadas. Reescrevemos e regravámos parte da história. Toda a gente acredita que o filme vai ser um marco em Angola.

A história da Rainha Ginga é extraordinária, como a trataram?

Baseámo-nos em trabalhos históricos como os do Cavazzi [Padre João António Cavazzi (1622-1692). “Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola” (2 vol.)] entre outros, mas ela tem uma vida cheia: uma mulher poderosa, inteligente que tinha homens. Optámos no filme por abordar mais a parte de guerreira dela que o amor, embora isso também esteja presente.

Ela morreu com cerca de 80 anos, o filme aborda a sua vida toda?

O filme chega apenas até ao momento em que os portugueses a reconhecem como soberana Ngola.

Como é que naquela época, em que as mulheres tinham com os portugueses um papel subserviente, aparece uma figura tão poderosa? Nos povos nativos a mulher tinha mais poder?

Acho que não tinham tradicionalmente uma influência tão grande. Ela tinha uma influência muito grande. Era assumidamente muito diferente das outras. Na história que nós filmámos, percebe-se que o pai a respeitava muito. Não é uma história tradicional sobre o papel das mulheres na história de Angola, é o relato da vida de uma mulher poderosa e guerreira que era atípica na sua época. Uma mulher extraordinária em qualquer lugar.

Uma das coisas muito interessantes na história da Rainha Ginga é que nos revela que embora houvesse a ideia que Portugal colonizava há séculos os territórios que são hoje Angola, a verdade é que apenas dominava alguns pontos do litoral e que nesse território existiam um conjunto de entidades políticas nativas que a nossa história tende a ignorar….

Os portugueses colocavam-se em termos estratégicos de forma a dominar o comércio e o tráficos dos escravos com o Brasil. A conquista foi sempre feita numa perspectiva estratégica. E isso fica claro no filme: essa diferença de controlo político entre o litoral e o interior.

Quais são os cuidados que o português Sérgio Graciano tem ao pegar numa figural mítica da história angolana?

Os mesmo cuidados que teria se fosse para os Estados Unidos da América para realizar um filme sobre Abraham Lincoln. Fazer uma investigação séria. Ler bastantes livros e sobretudo não optar por um caminho único, mas por vários. Não ficar agarrado a apenas uma tese que pode não ser a mais correcta. Ter a humildade de ouvir muita gente. Tive a oportunidade de assistir a um congresso internacional em Angola sobre a Rainha Ginga, com a presença de investigadores franceses, holandeses e de vários países que foi muito importante para construir uma narrativa com uma dimensão histórica.

Vê-se a adaptar outros momentos da história de Angola mais recentes como a guerra de libertação ou a guerra civil, é possível que venha a adaptar, por exemplo, o Mayombe do Pepetela?

Gosto de contar histórias. A época não é o fundamental. Aquilo que eu posso pegar pode ter dez anos, 100 anos ou 200 anos, é preciso é que seja uma história para ser contada. Se eu gostar do livro e achar aí um desafio, vou querer contar essa história.

A ficção e a televisão em Angola vão debruçar-se sobre a história recente ou ainda vai demorar uns anos a encarar épocas traumáticas como a guerra civil?

Ainda vai demorar um bocadinho. Veja-se o caso português. Fiz há pouco tempo a série “Depois do Adeus”, algo que só foi possível 38 anos depois do 25 de Abril. As marcas da guerra vêem-se nas ruas, e estão dentro das pessoas, não é fácil falar disso. Mas naturalmente, como aconteceu em Portugal, chegará essa altura.

Há uns anos realizou uma curta- -metragem, “Assim Assim” que depois transformou numa longa, se tivesse de fazer hoje um filme de autor em que história pegava?

Tenho um filme mais ou menos preparado para fazer que é sobre um sem-abrigo e que pretende abordar os problemas da sociedade actual. Visa um olhar contemporâneo e crítico sobre a nossa sociedade. Creio que é um exercício que muita gente se sente desafiada a fazer. Mas também gosto muito de ler livros e de nessas histórias procurar hipóteses de fazer novos filmes. Há sempre uma série de livros, uns três ou quatro que eu tenho o sonho de fazer. Portanto, para além dessa crítica social, eu tenho três ou quatro livros que gostava de adaptar para filme.

Um dos sucessos recentes em Portugal é um filme de um luso-descendente, “A Gaiola Dourada”, o que acha desse tipo de filmes?

