Catarina Costa. A maquete do infinito


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Com cerca de uma dezena de títulos de poesia já editados, ignorados e desaparecidos, numa altura em que a poesia se entretém a apodrecer em catálogos indiferentes, fazendo o culto das suas ruínas artificiais, como de um ângulo morto, surge-nos um novo livro de Catarina Costa, um sóbrio e poderoso exercício retórico que exemplifica como de um momento para outro pode estar ainda tudo em causa.

Face a uma época marcada por um instinto de deserção, talvez a poesia devesse elaborar uma traição sem paliativos, de modo a contrariar uma forma de declínio em que o carácter rotineiro da decadência enfraquece o próprio sentimento de pesar, ou remorso. “Coabitamos com os parvos da história./ Os que arrastam nos gestos/ a identificação,/ a idade senil dos personagens (…) sobre um palco doente”, lê-se nuns versos de Armando Silva Carvalho. Olhamos ao redor, e não vemos exemplos de gestos ou formas que procurem resgatar uma imagem do tempo de vida de um homem como uma conjunção de todos os tempos, uma hipótese de eternidade, mas estamos sujeitos à crescente imposição de um drama que se deixa dissolver na face mais mesquinha da realidade. O passado já não parece ser um objecto de fascínio, e cada vez são menos aqueles que mergulham nessas pluralidades hipotéticas que fazem da literatura um modo de abrir o tempo enquanto espaço de que a história precisa, formulando a sua condição de actualidade, esse universo em crise no qual a todo o momento o futuro determina o passado, ou, em sentido inverso, este o presente e o futuro, de tal modo que um livro possa reenviar a todos os livros, porque não abre mão do todo, real ou hipotético do homem. “Pensamos nos que morreram noutros séculos/ sem uma recordação que lhes dê forma,/ uma multidão de mortos anónimos/ na qual tentamos apreender/ a curva de um ou outro olhar// em vivos também eles poderão ter pensado em nós/ do mesmo modo,/ a turba nebulosa de quem estava para chegar// quase se diria que nos cruzamos numa batida/ do coração arrítmico da dessincronia// pensamos nos mortos de outros séculos/ e talvez eles também nos tenham pensado/ sem nome nem rosto,/ embriões fantasmais da espécie/ imaginados onde o pensamento/ ainda não se fez memória”. Subitamente, sem aviso e numa colecção de poesia tão irregular (Companhia das Ilhas), e sem um critério propriamente discernível, surge-nos uma obra que, sem romper em definitivo com aquele canto de cisne ao qual se aferrou a geração precedente, e que ainda teve algum peso nas primeiras duas décadas deste século, alcança uma maturidade que lhe faltou, sendo que essa geração parecia ter condenado (nalguns casos mesmo de forma tudo menos ingénua) a poesia a uma natural extinção ou, no melhor dos casos, a uma agonia mais hermética e barroca, ou mais sarcástica. Se alguns, por falta de um dom assombroso capaz de serem os introdutores de uma outra razão ou sentido, de desbravarem novas geografias, se consolam com o prestígio de serem os últimos, e formam essas bandas de violinistas que acorrem a todos os naufrágios para fornecer a banda sonora da catástrofe, esta é uma arte que, ao fim de milhares de anos, desdenha todos os esforços daqueles que, para efeitos de promoção pessoal, confundem o próprio abatimento das suas vidas com um diagnóstico mais geral. Em grande medida, mantém-se ainda o princípio de que nem seria necessário forçar tanto os limites, mas bastaria que se observasse de alguns um empenho em retomar o sentido nessas geografias demasiado exploradas ou saqueadas pelo modernismo, aproveitando-se das dificuldades para reformular os modos de se tomar consciência do seu tempo, e enfrentar as suas taras. Como vincou Brodsky num dos seus ensaios, “em certos períodos da história, só a poesia se mostra capaz de lidar com a realidade, condensando-a numa forma apreensível, algo que de outro modo a mente não poderia reter”. Felizmente, de há uns tempos a esta parte, deixamos de sentir qualquer esforço de evitar a sombra dos nossos imediatos antecessores, uma vez que eles mesmos, tendo abdicado da incerteza e do ânimo que pode gerar novas descobertas, numa postura defensiva, se dedicaram a imitar-se a si mesmos, sendo os principais responsáveis por demonstrar a falência de a limitação das suas propostas. Por outro lado, alguns dos poetas que, por estes dias, não podem já ser simplesmente mantidos em quarentena, junto de outras jovens promessas, de modo a não trazerem infecções que possam devastar o catálogo, alguns têm-se visto obrigados a constituir obras muitíssimo relevantes numa espécie de clandestinidade, sendo sucessivamente ignorados, mas estes raros nomes souberam guiar-se por um mesmo instinto de sobrevivência, acolhendo-se junto da corrente de certa poesia de tom menor, e, a partir daí, sem quaisquer ajudas de custo nem rendimentos de inserção, puderam provar a sua resistência e encontrar um modo de se libertar dos excessos da pose, reabilitando uma modulação íntima da fala do poema que não se confunde com o estéril biografismo ou a idade senil dos personagens, e que em vez de se limitar a algum regime de reclusão, dedicando-se, como tantos, a cultivar os seus estupefacientes privados, têm mostrado um desejo de resgatar um balanço da poesia que lhe permite atravessar o real construindo uma consciência profunda e se lança para o irreal e a eternidade. “Deveríamos levar a vida como Masha Ivashintsova,/ ter a mesma abnegação pelo que se possui,/ passar os dias a tirar fotografias/ para as deixar irreveladas no sótão,/ acumulando em caixas 30 mil negativos// captar as sombras frias da Rússia/ para as deixar duplamente sombrias/ a um canto// aceitar que a revelação do negativo/ não traz à luz mais do que um retrato/ de traços corroídos,/ outra película de penumbra// aceitar aquilo que o mundo nos dá/ em primeira mão: os seus negativos/ e avessos, as suas latências,/ os haletos de prata e trevas/ onde se desenha em cores invertidas/ aquilo que já não reverterá”.

