Werner Herzog. A verdade vagueia pelas florestas


.


“Cada um por si e Deus contra todos” é o testemunho de uma vida que correu todos os riscos para fazer o que era capaz de fazer. Um livro repleto de histórias que desafiam a nossa credulidade, que nos põem em contacto com um mundo onde a presença da morte, da travessia do perigo, está sempre em relação com um plano que ultrapassa o que tomamos por real.

“Cada um por si e Deus contra todos”, um filme de Werner Herzog sobre a história de Kasper Hauser, começa com um homem num pequeno barco a remar e a olhar para trás, sem sabermos se foge temeroso ou se olha saudoso para o que abandona. Na margem uma jovem e uma mulher, olham-no petrificadas. Depois deste pequeno prefácio, surge um plano fixo de um campo de trigo agitado pelo vento, sobre o qual aparece a seguinte frase: “Não ouvem à vossa volta os gritos terríveis que, normalmente, chamamos silêncio?” Este salto para dentro do enigma, onde a imagem irrompe enfeitiçada, como um labirinto, um entrelaçar de sentidos, desarma-nos como um tremor mitológico. Nos filmes de Herzog, há sempre uma imagem por detrás da imagem, um texto por detrás do texto, uma história dentro da história. Descobri os seus filmes, numa época conturbada, pelos meus vinte anos. No entanto, o confronto com as suas imagens, carregadas de tensões, com uma natureza assombrada, onde as paisagens são como elevações de uma interioridade, inscreveram-se na minha memória. Estava num lugar asfixiado pelo planeamento e pela manipulação, a densidade trágica dos seus filmes punha-me em causa, sacudia-me da dormência onde estava mergulhado. Muitos anos mais tarde, quando os revi, consegui articular algumas coisas sobre o seu poder encantatório. Na altura, eram mais fortes do que o álcool e, como ele, embriagavam-me, entregavam-me a um universo trágico, onde o tumulto e a violência me desafiavam a descobrir sentidos para o que aparecia. O monstruoso nos seus filmes começa com o reconhecimento de uma solidão irrevogável. O homem caí neste mundo sem saber de onde vem. A verdade revela-se quase sempre como um transe, um advento que adensa o mistério em vez de o dissipar. “A vida do homem entre o céu e a terra é como um cavalo branco que atravessa um desfiladeiro; um relâmpago.” escreveu Chuang Tse. Apesar do cinema parecer condenado a colocar-nos fora do acontecimento, Herzog, nos seus filmes, quer devolver-nos o encontro com o relâmpago, com aquilo que chama verdade extática. Um conceito que desenvolve para se separar do chamado “cinema verité”, movimento que acreditava na reportagem dos factos como manifestação da verdade. “Os factos criam normas, a verdade ilumina, é num estrato mais profundo que reside a verdade no cinema, aí reside a sua poética, a verdade extática. É misteriosa e elusiva, e pode ser alcançada apenas através da fabricação, da imaginação, da criação de um estilo.” escreveu na declaração de Minnesota em 1999. A verdade de que fala tem de ser inventada. Construída, agregando mentiras até se alcançar algo que fica para além da realidade. Algo que tão facilmente se confunde com a vida, a imagem em movimento, requer um trabalho de poeta para se desvincular da pobreza de uma visão decadente do mundo que nos rodeia.