Acho que o realizador foi inteligentíssimo ao fazer um filme daqueles. Gostei do que vi, acho que o filme não é português, é uma história de portugueses. Dizer que aquilo é um filme português, é como afirmar que o “Grego para Casar” é um filme grego. Ora percebe-se que, nesse caso, não estamos perante um filme grego, mas um filme com gregos e sobre gregos. Agora, nós precisamos no nosso cinema de muitas histórias como “A Gaiola Dourada”. Há muita gente que só reconhece em Portugal o cinema autoral – que eu também respeito e gosto – mas há muitos mais caminhos para o cinema. Isso vê-se bem no caso francês; há 20 anos só tínhamos filmes autorais, e hoje não é bem assim. Os franceses não deixaram de fazer um cinema de autor, mas redescobriram a forma de comunicar com as pessoas. “O Quinto Elemento” , do Luc Besson, e o “Delicatessen”, do Marc Caro, Jean-Pierre Jeunet, são uma espécie de ponto de viragem. Há um querer comunicar diferente, com uma aposta até em estrelas americanas como o Bruce Willis, um certo piscar de olho ao star system. As coisas mudaram em França. Em Portugal temos muito bom cinema de autor, mas fazemos as coisas só para alguns, não apostamos num cinema para os grandes públicos.

A sua experiência profissional é diferente, como é que vai parar ao cinema?

Já trabalho em televisão há muitos anos e em 2006 passei do entretimento com que trabalhava na Endemol para a ficção. A NBP convidou-me a fazer os “Morangos com Açúcar”, e a partir daí fui fazendo o meu percurso na televisão. Paralelamente a este trabalho, convidava os actores e técnicos para fazerem comigo umas curtas-metragens sempre a custo zero. Ainda agora faço isso, daqui a duas semanas vou estar a rodar uma curta, chamada “Herculano”, sobre um homem que é obcecado com erros ortográficos de português. Eu detesto erros ortográficos, acho que aquela história é um bocadinho de mim. O Herculano vê os erros de dia e à noite vai a todos os sítios que viu apagar esses erros.

Nesse percurso da ficção comercial tem um Emmy com a telenovela “Laços de Sangue”. Já há duas novelas portuguesas que ganharam os Emmys. Qual a razão para as novelas portuguesas ganharem Emmys perante telenovelas brasileiras que parecem continuar a ser muito melhores?

Nós evoluímos muito nos últimos 15 anos. Com todos os seus defeitos, “Os Morangos com Açúcar” foram uma escola para actores mais novos, naturalmente que quem quer seguir a profissão deve preparar-se e ir para o Conservatório, mas houve uma série de gente que a partir dos “Morangos” fez esse percurso profissional. Estamos a trabalhar muito melhor. A distância de qualidade em relação às telenovelas brasileiras diminuiu, o problema é que eles têm uma mais valia muito grande que é o dinheiro: um episódio da “Avenida Brasil” custa mais de 350 mil euros, e um episódio de uma novela portuguesa fica-se pelos 50 mil euros. Mas nós já o fazemos com muito mais qualidade que no início. E os Emmys baseiam-se em dois ou três episódios de uma telenovela que a produtora tem de mandar, provavelmente esses episódios eram bastante apelativos. Agora, a Globo aparece com uma telenovela completamente atípica e extraordinária que é a “Avenida Brasil” : é cinema feito em televisão. Nós tão depressa não chegamos àquele nível.

Uma das heranças dos “Morangos com Açúcar” é o aparecimentos dos “modelitos”, deixamos de ter actores e actrizes para termos modelos na pantalha. O que é que isso tem de bom e de mau?

O que tem de bom? Se calhar é melhor aos olhos de quem vê. O que é que tem de mau? É que não são actores. Alguns deles até se safam e evoluem. Têm espaço se forem bons, mas também acho que é importante tirar um curso e prepararem-se para a profissão.

Mas também fez essa escolha, na telenovela angolana que realiza, “Windeck”, a protagonista é uma antiga miss Angola, a Micaela Reis….

Eu apenas entrei no terço final da novela. Como iam existir mais projectos, fui convidado para fazer a parte final da novela. Não participei no processo de selecção. Agora é preciso entender que ainda não há muitos actores disponíveis em Angola. É um trabalho que está a começar. Há gente com muito talento, no caso da Micaela Reis, já tinha entrado na série “Voo Directo”, e foi miss Angola. Tem uma excelente imagem. E tem talento.