Num livro como “Os que não caem como Ícaro” assistimos a uma ostensiva desafeição da poesia face aos encadeamentos e à reprodução de gestos e tiques próprios dos tais personagens senis, entregando-se a um drama esgotado sobre um palco doente. Catarina Costa não vem actuar como mais um ventríloquo, não se deixa dissolver num retrato de vivências particulares, não se oferece como exemplo, mas parece pressentir como a história, tal como os seus objectos, tem opções bastante limitadas, e vira-se para uma indagação sem um sujeito definido, deixando claro que aquilo que mais interessa ao poeta não é tanto a sua própria vida, mas precisamente o tempo e os efeitos da sua monotonia na psique humana e na sua dicção em particular. Segundo Brodsky, aquilo a que chamamos a música de um poema é essencialmente a forma como este reestrutura o tempo de tal maneira que o seu conteúdo se vê reforçado por uma composição linguística que chega a parecer inevitável de tal modo se torna para nós memorável. E mesmo se a poesia de Catarina Costa carece de um ouvido musical, e se há nos seus versos alguma fragilidade a nível da prosódia, e até, em alguns dos poemas, não se vê o que possam as cesuras estar ali a fazer, é inegável o vigor da sua dicção, que se não gera enlevo pelo lado prosódico ou pelo desequilíbrio sintáctico, dá provas de uma perícia lexical que tem andado ausente da generalidade da poesia que hoje se publica, e ao dispor um campo semântico urdido de forma tão rigorosa, traz à tonalidade clássica um gosto de correcção e urgência, de tal modo que a gramática demonstra ser um nexo decisivo na captura e elaboração de um tempo autónomo. Leia-se um poema como “Os anos bélicos”: “Não duram mais do que uns poucos anos/ as grandes guerras e paixões –/ o suficiente para elucidar o sentido/ do que vem depois// a vida definível pela sobrevivência à devastação/ mais do que pela vitória/ ou derrota// desejarias ser o sobrevivente/ de uma guerra em que tivesses acreditado –// teres esse ónus/ a guiar-te pelas trincheiras agora desertas/ onde não sabes para que lado deves disparar/ os teus cartuchos vazios”.