“Cada um por si e Deus contra Todos” foi uma frase que Herzog ”roubou” (a expressão é dele), do filme Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade. Quando a ouviu, disse que lhe parou o coração, anotou-a num caderno, tinha a certeza que alguma coisa nasceria daí. A primeira foi o filme que falei no início, a segunda, um livro que acaba de ser editado entre nós. Apesar de se intitular uma autobiografia, devemos partir dos mesmos pressupostos que falámos sobre a sua posição em relação à verdade. Uma biografia não é um relato de factos, quem é que consegue reconstruir um passado? O que surge dos esquecimentos, a forma como contornamos os seus abismos, vai ser o modo inesperado que revela a novidade do que atravessamos. Herzog é um fabuloso contador de histórias, não eram precisos os livros para o sabermos, a escrita faz parte do seu percurso de cineasta desde o começo. As longas caminhadas, ou, como ele lhe chama, viajar a pé, eram sempre acompanhadas de diários. Viajar a pé não é fazer uma caminhada, mas atravessar longas distâncias sem qualquer provisão que o defenda do que acontece. A mais famosa, cujo o diário resultou no livro “of walking on ice”, deveu-se ao adoecimento da sua amiga Lotte Eisner, crítica de cinema alemã que se refugiou em Paris para escapar ao nazismo. Quando um amigo lhe telefonou a dizer que Lotte estava gravemente doente e que provavelmente iria morrer, partiu a pé de Munique até Paris, dormindo em palheiros ou em casas que arrombava para passar a noite. Confiante que esta caminhada de quase mil quilómetros manteria a amiga em vida. Assim aconteceu, de tal modo que, passados anos, Lotte lhe telefonou a pedir que retirasse o feitiço que lhe colocara, o seu corpo tornara-se uma prisão insuportável, privada dos seus maiores prazeres, não conseguia ler, nem andar. Herzog disse que lhe retirava a proteção, passados oito dias morreu.

“Cada um por si e Deus contra todos” é um livro repleto de histórias que desafiam a nossa credulidade, que nos põem em contacto com um mundo onde a presença da morte, da travessia do perigo, está sempre em relação com um plano que ultrapassa o que tomamos por real. Num conflito permanente, um mundo em tensão com forças que nos põem em causa, um abismo que se intromete no horizonte onde julgamos estar de acordo com o que nos rodeia. Werner não procura nunca uma reconciliação com o mundo. Procura encontrar algo da verdade da situação em que se encontra, e isso só acontece se for ao encontro do seu destino. Este, ao contrário da teologia de café que acredita ser algo que acontece sem que façamos nada para isso, exige que nos demos a conhecer, que o procuremos, que iniciemos um caminho, sem nos desviarmos da floresta onde estamos perdidos como crianças, na formulação de Kafka. Se não tomarmos a iniciativa, o destino ficará nas nossas costas, como um Urso à espera de um tropeço. O caos que nos rodeia desloca-se perpetuamente, é preciso andar, pôr-se em movimento para que o mundo se mostre. Werner di-lo de um modo mais preciso: “o mundo revela-se àqueles que viajam a pé.” Andar é ler, recolher o que está espalhado. O verbo “lego” em latim, elucida-nos da pluralidade do acto de leitura, os seus significados estendem-se por: juntar, recolher, perseguir, eleger, tomar, ler, podendo mesmo querer dizer roubar. Herzog tinha dezanove anos quando roubou uma câmara de filmar para fazer o seu primeiro filme. Quem persegue um fio que descobriu no labirinto não se deixa parar por uma trivialidade.

“Cada um por si e Deus contra todos” é o testemunho de uma vida que correu todos os riscos para fazer o que era capaz de fazer. Aos dezasseis anos teve uma revelação enquanto pescava lulas em Creta. Debaixo das estrelas, sobre o abismo do mar: “encontrei-me subitamente num espanto incompreensível. Tinha a certeza que sabia tudo, aqui e agora. O meu destino fora-me revelado. E sabia também que depois de uma noite assim não seria possível envelhecer.” Quando questionado sobre o que esta afirmação queria dizer, Herzog, respondeu que talvez tivesse tomado conhecimento de que era um poeta, e devido a isso a sua vida ia ser difícil, teria de fazer tudo para a suportar. Poeta é algo que nunca traduz por artista, reconhece-se melhor como um soldado. Imbuído de um sentido de dever, de ter de suportar o contacto com o real até articular alguma coisa que esperava ser articulada.

