Mentiras, engodos e trapaças. A arte de enganar o próximo

Mentiras, engodos e trapaças. A arte de enganar o próximo


O homem sempre se serviu de pequenos truques para facilitar a vida. Entre os gregos, até os deuses podiam enganar o próximo; mas o Cristianismo chamou à mentira “filha do Diabo”. Não faltam casos de mentiras muitas vezes repetidas com consequências terríveis.


Conta-se que, enquanto os exércitos de Wellington e Napoleão se digladiavam até à morte na planície encharcada de Waterloo, na atual Bélgica, um homem acompanhava avidamente à distância os desenvolvimentos da contenda. Corria o dia 18 de junho de 1815 e ninguém conseguia prever o desfecho da batalha. Embora as forças britânicas, secundadas pelos prussianos comandados pelo velho marechal Blüchner, estivessem em vantagem numérica, o génio militar de Napoleão era capaz de coisas verdadeiramente impossíveis. E estava em jogo nada menos do que o futuro da Europa. “Foi a coisa mais renhida a que assisti na minha vida”, diria Wellington.

Ao fim de cerca de oito horas de furiosos combates, o destino estava selado: Napoleão tinha sido completa e definitivamente derrotado, e desta vez seria desterrado para uma remota ilha no Atlântico Sul, onde ficaria até ao fim dos seus dias.

Cerca de cinco mil cadáveres, para não falar nas carcaças de cavalos, juncavam o campo de batalha. Mas o tal homem que assistira a tudo estava menos preocupado com a carnificina do que com assuntos que só a ele diziam respeito, e pôs-se rapidamente a caminho de casa.

Chegado a Ostend, na costa, uma enorme trovoada tornava a travessia do Canal da Mancha arriscada. Mas ele não hesitou, mesmo tendo de pagar uma fortuna. Tinha um importante negócio à sua espera.

Pânico na bolsa de Londres

Quando finalmente chegou a Londres, ainda ninguém conhecia o desfecho da decisiva batalha – os emissários de Wellington estavam com um atraso de várias horas em relação ao nosso homem. Este dirigiu-se para a Bolsa, onde todos o conheciam. Ali chegado, começou a vender a sua carteira de títulos. Os rumores não se fizeram esperar. O famoso financeiro Nathan Rothschild estava a vender, o que só podia significar uma coisa: que os ingleses tinham perdido a batalha de Waterloo. O pânico alastrou com a velocidade de um relâmpago e os títulos caíram a pique. Rothschild continuava a desfazer-se deles. Caíram ainda mais. Quando já não valiam nada, comprou de uma assentada, por um preço ridículo, todos a que conseguiu deitar a mão. Dali a pouco, chegava a notícia de que Napoleão tinha sido derrotado! O valor dos títulos disparou. Uns ficaram eufóricos – outros, pelo contrário, ficaram desesperados por se terem desfeito dos títulos a troco de nada, só por causa de um rumor.

Quanto a Rothschild, tinha ganho de um momento para o outro a soma colossal de vinte milhões de francos. Se Napoleão era o génio militar, Rothschild era indubitavelmente o mestre da finança… se não da trapaça.

Os ingredientes certos

O anterior relato baseia-se na realidade num panfleto antissemita anónimo intitulado Histoire édifiante et curieuse de Rothschild Ier, roi des juifs, (História edificante e curiosa de Rothschild I, rei dos judeus), impresso em 1846. E tem todas as características de uma boa história – incluindo o facto de não ser verdadeiro. Ninguém duvida de que os Rothschild não só lucraram com as guerras napoleónicas como terão recorrido a métodos duvidosos para acumular a sua lendária fortuna. Mas a venda de títulos no dia seguinte a Waterloo não terá sido um deles.

Em todo o caso, é um bom exemplo de como certas mentiras, desde que tenham os ingredientes certos – e esta tem vários: uma batalha sangrenta, um judeu espertalhão, uma tempestade no mar e um golpe de milhões – fazem o seu caminho e ganham raízes no imaginário coletivo. Até uma fonte tão respeitável e fiável como a Encyclopedia Britannica difundiu a história da fortuna ganha de um momento para o outro na Bolsa de Londres.

Pequenos estratagemas de sobrevivência

A mentira, o logro, o engodo são tão antigos quanto o próprio homem. No caso de Nathan Rothschild, o estratagema teria servido para enriquecer, mas desde tempos imemoriais que a humanidade se serve de esquemas mais ou menos engenhosos para facilitar a vida ou até assegurar a sobrevivência.

O que é a pesca à linha com minhoca? É uma armadilha montada para atrair um peixe ao anzol, onde o animal encontrará inevitavelmente o fim dos seus dias, proporcionando um belo alimento ao pescador. E um espantalho? Um simulacro de homem, ali posto para enganar e afugentar os pássaros, que assim têm medo de invadir o terreno para comer as sementes. E por que se lança fumo sobre as colmeias quando chega a hora de recolher o mel? Para dar o alerta de incêndio e as abelhas deixarem o apicultor trabalhar à vontade. Vendo bem, talvez não seja um expediente assim tão diferente de lançar o pânico na Bolsa de Londres.

