Entre 7% e 14% das mulheres em Portugal são vítimas de violência financeira. Sem acesso ao próprio dinheiro, muitas ficam impossibilitadas de sair de relações abusivas. As instituições financeiras têm um papel crucial na prevenção e combate deste tipo de violência, mas estudo alerta para “falta de sensibilização”.
Silenciosa e muitas vezes invisível, a violência financeira tem emergido como uma das formas mais insidiosas de abuso dentro das relações conjugais. Este tipo de violência, que afeta especialmente as mulheres, acontece sempre que uma pessoa exerce controlo financeiro sobre outra, restringindo-lhe o acesso a recursos financeiros, prejudicando a sua carreira profissional, contraindo dívidas em seu nome ou impedindo que tenha autonomia sobre o seu próprio dinheiro. O abuso pode persistir mesmo após a separação do casal, por meio da retenção de pensões de alimentos ou da manipulação de bens partilhados.
Por ser uma forma de violência não física, nem sempre é reconhecida enquanto tal, tornando difícil a sua identificação. Em Portugal, embora não haja dados oficiais e estáveis sobre o assunto, estima-se que entre 7% e 14% das mulheres sejam alvo de violência financeira, segundo um estudo do BNP Paribas.
Muitas vezes associada a outros tipos de abuso, a violência financeira é quase sempre um sintoma de um problema ainda mais grave. Em França, “99% das mulheres que experienciam violência financeira também são vítimas de outras formas de violência doméstica”, revela o mesmo estudo.
Outra sondagem feita pelo Instituto Francês de Opinião Pública conclui que “uma mulher tem duas vezes mais probabilidades de ser vítima de violência económica doméstica se ganhar muito menos do que o seu parceiro” e que “uma em cada quatro mulheres é vítima de violência económica pelo atual parceiro”.
FALTA DE PROTEÇÃO LEGAL Portugal deu um passo significativo no combate à violência financeira ao criminalizá-la explicitamente em 2021. A legislação nacional reconhece essa prática como uma forma de violência doméstica, permitindo que as vítimas tenham acesso a medidas ‘protetivas’ e a assistência jurídica. Apesar deste avanço, especialistas alertam que a aplicação da lei ainda enfrenta desafios, como a falta de sensibilização de autoridades e do sistema bancário.
A nível global, o cenário é ainda mais cinzento: estima-se que 1,4 mil milhões de mulheres vivem em países que não reconhecem a violência financeira nos seus sistemas legais ou não oferecem proteção jurídica às vítimas destas formas de violência.
Espanha é um dos países onde a violência financeira não tem uma proteção legal consagrada. Ainda assim, há pelo menos duas sentenças judiciais que ajudaram a abrir precedentes para proteção de vítimas em casos de abuso financeiro. Em 2021, uma decisão da juíza Lucía Avilés apelou à integração da violência financeira nas leis de violência de género, após decidir sobre um caso em que uma mãe, também vítima de violência doméstica, sofreu controlo financeiro através da pensão de alimentos não paga. No mesmo sentido, o juiz Vicente Magro veio classificar o não-pagamento de pensão de alimentos como violência financeiro e coação baseada no género, reforçando a necessidade de reconhecimento legal do abuso financeiro.
O papel das instituições financeiras Para prevenir e combater potenciais casos de violência financeira, os bancos e outras instituições financeiras têm um papel crucial. Krystel La, representante da Federação Nacional Solidariedade Mulheres (FNSF) em França, sublinha que “há uma falta de consciencialização entre as mulheres e os profissionais sobre estas questões, o que leva a dificuldades na sua deteção, tanto pelas próprias vítimas como pelos atores envolvidos, como bancos e notários”.
Uma das medidas sugeridas pelo estudo do BNP é exigir aos bancos e seguradoras que informem as mulheres sobre os seus direitos ao abrirem contas conjuntas ou contraírem empréstimos com um parceiro (especialmente se tiverem baixos rendimentos).
A nível europeu, há já exemplos de boas práticas que podem ser replicadas. O Unicredit, um dos principais bancos da Itália, desenvolveu programas para apoiar mulheres vítimas de violência, oferecendo acesso facilitado a crédito e aconselhamento específico para ajudá-las a alcançar a independência económica.
De acordo com a advogada italiana Mariangela Zita, muitas vítimas permanecem em relações abusivas devido à dependência financeira: “Sair de uma relação abusiva envolve dificuldades económicas, sociais e psicológicas que exigem apoio integrado e contínuo”.
“Esta forma de abuso é uma violação dos direitos humanos porque priva as pessoas da sua autonomia e da capacidade de construir uma vida independente”, acrescenta.
A Associação Bancária Italiana também assinou um memorando de entendimento com o Ministério da Família, Natalidade e Igualdade de Oportunidades para “reforçar as iniciativas de prevenção, formação e informação sobre violência financeira. As medidas incluem uma suspensão temporária da hipoteca para mulheres vítimas de violência e programas de educação financeira. A Associação publicou recentemente um guia sobre os sinais de abuso económico e as várias ferramentas disponíveis para ajudar mulheres vítimas deste tipo de violência.
Em Portugal, uma das medidas já em vigor é a a concessão automática de subsídio de desemprego para vítimas de violência doméstica, que proporciona alguma estabilidade financeira para quem precisa recomeçar a vida longe do agressor. Mas não chega. A advogada Leonor Caldeira sugere, por exemplo, que as instituições financeiras introduzam “contas de acesso restrito para mulheres e sistemas de monitorização de atividades financeiras incomuns”, como forma de prevenir abusos financeiros dentro dos relacionamentos.
Medidas para Combater a Violência financeira Combater a violência financeira exige soluções complexas. O estudo enuncia diversas soluções que poderiam ser implementadas para fortalecer o combate à violência financeira, entre elas: contas bancárias seguras – Implementação de contas de acesso restrito para impedir que abusadores esvaziem contas conjuntas; Monitorização financeira – Sistemas para identificar transações suspeitas que possam indicar abuso financeiro; Acesso facilitado a crédito – Programas de microcrédito para ajudar vítimas a reconstruírem a sua independência económica; Sensibilização e formação – Capacitação de profissionais do setor bancário, jurídico e social para identificar padrões de abuso financeiro; Apoio jurídico gratuito – Facilitar o acesso a advogados especializados em violência financeira; Campanhas públicas – Aumentar a consciência sobre a violência financeira e os recursos disponíveis para vítimas.