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José Rentes de Carvalho. "O sonho desapareceu. Aceita-se uma visão mais sombria do 25 de Abril"

José Rentes de Carvalho. "O sonho desapareceu. Aceita-se uma visão mais sombria do 25 de Abril"

17/03/2014 00:00
Hoje projecta-se um documentário sobre o escritor com quem o i conversou sobre o novo livro, o romantismo da história e o cinema

Sentámo-nos no bar do hotel onde decorriam as Correntes d"Escritas, na Póvoa de Varzim. Imperial e "Portugal, a Flor e a Foice" na mesa. O livro que sai para as livrarias na sexta-feira foi o arranque de uma conversa que viajou no tempo, até à ditadura, e no espaço, até Amesterdão, onde o escritor vive há mais de meio século. O autor de títulos como "O Rebate" (1971) e "Mazagran" (2013) mostrou-se feito de sorrisos, de olhar atento e sem papas na língua. Hoje, na Universidade Nova de Lisboa, pelas 18 horas, é possível recordar o seu percurso em filme.

Este livro foi escrito há décadas.

O texto está exactamente como saiu em 1975 na Holanda. Nunca foi editado em Portugal. É a primeira vez.

Porquê?

Ninguém o queria. Diziam que não era oportuno o ponto de vista social, político e histórico. Entretanto a situação mudou. O sonho desapareceu, já não há razão para sonhar. Então aceita-se uma visão mais sombria do 25 de Abril.

Como vê a pessoa que escreveu este livro?

A pessoa tinha 40 anos menos, o que, na história, é um momento, mas na vida humana é uma diferença grande. Mas a voz continua idêntica, e idêntica é também a visão que mantenho da revolução de Abril.

O texto funciona como um diário, vemos os acontecimentos através do autor, em criança. Era muito curioso?

Sim, era, sou-o ainda, muito particularmente no que respeita à evolução da sociedade portuguesa, que continua a ser para mim motivo de espanto. Parece existir nela uma componente de fatalismo e desleixo, de desinteresse, contrária à atitude normal de desenvolvimento e melhoramento. É um pouco como se o país sofresse da doença de Pfeiffer e se deixasse abater pelo cansaço.

Viajamos dos Descobrimentos para a Primeira República, da ruralidade até África e, finalmente, à Revolução dos Cravos. Uma oportunidade para rever a história de Portugal?

A visão da história ensinada nas escolas continua a ser a visão cosmética, sem rugas nem defeitos, com os bons dum lado e os maus do outro. O cidadão adulto e consciente, interessado pelo país em que nasceu, beneficia quando se põe a par de diferentes versões dos acontecimentos. Não serão necessariamente as melhores, nem de intenções sempre puras, mas ajudam a alargar o campo de visão.

Tudo é desconstruído.

Sim, é mesmo essa a palavra exacta. Em geral, as pessoas têm aquela história que aprenderam na escola, um bocadinho romantizada, com heróis, milagres, uma noção romântica do que a história foi.

Vem acabar com o romantismo.

Não sou eu, é a vida.

A ironia é ingrediente que não falta. O humor é uma ferramenta importante?

O humor ajuda a suportar e a relativizar, a pôr um travão aos excessos de entusiasmo e a idolatrias. Aprecio a mentalidade dos países nórdicos, onde é mínimo o apreço pelos heróis e são sempre de proporções modestas as estátuas que a um ou outro se levantam.

Qual acha que vai ser a reacção dos portugueses a esta história?

As pessoas até aos 40, 50 anos vão ficar tristes ou assustadas com a revelação. Depois, os mais velhos, dos 60 anos para cima, vão-se dividir em duas categorias: aqueles que, contra toda a evidência, continuarão a acreditar que houve uma revolução muito bem feita e muito feliz, e os outros, que se vão dar conta de que nem tudo o que reluz é ouro.

Há história, política, costumes e um bilhete de viagem nos seus livros. Como é que se inspira?

No decurso da minha longa vida nunca ainda me foi dado esse privilégio que muitos dizem receber. Não duvido que tal aconteça, mas francamente não tenho ideia do que seja um momento de inspiração literária. Quando decido escrever um livro não conto com ajuda do sobrenatural, apenas sei que tenho pela frente muitos meses ou anos de trabalho.