Normalmente nas telenovelas os pobres coexistem com os ricos, no “Windeck” eles parecem estar em grande minoria….

Existem pobres, mas o propósito da novela mais que analisar essas diferenças é caricaturar de uma forma bem-disposta a sociedade angolana.

As pessoas reconhecem-se naquele retrato?

Mais do que se reconhecerem, as pessoas divertem-se. Os angolanos gostam de rir, fazem-no com prazer. Aquilo é puro entretenimento.

É a primeira novela angolana?

Não, já houve mais duas. Não participei nelas. Estou neste momento a preparar a minha primeira telenovela em Angola, desde o início. Estou no processo de selecção de pessoas, cenários, e tudo o resto. A temática desta telenovela vai ser social. Não abdica de divertir, mas quer mostrar muitas coisas que não estão resolvidas. Quer emocionar. O nosso referencial é a “Avenida Brasil”. Vai ser feito um investimento em meios técnicos de grande qualidade, similares aos utilizados pelos brasileiros.

Quando é que começa a rodar?

Daqui a um mês e meio. É muito diferente como se fazem as novelas em Portugal: vamos fazer muito menos minutos por dia. Há uma grande aposta na qualidade. Há muita gente com dinheiro em Portugal, mas não o quer gastar e quer manter as margens de lucro que tinha antes da crise. O que acontece? É que as equipas que fazem novelas em vez de fazerem 30 minutos por dia, fazem 40. Em Angola há a aposta de fazer bem. Compramos câmaras com lentes fixas com uma qualidade equivalente à do cinema. Construimos uma cidade cenográfica com uma rua inteira. Fazemos uma grande aposta na qualidade. Claro que há dinheiro, mas também há em Portugal e não são feitos este tipo de apostas.

Essa telenovela é passada nos dias de hoje? Baseou-se em algum livro?

Não fui eu que escrevi, a ideia é do José Eduardo dos Santos, filho.

Como é que aparece em Angola?

Paralelamente ao meu trabalho para as televisões, colaborei muito com a produtora “Até ao Fim do Mundo”, do Ricardo e Renato Freitas e essa produtora é consultora da Semba em Angola. Era um namoro antigo. Quando acabei “O Depois do Adeus” estava à espera da aprovação de uma série da RTP que tardava. Nesse compasso de espera souberam que estava disponível e convidaram-me para ir para Angola.

Já tinha estado em Angola?

Nunca tinha ido a Angola. Mas gosto muito. Gosto das pessoas, mas sobretudo da possibilidade de fazer coisas que eu nunca conseguiria fazer cá. Em Portugal nos próximos 20 anos não vai acontecer nada no panorama audiovisual. E em Angola vai acontecer muita coisa. Isso é um desafio enorme. Chegar a um país onde há uma vontade enorme de fazer coisas é um grande desafio.

Mas não é um país muito difícil, com uma grande divisão entre pobres e ricos e uma capital a rebentar pelas costuras?

Tudo está em mudança. Há gente que lá esteve dez anos depois da guerra civil e não reconheu a cidade. Não há dia que não mude. No outro dia estava a almoçar num restaurante na baía de Luanda e contei na cidade 43 gruas a trabalhar. Todos os dias se nota na cidade uma coisa de diferente. Todos os dias o trânsito está um bocadinho melhor, aparece um prédio. Eu saí de lá há três semanas, e tenho a certeza que quando voltar já a cidade mudou mais um bocadinho. É um país e uma cidade em que tudo muda todos os dias, ao contrário de Portugal e de Lisboa, que eu adoro, em que as pessoas andam cabisbaixas e nada muda. Gosto muito de trabalhar num país que está sempre a mudar.

A telenovela “Windeck” passa também na RTP. Deve ser a telenovela com mais negros de sempre em que o único branco é, curiosamente, italiano. Qual é a reacção que sente dos portugueses?

Há uma reacção engraçada. Os portugueses divertem-se com aquilo, por causa do sotaque, das diferenças e até das similitudes. Ninguém estava à espera de uma telenovela angolana. Engraçado que a reacção não é muito diferente da dos angolanos. Obviamente que as audiências são diferentes, em Angola é uma loucura. É uma loucura andar na rua com os actores angolanos. É interessante que em toda a casa há uma parabólica, os angolanos consomem muitas séries e novelas estrangeiras, creio que até estão mais habituados às novas estéticas televisivas que o público português.