No entanto, é um livro que nos entusiasma e exalta devido ao que narra, um livro cheio de coisas extraordinárias porque relata a vida de um ser que atravessou coisas extraordinárias. As suas histórias estão subjugadas ao homem, ao cineasta, ao que teve de viver para realizar os seus filmes. É no cinema que o reconheço como poeta, na intrincada e densa construção cinematográfica que vejo realizar-se o destino do adolescente que em Creta sobre uma pequena embarcação descobriu que não iria envelhecer. Digo isto, porque, nas entrevistas que deu ultimamente, repete que os seus filmes irão desaparecer e será pelos livros que será recordado, devido ao seu estilo literário, à sua inovação. Chegando mesmo a dizer ter feito algo inédito em literatura, que foi terminar o livro a meio de uma frase. Basta espreitar a poética incandescente do livro que repetidamente aconselha “O Peregrino” de J. A. Baker, para compreendermos que algo não está bem no julgamento que faz sobre o seu trabalho. O seu livro tem um estilo simples e comum de quem está mais preocupado com a história do que com a forma, o que é suficiente para as experiências que nos dá a conhecer. Calculo que esteja saturado de imagens, que, depois de um trabalho gigantesco como cineasta, veja na palavra uma espécie de escapatória à desmesura do mundo contemporâneo, mas recordemos que o seu trabalho cinematográfico movia-se na procura de imagens novas, imagens que dessem a ver algo para lá da realidade falsificada que nos rodeia. No entanto, a sua paixão ilude-o, e mostra-nos que procurar reconhecer o valor de um trabalho na opinião daquele que o cria é problemático, principalmente porque a mutação é algo que está no cerne daqueles que procuram recriar-se continuamente. Esta capacidade de se confrontar com a desmesura, com a necessidade de se refazer, de procurar articular mitos novos que lhe mostrem o homem naquilo que tem de mais profundo, é o que fez dele o cineasta que é.

Max Weber diz que apenas alguns corajosos conseguem aceitar que o mundo não tem significado inerente e que, para as almas timoratas que se retraem perante esta verdade, “as portas das velhas igrejas estão abertas de forma ampla e compassiva”. No entanto, quando Herzog no documentário “O fardo dos sonhos”, de Les Blank, que acompanha as filmagens de Fitzcarraldo, nos diz: “Olhando bem para o que nos rodeia, há uma espécie de harmonia. É a harmonia do esmagador e colectivo assassínio. E nós, em comparação com a vileza, a baixeza e a obscenidade articuladas de toda esta selva, nós, em comparação com essa enorme articulação, apenas soamos e parecemos frases mal pronunciadas e meio acabadas de um estúpido romance suburbano, um romance barato. E temos de nos tornar humildes perante esta miséria avassaladora e esta fornicação avassaladora, este crescimento avassalador e esta falta de ordem arrebatadora. Até as estrelas aqui em cima no céu parecem uma confusão. Não há harmonia no universo. Temos de nos familiarizar com esta ideia de que não existe harmonia tal como a concebemos. Mas quando digo isto, estou cheio de admiração pela selva. Não que eu a odeie, eu amo-a, amo-a muito, mas amo-a contra o meu bom senso.”

Esta citação é quase sempre amputada, deixando aparecer apenas a obscenidade assassina da natureza, mas, tomada por inteiro, começando no horror da morte, passando pelo reconhecimento da imperfeição dos homens, até à confissão de um amor e admiração contra o seu melhor julgamento, este dizer não tem nada de semelhante à ausência de significado do mundo que Weber anuncia, que é apenas um vazio que procura libertar o mundo para a investigação científica. Talvez apenas um grego da época clássica fosse capaz de dizer algo similar. É na visão trágica da Grécia de Sófocles que encontro mais ressonâncias com a posição de Herzog. Steiner escreve no seu livro “A morte da tragédia”: “A tragédia diz-nos que as esferas da razão, ordem e justiça são terrivelmente limitadas e que nenhum progresso na ciência ou recursos técnicos irão alargar a sua relevância. Fora e dentro do homem é o “outro”, a “alteridade” do mundo. Chamem-lhe o que quiserem: um deus malévolo escondido, destino cego, as solicitações do inferno, ou a fúria bruta do nosso sangue animal. Espera por nós uma emboscada na encruzilhada, troça de nós e destrói-nos. Nalgumas raras instâncias, conduz-nos depois da destruição a algum repouso incompreensível.”

