Foi Peter Bradshaw, numa crónica assinada no The Guardian, quem chegou mais cedo ao melhor e mais justo dos títulos – «Gene Hackman: a estrela de todos as cenas em que apareceu». O obituário, enquanto género competitivo, obriga apesar de tudo a reconhecer quando alguém arranca o escalpe de um cangalheiro, fazendo esquecer que é um corpo sem vida o que é levado daqui, pondo a tónica nos momentos em que o espírito que dele se desvinculou nos arrebatou, passando a fazer parte desse elenco essencial que tudo nos diz sobre o que significa comportar-se como um homem. Bradshaw assinalava como, entre The Conversation a The Royal Tenenbaums, Hackman aproveitou a nova vaga americana para se tornar o padrão de ouro da representação de personagens com verdadeira densidade e nervo.
O ator de 95 anos foi encontrado morto em sua casa, em Santa Fe, após um alerta de um vizinho. A mulher, a pianista clássica Betsy Arakawa, de 64 anos, e o cão do casal também jaziam sem vida. A filha de Gene Hackman suspeita de intoxicação por monóxido de carbono, mas as autoridades estão a investigar a causa de morte.
Uma estrela fora dos moldes
Aquilo que nos impedia de tirar os olhos dele era a sua extraordinária capacidade de transmitir em simultâneo uma atitude paternal e ameaçadora, nuns momentos encorajador, noutros um fabuloso antagonista. Mais do que falar em magnetismo, o que ele tinha era essa estranha persuasão e aquele brilho diabólico que muitas vezes nos leva a engraçarmos com os sacripantes, os seres melífluos ou desprezíveis. Este ator, que nunca coube nos moldes de uma estrela de cinema de Hollywood, e que mesmo assim se tornou uma, como vinca o The New York Times, soube desmanchar a fábula e trazer fibra ao tipo de personagens que passam por gente comum, infundindo sempre de uma subtileza enganadora os seus papéis, o que lhe permitia baralhar as expectativas, e trazer uma rara profundidade a alguns dos filmes mais notáveis dos anos 70 e 80.
Hackman, de 95 anos, a mulher, Betsy Arakawa, de 63, e o cão, foram encontrados mortos em casa, em Santa Fé, no Novo México, na tarde de quarta-feira depois de um telefonema de um vizinho que parecia preocupado com alguma coisa, e assim avisou a polícia. Entretanto, esta tentava determinar as causas das mortes, tendo indicado que não parece haver indícios de crime.
Carreira premiada
Numa carreira que se estendeu por quatro décadas, e que, mesmo assim, não deixou de pareceu curta, graças a ter decidido reformar-se a tempo de evitar rebaixar-se em papéis ou filmes inconsequentes, foi nomeado para cinco Óscares da Academia e ganhou dois, tendo deixado muitíssimas personagens que dão a sensação de ter seguido cada uma o seu rumo, sendo de tal modo verosímeis que chegavam a ser palpáveis, e os seus filmes foram vistos e continuam a ser recordados por milhões de pessoas, impressionando também pela diversidade de registos. Além dos dois já referidos, merecem ainda destaque Bonnie & Clyde, Os Incorruptíveis contra a Droga I e II, The Poseidon Adventure, O Vigilante, Mississípi em Chamas, Imperdoável, O Super-Homem e Hoosiers. E se tantas vezes ele foi descrito como esse tipo que nos transmite algo de familiar, uma presença que dificilmente nos faria virar a cabeça na rua, se ele mesmo não negava que tinha uma imagem de homem comum, e que isso não lhe importava, parecia reconhecer esse triunfo do diabo, que não se limitou a convencer-nos de que não existia, mas preferiu sempre andar no meio de nós sem gerar o menor alvoroço. Certa vez, como lembra o The Times, brincou notando que já nascera assim, com aquele típico ar de mineiro… E ninguém se lembrava dele alguma vez ter sido jovem. Parecia ter nascido já na meia-idade: ligeiramente calvo, com feições fortes mas não particularmente notáveis. Nem banal nem atraente, era bastante alto, mas não o suficiente para que isso o impedisse de se fundir numa multidão. Mas depois vemos tudo o que ele fez com isso, como foi presidiário, ou um xerife, um membro do KKK, um operário siderúrgico, um espião, um ministro, um herói de guerra, um viúvo enlutado, um comandante de submarino, um treinador de basquetebol, o presidente… Na verdade, o mais difícil parecia ser encontrar um papel que ele não soubesse como fazer seu.
Ficava tão à-vontade como ator principal ou secundário, como assinalou Vasco Câmara, uma vez que, como secundário, conseguiu ser tão decisivo como principal, e não é que roubasse a cena, simplesmente tornava-se muito facilmente o eixo de todas aquelas em que comparecia, não propriamente pela veemência ou pelo carisma, mas simplesmente por dominar de forma tão natural o tempo, por tudo o que ele fazia ser feito a partir desse grau de confiança absoluta, sem forçar, sem complicar desnecessariamente as coisas. Era simplesmente um consumado profissional.
Foi um pouco de tudo
Aqueles tipos de meia-idade que ele encarnava não podiam deixar de ser ‘credíveis’, como se Hackman tivesse registado o valor padrão, e pudesse a partir daí fazer as investidas mais drásticas sem que alguma vez estas parecessem pôr em risco a composição das suas personagens. «Porque eles andam por aí há tempo suficiente para terem experimentado o fracasso e a perda, mas não há tanto tempo que se tenham acomodado, e ficado indiferentes, Hackman podia interpretá-los com uma mistura tão distintiva de luz e sombra», escreveu Jeremy McCarter num balanço da carreira de Hackman na Newsweek em 2010, seis anos após o lançamento daquele que acabou por ser o seu último filme, a comédia Welcome to Mooseport. «Enquanto alguns atores se auto-congratulam por se terem aventurado nessas zonas cinzentas da moral», prossegue McCarter, «Hackman chamou-lhe casa durante tanto tempo que deixámos de reparar. Nas suas atuações, tal como na vida, os bons nem sempre são bons e os vilões têm charme».
Tendo nascido em San Bernardino, na Califórnia, em 1930, filho de um jornalista do jornal local e de uma empregada de restaurante, Hackman levava de tal modo a sério os seus papéis que não tinha paciência para depois se pôr com análises, armado em psicanalista das personagens que havia interpretado, como parece ser hoje um dos passatempos preferidos dos atores nas campanhas promocionais aos filmes. Apareceu e foi um pouco de tudo, sem saber explicar nem desfazer a sua própria vida naquele tintim por tintim. Por uns tempos foi marine, depois vendedor de sapatos, também foi desenhador e jornalista como o pai. De resto, era ao pai que atribuía a razão porque acabou por se virar para a representação, tendo-lhe ficado gravada o seu aceno, um gesto tão aflitivamente displicente, no momento em que, enquanto Gene brincava na rua, aos 13 anos, este passou por ele de carro, abandonando a família.