USAID: uma instituição imprescindível ou um despesismo sem sentido?

USAID: uma instituição imprescindível ou um despesismo sem sentido?


Criada em 1961 por John F. Kennedy, a USAID foi um mecanismo que salvou milhões de vidas em países desfavorecidos. Mas, com o passar do tempo, empenhou dinheiro americano em projetos que nada têm que ver com o objetivo primordial da agência


A eleição de Donald Trump em novembro trouxe mudanças radicais tanto para a política nacional quanto internacional. Uma delas foi a criação de uma agência à margem do Governo federal, liderada por Elon Musk, com o objetivo de detetar e, consequentemente, cortar “gorduras” do Estado. O DOGE, Department of Government Efficiency (Departamento de Eficiência Governamental, em português), começou a todo o gás, bem como a própria Administração, e uma das primeiras vítimas foi a USAID – United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, em português).

As origens
«Não há como fugir às nossas obrigações», dizia John F. Kennedy em 1961, quando ordenou, através de uma ordem executiva, a criação da USAID, «as nossas obrigações morais como líder sensato e bom vizinho na comunidade interdependente das nações livres – as nossas obrigações económicas como o povo mais rico num mundo maioritariamente pobre, como uma nação que já não depende dos empréstimos do estrangeiro que outrora nos ajudaram a desenvolver a nossa própria economia – e as nossas obrigações políticas como o maior adversário dos adversários da liberdade». A alimentação e a nutrição, o planeamento populacional, a saúde, a educação e o desenvolvimento dos recursos humanos são os objetivos primordiais de uma instituição que utilizava o dinheiro dos contribuintes americanos em nome de uma missão civilizadora, um compromisso moralmente superior.
«Ao longo das últimas seis décadas, o povo americano, através da USAID, tem vindo a estabelecer parcerias com pessoas de todo o mundo para melhorar a saúde, a educação e a prosperidade económica», pode ler-se no arquivo da organização. «A USAID tem uma longa história e reputação de parceria com países de todo o mundo para implementar esforços de desenvolvimento a longo prazo e trabalhar em conjunto com indivíduos, comunidades e países para melhorar a vida quotidiana».

Descobertas controversas
Porém, com a entrada em ação do DOGE, foram descobertos vários apoios financeiros que suscitam duvidas quanto à sua contribuição para os interesses americanos no estrangeiro, ou até mesmo dos países que as recebem. A nova porta-voz da presidência americana, Karoline Leavitt, mostrou aos jornalistas algumas das iniciativas promovidas pela USAID, destacando principalmente quatro: «1,5 milhões de dólares para promover DEI [programas de diversidade, equidade e inclusão] nos locais de trabalho da Sérvia; 70 mil dólares para a produção de um musical DEI na Irlanda; 47 mil dólares para uma ópera transgénero na Colômbia; 32 mil dólares para uma banda desenhada transgénero no Peru». «Quanto a vocês, não sei», continuou Leavitt, «mas como contribuinte americano não quero que o meu dinheiro vá para esta porcaria, e sei que o povo americano também não. É exatamente isso que Elon Musk foi incumbido pelo Presidente Trump de fazer. Para acabar com a fraude, o desperdício e o abuso do nosso governo federal».
Em direto na estação televisiva americana MSNBC, o representante republicano Mike Lawyer, de Nova Iorque e membro do subcomité para o Médio Oriente e Norte de África, garantiu que o apoio americano continuará, com foi dito também pelo próprio Secretário de Estado Marco Rubio, em «programas que salvam vidas, como o PEPFAR [Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o alívio da SIDA], que, obviamente, é fundamental para o continente africano, salvando dezenas de milhões de vidas. Provavelmente uma das melhores realizações de soft power da USAID. Mas depois olhamos para algumas das despesas da USAID; descobri mais de um milhão de dólares para um artista de rap em Gaza, que produzia canções anti Israel e antissemitas. Será essa a melhor utilização dos dólares dos contribuintes americanos? Eu arriscaria que não».
Também Portugal foi mencionado pelo Secretário de Estado americano numa audição sobre os gastos do USAID: «Estou curioso em saber», disse Rubio, «como é que os nossos interesses foram reforçados ao promover um festival de cinema em Portugal que deu destaque a Minyan, um filme sobre um rapaz de 17 anos que tem relações sexuais com um bartender adulto e o Saint-Narcisse, um filme sobre gémeos incestuosos (…) Como é que a promoção de um festival de cinema de drag queen em Portugal promoveu os nossos interesses e quanto dinheiro dos contribuintes foi gasto?». «Não sei», foi a resposta dada por uma das responsáveis que estava sob audição .

As críticas
«Em primeiro lugar», escreveu Roger Boyes, o editor diplomático do jornal inglês The Times, «a redução radical da ajuda externa foi uma dádiva para a China, numa altura em que os EUA querem contestar mais ativamente a expansão acelerada do poder de Pequim em todo o mundo», garantindo que, «se o objetivo é poupar dinheiro aos contribuintes americanos», «os cortes orçamentais da USAID não serão um grande consolo». «A ajuda corresponde a cerca de 1% do orçamento federal, cerca de 0,25% do PIB. Se um objetivo estratégico é apresentar os EUA como um ator global mais generoso do que a China ou a Rússia, esta despesa relativamente modesta cumpriu a sua missão de uma forma muito eficaz em termos de custos».
Para além das críticas, muitas delas alinhadas com a de Boyes, Elon Musk foi acusado de estar a liderar uma «apropriação hostil» do governo. Numa conferência de imprensa na Sala Oval, na qual se fez acompanhar do seu filho, Musk defendeu-se dizendo que «O povo votou numa grande reforma do Governo e é isso que o povo vai ter. É disso que se trata a democracia».
Posto isto, o desmantelamento da agência, que passará a integrar alguns dos seus programas no Departamento de Estado, tem causado alguma celeuma um pouco por toda a parte, porque independentemente de se considerarem alguns gastos supérfluos, a USAID tem funcionado como uma das principais ferramentas do soft power americano ao longo das últimas décadas. Assim, a administração Trump 2.0 promete não deixar cair esse poder enquanto se foca no corte daquilo que certamente considera um despesismo desmedido.