No mesmo documentário Herzog diz-nos que os seus filmes nascem da dor e não do prazer, que essa é a sua fonte. Há na Grécia um deus que se chama Pentheus, o que vem do sofrimento e o supera, mais conhecido por Dionísio, aquele em honra do qual as tragédias eram representadas. Nietzsche, que Herzog lia com atenção, diz que a única garantia para que o que pertence ao humano não desapareça é que a disposição trágica não morra. A forma como Herzog procura os limites do que tem que fazer, o seu sentido de dever, a ética que, ao contrário da pequena moral, tem muitas vezes de se opor à lei, a vontade de articular a verdade que lhe cabe dentro de uma maldição inescapável, mesmo quando isso implica ter de se confrontar com forças que o vão destruir, tudo isso o mostra como um espírito trágico. Apesar dos seus filmes não terem a forma da tragédia clássica, o seu confronto com a loucura e a desmesura, acabam sempre por nos pôr em contacto com os problemas que esta levanta. A questão Nietzschiana, “O que é que Dionísio pode realmente significar para nós?” Parece ser colocada por Herzog nos seus filmes.

Nos seus filmes o herói debate-se muitas vezes com objectivos inatingíveis. Como o herói trágico, prisioneiro num fluxo de forças que o ultrapassam, hesita entre os caminhos, procura os seus limites. O herói que escolhe, que descobre, nas consequências da sua escolha, ter tomado o caminho oposto à escolha que julgava ter feito. Os seus personagens são seres desencontrados do optimismo histórico que acelerou a modernidade para o inferno, alienados dentro desse inferno, sem conseguirem reconhecer um limite. Nenhuma outra época teve tantos preceitos relacionados com os limites como a Grécia clássica. A questão antropológica, no sentido de questionar as origens do homem, de perscrutar as suas acções, está sempre presente no cinema de Herzog, como na tragédia, o homem torna-se uma interrogação. O sujeito trágico descobre-se naquilo ao qual se confronta, é depois de agir que se abre o mundo que estava para lá da realidade que pressupunha.

O mito é a forma para lá da razão que torna a experiência monstruosa do desconhecido perceptível, estética. A relação da beleza com o horror começa neste ultrapassar as fronteiras do racional, de nos dar a ver formas para lá dos limites do intelecto. Quanto mais amplo for o campo que se procura expor, mais vivo, mais criativo, mais contraditório, mais alheio aos meios calculistas da razão. Se a actividade mais íntima do homem não for sua, mas de uma “alteridade” que se alia a ele na criação, então, Dionísio é, como Nietzsche lhe chamava, o génio do coração, não só o que embriaga, mas o que acalma as águas para que se tornem como um espelho do desconhecido. A forma, a beleza, é o que nos permite fazer face ao que não tem sentido. Fazer do aterrador uma experiência, conseguir dar-lhe uma forma, torná-lo estético, aparente, é um dos sentidos possíveis da frase de Nietzsche “Só como fenómeno estético, a existência e o mundo aparecem eternamente justificados”.

Em “lições da escuridão” Herzog viajou para o Kuwait para filmar os campos de petróleo incendiados pelas tropas iraquianas em retirada durante os últimos dias da Guerra do Golfo. No entanto, o que surge é menos um documentário sobre o Kuwait pós-guerra do que uma visão apocalíptica do inferno na terra – ou, como Herzog lhe chamou, “um requiem para um planeta inabitável”. Na sua estreia em Berlim foi criticado ferozmente por esteticizar o horror e por não falar do contexto político. Este é o testemunho que ele dá sobre essa mostra: “Não há um único fotograma de Lições da escuridão em que se possa reconhecer o nosso planeta; por isso, o filme é rotulado de “ficção científica”, como se só pudesse ter sido rodado numa galáxia distante, hostil à vida. Na sua estreia no Festival de Berlim, o filme foi alvo de uma orgia de ódio. Dos gritos furiosos do público só podia depreender a “estetização do horror”. E quando me vi ameaçado e cuspido no pódio, tive apenas uma única e banal resposta. “Seus cretinos”, disse eu, ‘foi o que Dante fez no seu Inferno, foi o que Goya fez, e Hieronymus Bosch também.”