Brodsky insiste que, mais que qualquer outra arte, a poesia é uma forma de educação sentimental, e os leitores que dela se sabem servir buscam aqueles versos dignos de serem decorados e que preservam o alento da sua visão pessoal face à ofensiva de vulgaridade da era actual. Para este poeta, “a compreensão da metafísica do drama pessoal aumenta as hipóteses de se resistir ao drama da história”. Assim, os leitores educam os seus instintos de forma a que o seu ímpeto de auto-preservação não esteja simplesmente alinhado com a debandada que se tem vindo a tornar cada vez mais audível. O certo é que muita da poesia que se escreve por estes dias acolheu aquela noção do apocalipse como um elemento central do nosso repertório ideológico. “É um afrodisíaco. Um pesadelo. Uma mercadoria como qualquer outra”, vinca Hans Magnus Enzensberger. “Damos com ele nas mais diversas formas e feitios: alerta e previsão científica, ficção colectiva e grito de guerra sectário, produto da indústria do entretenimento, superstição, mitologia vulgar, enigma, impulso, piada, projecção. Está sempre presente, ainda que não seja ‘real’: é uma segunda realidade, uma imagem que construímos para nós próprios, um produto incessante da nossa imaginação, a catástrofe na mente.” Contudo, este formidável poeta e ensaísta alemão, assinala que, se nas suas formulações tradicionais o apocalipse era uma ideia venerável, até sagrada, a catástrofe com que estamos cada vez mais preocupados (ou melhor, que nos assombra) é um fenómeno totalmente secularizado. “O apocalipse também já foi um evento único, aguardado sem aviso prévio, como um raio no céu azul: um momento impensável que apenas videntes e profetas poderiam antecipar — sendo que, claro, ninguém queria dar ouvidos aos seus avisos e previsões. O nosso fim do mundo, por outro lado, é cantado até pelos pardais nos beirais. O elemento-surpresa está ausente. Tudo parece ser apenas uma questão de tempo. O desastre que imaginamos para nós próprios é insidioso e a sua aproximação é angustiantemente demorada. O apocalipse chega em câmara lenta. Faz lembrar aquele antigo clássico vanguardista do cinema mudo em que uma enorme chaminé de fábrica se racha ao meio e se desmorona silenciosamente, durante uns longos vinte minutos, enquanto os espectadores, num indolente conforto, se recostam nos seus cadeirões de veludo gasto e trincam pipocas e amendoins.” Os alertas são incessantes, e tudo serve para alimentar um regime de psicose que só consegue produzir um estado de ainda maior inércia, uma vez que o próprio desespero tem visto degradada a sua qualidade de impulso, gerando uma espécie de habituação a esse desastre iminente, que, no entanto, não acontecerá esta tarde. “Hoje tudo continuará como antes, talvez um pouco pior do que na semana passada, mas não o suficiente para que alguém o perceba. Se, o que é sempre uma possibilidade, um ou outro de nós ficar um pouco deprimido esta tarde, pode consolá-lo a ideia de que, independentemente de trabalhar no Pentágono ou no submundo, a cuidar da roupa ou a soldar chapas de metal, tudo seria realmente mais fácil se nos livrássemos do problema de uma vez por todas, ou seja, se a catástrofe realmente viesse. Isso está, porém, fora de questão. A finalidade, que antes era um dos principais atributos do apocalipse, e uma das razões do seu poder de atracção, já não nos é garantida.”

Muita da poesia que se tem feito valer desta relação com o apocalipse como de um afrodisíaco ou de uma vaga inquietação que não chega ao ponto de sacudir nem produzir um abalo transformador nos seus leitores, poderia ser comparada com a moda das ruínas artificiais, normalmente de estilo gótico ou afectando os restos da antiguidade. “Achavam que as ruínas podiam ser tão belas/ que as construíam de propósito –// deleitavam-se na sua contemplação:/ arcos triunfais escarificados/ comemorando o triunfo numa guerra/ de mortos já feéricos,/ abóbadas esventradas pondo a nu/ a delicada geometria dos ventres de pedra,/ colunas jónicas em pé nada sustentando/ excepto a memória de um templo imaginário,/ estátuas escaqueiradas com cuidado/ mantendo o encanto do perfil// quão longe da destruição da guerra,/ essa que deixa atrás esqueletos de perdido porte,/ arcadas massivamente colapsadas/ ausentes já da ideia de arco,/ ossaturas dispostas à rapina/ e cujas fracturas a céu aberto/ causam mais horror do que melancolia,/ pilares caídos que lembram como as casas/ se abateram sobre os habitantes,/ estátuas decepadas negando/ o seu anterior poder de representação// quão longe da brutalidade estão estas ruínas/ destroço a destroço construídas de raiz/ obedecendo às formas ideais/ de como pedra por pedra a matéria/ deveria na sua justa medida decair”. Esta comparação  deixa claro como, mesmo o suposto grau de lucidez ulcerosa de certa poesia, não passa de uma falsificação, só que em vez de esta recair sobre o passado, produzem-se agora ruínas do futuro, esse mesmo de que nos fomos desobrigando.