Tem um método de trabalho rigoroso?

Bem gostaria de ter, mas a minha mentalidade é avessa ao rigor e à disciplina. Apenas fui rigoroso durante os anos em que escrevi para jornais neerlandeses, quando tinha de respeitar deadlines e o número de palavras.

Já há muito que fez de outro país a sua casa.

Vivo há 56 anos em Amesterdão. E desde 1999 que eu e a minha mulher passamos três meses lá, três meses em Trás- -os-Montes.

Quando foi, sabia que era para ficar?

Fui fazer um trabalho da embaixada do Brasil e ia ficar por duas semanas. Mas depois aconteceu encontrar uma moça e fiquei 56 anos. Estas coisas acontecem.

Antes de Amesterdão, viveu um pouco por toda a parte enquanto jornalista.

Paris, Nova Iorque, Rio de Janeiro e São Paulo. O mundo, nesse tempo, era tão totalmente diferente. Por exemplo, viajar de avião era uma coisa luxuosa, mesmo em classe turística uma pessoa era atendida, tinha refeições chiquíssimas com entrada, prato quente e sobremesa, servidas em faiança.

Escrevia em holandês?

Não, nunca. O meu holandês é muito bom, poderia escrever em holandês ou em francês, inglês, mas tenho um vício que só me sei exprimir tal qual como quero na minha língua.

Porquê?

É mesmo amor à pátria, à língua. Temos uma língua maravilhosa, uma das mais expressivas do mundo. Quando você quer falar de mecânica ou de parafusos ou máquinas, fala em inglês e em alemão, mas se quer falar de sentimentos tem o português, o italiano e o francês.

Há pouco confessava-se um fã de Hitchcock. Falemos sobre isso.

Os títulos de filmes, já me esqueci. Era um favorito, assim como Rosselini, Buñuel... mas não vejo filmes há para aí 20 anos. Agora não me interessa, é muito comercializado. Mesmo quando é uma história cheia de talento, vem com muito bons actores e muito bem realizada mas, talvez por eu ser velho, já não tem surpresa para mim. Já escrevi muito, já inventei muito, começo a ver o fio condutor e perco o interesse.

Falta lembrar que, em tempos, quis ser realizador.

O meu grande sonho era fazer filmes. Mas era um ideal tolo. É que eu achava que o realizador era o sujeito que pegava num cameraman, escrevia a história e fazia um filme. O cinema não é assim, quem manda nunca é o realizador, mas sim o produtor. Quando descobri isso, o meu amor, a paixão acabou.

Os livros, como surgem?

Nunca pensei ser escritor, foi uma coisa que me aconteceu. Nasci escritor. Tinha e tenho um respeito tão grande pela literatura que até aos 30 e tal anos julguei sempre que não era para mim, que era uma coisa demasiado especial e elevada para ser acessível ao sujeito que sou.

O que mudou?

O primeiro livro. Que não fui eu que pedi para ser editado, foram os meus amigos que mandaram para a editora. Foi um sucesso. Ali percebi que, se calhar, não era burro de todo.

Como se ocupa hoje em dia?

Hoje em dia vejo pouca televisão em geral, o que vejo são programas políticos ou de interesse geral. Mas aquela televisão popular, não gosto nada.

Sair de Portugal sempre foi uma vontade?

Por volta dos 15 anos já tinha uma ideia fixa de ir embora. O sistema, a situação social nunca me convenceu que era justa. O desejo maior era procurar um lugar em que pudesse viver com dignidade.

Não lhe custou?

Não. Da primeira vez estive 14 anos sem voltar a Portugal. Quando voltei, por um mês, só tive uma vontade: a de ir embora outra vez. Isto em 1974.

Hoje não tem vontade de ficar?

Não. Consigo viver períodos de três meses em Portugal, mas não mais. Começa a doer. É o sistema, as relações sociais, as desigualdades. Ao fim ao cabo é uma espécie de cobardia, não quero ser confrontado com a desigualdade.

E outro livro, já está nos planos?

Não é superstição, mas cautela: só falo do que me ocupa quando é trabalho acabado.

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