“Sinto que o sistema nunca me protegeu”

“Sinto que o sistema nunca me protegeu”


Mais de 80 pessoas apresentam queixa diariamente por violência doméstica em Portugal. Helena foi uma dessas vítimas e conta ao i a sua história


Toda a mulher tem o direito de viver sem medo. Dizer “não” é um direito e respeitar é uma obrigação. Já lá vai o tempo em que se dizia: “entre marido e mulher não se mete a colher”. Sabemos que a violência contra as mulheres continua a ser uma realidade bem presente no mundo. Apesar dos progressos, há que ter consciência dos desafios e das desigualdades baseadas no género que ainda persistem na sociedade.

Segundo o mais recente relatório da Human Rights Watch (HRW) referente a 2024, os direitos das mulheres são desrespeitados em quase todo o mundo. No entanto, na maior parte dos casos, os governos demonstram “indiferença” ou impõem “sanções leves” aos crimes de género.

Violência no mundo 

Na descrição da situação dos direitos das mulheres e raparigas em mais de 100 países do mundo, é possível concluir que é na região do Médio Oriente que a discriminação das mulheres é mais visível. É o caso da Arábia Saudita, cuja legislação consagra diretamente a discriminação das mulheres e a “tutela masculina”. Este país manteve, em 2024 e apesar dos avisos das organizações de defesa dos direitos humanos, “todas as disposições legais que facilitam a violência doméstica e o abuso sexual no casamento”. 

No Qatar, por exemplo, recusar ter relações sexuais é “motivo legítimo” para uma mulher perder o sustento conjugal, sendo que não podem trabalhar fora de casa sem autorização.

De acordo com o mesmo relatório, as mulheres dos países africanos também constituem uma preocupação constante, já que, em muitos casos, as taxas de femicídio crescem de “forma alarmante”, a violência doméstica e sexual é “quase generalizada”, e muitos países ainda praticam a mutilação genital e os casamentos infantis. Porém, é na Ásia onde a perda de direitos das mulheres é mais “flagrante”. Recorde-se que, no Afeganistão, as restrições impostas pelos talibãs agravam-se todos os anos desde 2021.

Casos aumentam no país

Em Portugal, depois dos crimes de condução sob o efeito do álcool ou de condução sem habilitação legal que aparecem no topo dos registos policiais, surgem os crimes de violência doméstica. Segundo os dados fornecidos pela PSP ao Nascer do SOL, no princípio do mês, no ano de 2024, esta registou 15.781 participações, tendo efetuado 1.281 detenções, “das quais 625 em flagrante delito e 656 fora de flagrante delito”. “Durante o ano de 2024, a PSP procedeu à abertura de 19.219 inquéritos criminais por determinação do Ministério Público (MP), processos esses que representam mais de 19% dos inquéritos delegados pelo MP na PSP. Dos cidadãos que não chegaram a ser detidos, a PSP constituiu arguidos 6.837 suspeitos da prática do crime de violência doméstica, tendo sido aplicadas 94 medidas de coação de prisão preventiva pela Autoridade Judiciária competente”, acrescenta a direção nacional. 

E verifica-se um aumento de 2023 para 2024 – mais 282 denúncias e mais 310 detenções. Em 2023, registaram-se 15.499 denúncias de violência doméstica. Das 971 detenções efetuadas, 612 foram em flagrante delito e 359 fora de flagrante delito.

No princípio de fevereiro, a GNR também revelou os seus números. No ano de 2024, recebeu 14.412 queixas, contra as 14.825 de 2023. Juntando os dados da PSP e da GNR chega-se à conclusão que mais de 80 pessoas apresentam queixa diariamente por violência doméstica.

Um amor cego 

Para Helena Nunes, que sofreu na pele este tipo de violência, Portugal ainda fecha os olhos aos direitos das mulheres. “A todas… Às que são mães, às que só querem ser amadas e àquelas que só querem ser mulheres com os seus devidos direitos”, lamenta. “Protege muito os homens e a misoginia. Estou ainda hoje muito revoltada com o sistema. Não sinto que estejamos protegidas. Nem os nossos filhos e filhas”, acrescenta.

Conheceu o seu antigo companheiro e pai do seu filho através de um grupo de “amigos” com os quais saía na altura. Tinha apenas 20 anos. “Ele era sete anos mais velho. Eu estava sem rumo e, quando o conheci, senti que seria um messias na minha vida pela maneira como me fazia sentir especial”, conta ao i. “Fez-me acreditar na espiritualidade e que nada acontece por acaso”, continua. “‘O amor é cego, surdo e mudo’, porque mesmo nessa altura da paixão e deslumbre, já aconteciam coisas que me deviam ter feito questionar e não levar avante a relação”, lembra.

Segundo Helena, o que vestia incomodava-o, principalmente se fosse para se encontrarem com os amigos dele. Além disso, teve de verificar assuntos de tribunal, quando este foi para a Irlanda, “pois já tinha tido problemas que ficaram por resolver, como pagar multas por ter andado em atritos”. Também começou desde cedo a mostrar ter duas caras. Mostrando uma coisa perante a família e amigos e outra, quando estavam apenas os dois. “Porque é que não acabei as coisas logo aí? Pela falta de amor próprio”, assegura a jovem de 26 anos.