Por outro lado, a poesia de Catarina Costa consegue sempre ser mais subtil e comprometida com a realidade, sem se bastar com lógicas de inventário ou descrição, multiplicando em símiles ou entregando-se a enredos de ordem escatológica. O mundo ameaçado exige uma contemplação mais atenta a esses aspectos da existência em que esta tudo fez para se preservar e defender, e como o milagre do próprio intelecto, antes de se ver conformado com certas ilusões psicóticas, tinha como intuito erguer um escudo e rechaçar as agressões. “A pérola, substância que o molusco segrega/ no interior da sua concha para se defender de parasitas/ é uma armadura/ cobertura esplendente/ cristalizando e envolvendo o invasor –// a natureza não cria prodígios vãos// vamos descobrindo na beleza/ as suas funções de defesa e agressão// em sentido inverso/ podemos descobrir em cada arma/ a beleza frágil do escudo”. Esta parece ser a condição desta poesia, que se defende de uma bárbara ou mesmo invertebrada vagueza e da obscena trivialidade que vem tomando conta deste género, e que aponta para esse elemento decisivo desta arte. Como nos lembra Auden, para a poesia chega a ser ao mesmo tempo um privilégio e uma desgraça o facto de o seu meio de expressão não lhe pertencer em exclusivo, ou seja, que aos poetas não seja possível inventar a torto e a direito as suas próprias palavras, que estas não sejam um produto da natureza, mas de uma sociedade que as utiliza com tão distintos propósitos. “Nas sociedades modernas, onde a linguagem constantemente se vê corrompida e reduzida a balbucios, o poeta corre sempre o perigo de que o seu ouvido se perverta, um perigo que não enfrentam os pintores ou os compositores, que trabalham com uma linguagem privada. Por outro lado, o poeta está em vantagem com relação a um outro perigo moderno: o da subjectividade solipsista. Não importa o quão esotérico possa ser um poema, o simples facto de as palavras que o compõem terem um significado que pode consultar-se num dicionário serve de testemunho da existência de outras pessoas. Nem mesmo a linguagem do Finegans Wake de Joyce surgiu ex-nihilo: um mundo verbal estrictamente privado é impossível.”

Ora, Catarina Costa parece nunca deixar de estar consciente deste facto. Os seus poemas raramente começam por algum estímulo sensorial, antes aproximando-se do assunto a partir de um ângulo do pensamento, sendo na sua maioria meditações que, tantas vezes, a partir de um prisma epistemológico, vão desvelando certas impressões ou conceitos no transcurso dos versos, e em lugar de uma experiência de ordem biográfica, estamos no campo do intelecto, sendo escassas as imagens, e mesmo aquelas que surgem não estão ali para confortar-nos, nem se dissolvem nas habituais texturas ou paisagens poéticas, mas firmam algum ponto de vista. Esta é uma poesia muitíssimo vigiada, que opera uma purga dos excessos temperamentais que fizeram de tanta da poesia contemporânea um esquema para ficções ensimesmadas, pífios desabafos, ou redes obsessivas que se servem da metáfora para enredar o leitor num campo de sugestões e de um onirismo sem saída. Há um juízo de tal modo preponderante nos poemas de Catarina Costa que chega a ser difícil recortar uns versos aqui e outros ali, porque estes apenas assumem a sua plena exalação na ordem tão particular em que surgem naquele quadro. E este é um livro de uma coesão extraordinária, e, embora nem todos os poemas estejam ao mesmo nível, os melhores revelam uma capacidade fabulosa no que toca a construir estruturas que revelam uma evolução e uma harmonia sumptuosas, como se fossem equações, planos, esboços arquitectónicos para cidades entre entressonhadas. “O labirinto é plácida armadilha e refúgio,/ encurrala-te e protege-te,/ vais desbravando as suas estreitas sendas/ que apenas levam a outras,/ únicos troços de terra a que te dás ao luxo de conhecer/ à medida dos teus parcos passos/ que, porém, não param/ entre o arbustos altos de folhagem densa/ cujas nervuras são também sendas/ por sua vez bifurcando-se/ e assim sucessivamente/ até ao coração dividido do atalho,/ a fonte sangrante das veias e vias/ em circuito fechado,/ esqueceste a necessidade primária de buscar a saída,/ buscas antes as entradas por onde te embrenhas/ ainda mais no esplendor das ramificações/ na maquete do infinito,/ não é o Minotauro quem está no centro/ és tu/ e não tens nenhum monstro a quem derrotar/ no meio da monstruosa serenidade das encruzilhadas/ o centro nem sequer existe/ ele é o conjunto das orlas verdejantes/ em redor de um núcleo imaginário/ por onde tu e o inexistente Minotauro/ se subsomem,/ perdes-te e encontras-te em simultâneos ziguezagues,/ receias os caminhos rectos que forçariam o corpo/ ao avanço lógico, cronológico/ numa determinada direcção,/ preferes continuar intemporalmente a vaguear/ a menos que pudesses fugir pelo voo/ pois é fácil o voo ser também sem rumo,/ não pões de lado o artifício de Dédalo/ que construiu umas asas toscas/ e saiu do labirinto pelo céu”.