No passado como hoje, recorremos a esquemas bem montados para tirarmos proveito do que nos rodeia. As técnicas podem ser mais ou menos sofisticadas, mas não variam muito na essência: criar uma ilusão. Por isso se estimula as vacas para produzirem mais leite (uma vaca que em circunstâncias normais produziria um pouco menos de três litros chega a produzir 28 litros por dia!) ou se acendem luzes para ludibriar o relógio biológico das galinhas e conseguir que deem mais ovos. Foi em cima de pequenos truques como estes que se foi construindo a civilização.

Enganar o próximo

A necessidade aguça o engenho, já diz o provérbio, e situações desesperadas podem requerer soluções recolhidas no grande reservatório da imaginação.

A literatura está cheia de exemplos desses. Segundo a Ilíada, com a guerra de Troia num impasse – as muralhas revelavam-se inexpugnáveis –, Ulisses divisou uma forma de penetrar no reduto inimigo. Os gregos fingem pôr fim ao cerco, deixando um grande cavalo de madeira às portas da cidade. E ficam à espreita. Um dos seus homens, aparentemente descuidado, é apanhado pelos troianos e convence-os a levar o cavalo para dentro das muralhas. De noite, saem de lá os guerreiros gregos que abrem as portas e reduzem a cidade a ruínas.

O herói descrito por Homero não é propriamente um modelo de virtudes éticas. Na sua longa errância depois da Guerra de Troia dá por várias vezes mostras de falta de escrúpulos. Quando ele e os seus homens são feitos reféns por Polifemo, Ulisses induz o ciclope a beber demasiado vinho e, quando este adormece, espeta-lhe um pau no olho, deixando-o cego, deixando o caminho livre para a fuga.

Por isso o poeta Virgílio não hesitou em criticar Ulisses, chamando-lhe “falso” e “traiçoeiro”. Mas Ulisses não era caso único. A mitologia grega está cheia de comportamentos deste tipo – e nem os deuses escapam à tentação de enganar o próximo para atingirem os seus fins, quanto mais os homens…

A cultura cristã, pelo contrário, vai condenar inequivocamente a mentira, chamando-lhe mesmo “filha do Diabo”. Não faltam razões para isso.

Duas mentiras nefastas

Outro exemplo bem conhecido de falta de escrúpulos são os famosos Protocolos dos Sábios de Sião. Escritos num tom que não desagradaria ao autor do panfleto contra Nathan Rotschild, supostamente reproduzem a ata de um Congresso internacional de judeus e maços, realizado em 1898 em Basileia (Suíça), onde estes teriam gizado um plano para controlar o mundo. Uma investigação do The Times of London, em 1921, mostrava que muito do texto era plagiado de uma obra satírica francesa de 1865. O resto fora inventado por um obscuro romancista alemão chamado Hermann Goedsche. Mas, mais uma vez, muitos acreditaram – e na década de 1930 os nazis continuavam a apresentar os Protocolos como prova da conspiração judaica que havia que desmantelar. Hitler insistia que o texto era “autêntico”. Os resultados dessa mentira são sobejamente conhecidos.

Em tempos mais recentes, no início do século XXI, uma outra mentira muitas vezes repetida serviu para justificar a invasão do Iraque. “Armas de destruição maciça”, apontaram os falcões de Washington. O pretexto era tanto mais risível quanto as verdadeiras armas de destruição maciça nunca foram um problema para os EUA. As atuais bombas termonucleares têm uma capacidade de destruição equivalente a aproximadamente mil bombas de Hiroxima detonadas em simultâneo e estima-se que existam no mundo cerca de 13 mil ogivas nucleares. Se os EUA invadissem todos os países que representam uma ameaça teriam um longo trabalho pela frente.

Uma partida em Frankfurt

A mentira pode assumir muitas facetas, pode ser piedosa ou mal intencionada. Quando é mais ou menos inofensiva, e tem apenas um destino lúdico, chama-se-lhe ‘pregar uma partida’. Umberto Eco, que assumia o seu “fascínio pelo erro, pela má-fé e pela estupidez” conta-nos um episódio especialmente divertido. “Um dia, personalidades do mundo da edição encontram-se em volta de uma mesa na Feira do Livro de Frankfurt”, relata o escritor italiano em A Obsessão do Fogo. “Estão aí Gaston Gallimard, Paul Flammand, Ledig-Rowohlt e Valentino Bompiani. Por outras palavras, o estado-maior da edição na Europa. Eles comentam essa nova mania que se apoderou da edição e que consiste em sobrestimar jovens autores, que ainda não deram provas. Um deles tem a ideia de inventar um autor. O seu nome será Milo Temesvar, autor do já reputado Let Me Say Now, pelo qual a American Library ofereceu logo naquela manhã cinquenta mil dólares. Decidem então fazer circular a notícia e ver o que acontece.

Bompiani regressa ao seu stand e conta-nos a história a mim e ao meu colega (na época, trabalhávamos para ele). A ideia seduz-nos e começamos a vaguear pelas áreas da feira, espalhando furtivamente o nome em breve famoso de Milo Temesvar. À noite, no decurso de um jantar, Giangiacomo Feltrinelli dirige-se a nós muito excitado e diz-nos: «Não percam o vosso tempo. Adquiri os direitos mundiais de Let Me Say Now!»”

Ora aí está um excelente conselho: “Não percam o vosso tempo”. Por isso, quanto a mentiras, estamos conversados.