O começo das agressões

As coisas começaram a piorar quando largou tudo para ir com ele para Belfast, Irlanda do Norte. “Fomos viver para a casa da irmã dele, mais velha, e poucos meses depois levei uma chapada por algo que tinha dito. Nessa altura, já estava com um bebé na barriga”, revela. Foi apenas o princípio do pesadelo. “Grávida de quase três meses, voltei para Portugal, com medo do que podia vir a acontecer, pois não queria abrir mão desta gravidez, talvez por já ter tido um aborto espontâneo antes”, lamenta.

Infelizmente, mesmo longe e querendo sair da relação, a manipulação continuou e Helena voltou para a Irlanda. “As pessoas podem pensar que fui fraca, mas não estava bem nessa altura. Acabámos por alugar uma casa e não foi preciso muito até começarem de novo as agressões. Fui agarrada pelo colarinho, muitas vezes enxovalhada e humilhada, como se fosse a pessoa mais nojenta do mundo por não ter tirado umas roupas da máquina ou por não ter energia para limpar a casa”, admite.

Acabaram por ser despejados, pois o seu companheiro “jogava mais com o dinheiro do que pagava as contas”. Foram depois para uma casa partilhada e, durante esse tempo, as coisas acalmaram. “Deu-me esperança de que as coisas podiam melhorar”, afirma. Infelizmente, estava enganada. “Dei à luz o meu bebé e voltámos para uma casa alugada, onde as agressões começaram a ser bem piores”, garante.

Helena só saia de casa para ir às compras e não podia comprar muita coisa, já que era o companheiro que trabalhava. “Tinha acabado de ter um filho. Maquilhar-me para me sentir um pouco mais viva, era motivo para me perguntar o porquê de eu o fazer. Depois veio a playstation e o Fifa online. Para além de me tratar mal, não me ouvia. Um dia arranquei a consola da tomada para levá-la para o quarto. Nada me preparou para o mata leão e para os pontapés que vieram antes que eu chegasse à porta”, detalha. “Fui chamada de vaca, porca, puta e ouvia muitas vezes: ‘Podes chorar à vontade que eu não quero saber’. Com o meu filho nos braços ouvia que devia ter abortado”, conta ainda. Helena foi ainda levada a afastar-se das redes sociais. A dada altura, a família e amigos deixaram de conseguir comunicar com ela. Era o companheiro que o fazia, dizendo às pessoas que a companheira não estava bem e que tinha decidido afastar-se de tudo quando na verdade era ele que não a permitia pedir ajuda. “Chegou a colocar o seu joelho em cima do meu pescoço, a tirar-me do sofá pelos cabelos e a atirar-me para o chão”, lembra.

O sofrimento da vítima 

Helena começou a transformar-se em algo que não queria. “Só quem sofre na pele este tipo de abusos é que pode compreender. A dada altura, meti o medo para trás das costas. Numa das vezes em que me humilhava, acabei por atirar com o cinzeiro na sua direção, sujando a cozinha que ele tinha acabado de limpar. Fui para o quarto onde o meu filho estava a dormir e acabei por levar duas chapadas que me fizeram sangrar do nariz”, partilha. Ouvir o filho chorar e ver o sangue a correr no rosto foi a gota de água. “Fui atrás dele – pois ele saiu mal me bateu – agarrei na peça do aspirador que estava à mão e bati-lhe. Estava desesperada, cega de raiva. Felizmente consegui pensar no meu filho e parei. Foi a última vez que me bateu”, revela. 

Conseguiu ganhar força para fugir. Voltou para Portugal, mas o ex-companheiro veio atrás dela. “Começou a perseguição. A minha, dos meus… Chegou a conseguir agredir-me numa noite em que subiu ao telhado da minha casa e bateu na claraboia. Fui ver o que se passava e levei um soco no olho. Numa outra vez, partiu-me uma janela da cozinha… Sempre fez parecer a toda a gente que eu era a louca. Ele é um excelente manipulador. A dada altura, a CPCJ também foi colocada ao barulho”, admite. Helena pediu ajuda, fez queixa contra o ex-companheiro, mas o seu filho acabou por lhe ser retirado. Ficou um ano sem ele. 

Hoje, a criança já não está na instituição e, com o passar do tempo, a perseguição terminou. “Atualmente não temos qualquer relação ou contacto e mantenho uma relação cordial com a família dele, pelo bem estar do nosso filho. Mas é mesmo muito triste e assustador ter feito tantas queixas, haver tantas provas e ele nunca ter sofrido as consequências. Não consigo mesmo compreender e acho que vou morrer com essa dúvida. Posso não ter conseguido proteger o meu filho, mas sinto que o sistema também nunca me protegeu. Espero que esta história possa fazer a diferença na vida de alguém. Não se calem!”, remata.