Esta poesia sabe que toda a literatura é um irreal, e que, por sê-lo, o real apenas serve para amparar o seu alcance, servir de chave, oferecer-nos sempre elementos para uma decifração mais profunda. “O que se ama cegamente/ seja o que for tem no seu cerne/ a irrealidade”, diz-nos a poeta. É necessário um desajustamento, um pressentimento e mesmo um desejo em relação àquilo que falta, ao invisível ou inexistente, de tal modo que se estabeleça esse pacto com uma realidade em decomposição e recomposição, virando-se o poeta para a sua matéria, que é “a linguagem em luta consigo mesma, quer dizer, com a sua relação ao real” (Eduardo Lourenço). Assim se arranca a este mundo um eco que se vai desenraizando, numa alucinação tão frutífera quanto não se liberte inteiramente nem deixe de se observar ao espelho da realidade. E, nesta poesia, vemos operar-se uma sincronização do ruído epocal de modo a fazer emergir um tom reflexivo, com o género poético a ser reinvestido desse papel de olhar e desejar e transcender as coisas. Mas se isto ocorre é por estes poemas não estarem cativos de qualquer identidade, revelando um pudor que se esquiva às mais vulgares tentações e mimetismos, empurrando a poesia de volta para o campo da indagação retórica. Num livro como este, fica claro que Catarina Costa assume um fulgor hoje invulgar no âmbito abstracto e no mundo da especulação filosófica, estabelecendo uma antítese decisiva face a essas consciências que tudo submetem à observação de si mesmas, sempre dispostas a acomodar-se ou a deslumbrarem-se consigo próprias.

Esta poeta recusa esses modos de absorção em torno do ego, e prefere operar de uma maneira oblíqua, com uma certa serenidade clássica, como se os versos estivessem transidos da intricada lucidez de um Horácio. Estamos sempre perante um trabalho de depuração que se distingue da imaturidade intelectual de tantos autores coetâneos, que se refugiam entre um excesso de impressões e o disparo de vagas sucessivas de imagens ou da constante corrosão sintáctica apenas para turvar a falta de qualquer ideia, qualquer noção ameaçadora. Tornou-se bastante comum uma espécie de prostituição da linguagem para produzir um efeito qualquer, e que sinaliza ao mesmo tempo a paixão pelo efémero e pela precarização do discurso, o qual já não procura a totalidade temporal, inventando o seu passado como o seu futuro. E isto partindo do princípio de que cada poema, se enuncia apenas um segmento da cadeia linguística, não se alheia da linguagem como um todo, e das plurais leituras que cada instante nos abre. Mas, hoje em dia, quando a crítica foi substituída pela publicidade e a própria existência da literatura enquanto potência capaz de fazer e desfazer a sua época alimentando-se das anteriores, do imaginário e da efabulação, está em risco, este tipo de ambições parecem já muito distantes do horizonte daqueles que escrevem em verso. E, por isso mesmo, um livro como este vem lembrar-nos que a inteligência e o rigor, longe de serem meras relíquias de um mundo abolido, são elementos que apelam à nossa indigência e se mostram hoje mais necessários do que nunca. Mas se tantos se refastelam na indigência, isso diz-nos também como o apocalipse, além de mais outro estupefaciente, é sobretudo um álibi, um modo de se aliviar da tarefa de procurar estar à altura dos que vieram antes, ou até dos que virão depois, quando a pobreza e as dificuldades de uma existência em equilíbrio nos restituir à nossa necessidade de voltar a pensar o tempo como a nossa principal tarefa. Mas em resposta aos ansiosos maestros desse fácil pessimismo apocalíptico, basta lembrar que este não é o fim nem o princípio do mundo, e só para nós é que começa a ficar tarde. “Ainda não chegou o tempo das anãs negras/ o universo é ainda demasiado jovem/ e o ponto final da evolução das estrelas/ é conjectura –/ um remanescente estelar teórico// o nosso tempo, porém, já chegou –/ somos demasiado velhos/ com um fim a carecer de conjecturas// se ainda não tivéssemos presenciado/a nossa última metamorfose,/ a decomposição da carne,/ concebê-la-íamos numa fórmula límpida// tal como para a estrela moribunda/ projectamos uma esfera negra perfeita e plácida/ projectaríamos para nós uma carcaça flutuante/ de matéria escura que guarda os seus mistérios// sereno, opaco/ rútilo talvez nas suas fracções mais recuadas –/ o nosso remanescente teórico”.