Layla Martínez. A literatura como vingança

Layla Martínez. A literatura como vingança


Caruncho é o primeiro romance da espanhola Layla Martínez (1987), sendo pré-candidato ao National Book Award na categoria de literatura traduzida. Antes de se estrear como romancista, a autora só havia publicado um par de ensaios com foco em ciência política, área onde é licenciada.


Composto por 10 capítulos, Caruncho é uma história no feminino, narrada a duas vozes por uma neta e uma avó. Duas vozes bravas e inquietas sem nome e com ecos de outras mulheres pelo meio. Esta avó e neta vivem juntas na mesma casa em Cuenca. Uma casa onde vivem mais tempo os mortos do que os vivos, onde a fúria e o mau sangue tomam conta das paredes. Furiosa com as duas, corroída por um caruncho que não se deixa desentranhar, a casa está carcomida por sombras malditas e impiedosas que lhes fazem cair os dentes e o cabelo e secar as entranhas, que as aprisiona e assusta. Mais parece uma armadilha, precipitando-se a todo o momento sobre elas. Range por todos os lados, cheia de ruídos estranhos e indecifráveis. Tanto nuns momentos mergulha num silêncio sepulcral, como noutros se precipita em sons ensurdecedores, passos afoitos ou uivos estrondosos.

Avó e neta sabem ver as pessoas por dentro e reconhecer a mentira. A casa também. A mãe da neta foi levada de casa, mas, no fundo, nunca chegou a partir, porque nada realmente arreda pé dali. Estão lá arraigados todos os medos, vozes, sombras. Todos os gorjeios diabólicos. E são talvez estes gorjeios, estes brados terríveis que a mantêm de pé, que lhe dão vida.

Layla Martínez desenhou esta casa como se de um personagem de carne e osso se tratasse. No posfácio do livro, ‘A Casa Tomada’, Guilherme Pires considera que a casa apresenta uma dualidade muito peculiar. Ora protege as narradoras, ora as apavora. “Outra das entidades fundamentais da novela é a casa em que as protagonistas vivem, num piscar de olho venenoso e intencional à literatura de horror dos séculos XVIII e XIX. Venenoso porque a casa aparenta ter os elementos do terror clássico, porém encarna a superstição e o folclore sempiternos da Espanha profunda e a névoa sombria da assombração, assumindo uma duplicidade que desfaz as convenções dessa literatura de outrora: a casa pode ser vista como aliada e também como a mais violenta opressora; impede estas mulheres de a abandonarem ou obriga-as a um regresso eterno, exige que ali fiquem para sempre, mas oferece-lhes o poder místico, embora concreto, da bruxaria, a bruxaria que encara a bruxa como mulher suprema, aquela que, calçando sapatos lustrosos e brilhantes, dobra e quebra as pernas do patriarcado e obriga o homem à vénia, ao sofrimento, ao desaparecimento.”

A casa foi presente de casamento do pai para a mãe da neta. Um presente que pouco depois de estar casada, como veio a dar-se conta, estava envenenado. Foi o avô da neta, Don Adolfo que a construiu à conta do tráfico de escravos em Cuba, mas quando a guerra começou, este mandou as filhas e a mulher para Espanha. Além desse antepassado, também o pai da miúda era um homem mau e avarento, um proxeneta. Explorava uma série de mulheres na aldeia. Os dois homens acabariam por morrer na casa construída graças às desgraças de tantos outros. Os dois morrem às mãos das próprias mulheres dentro da própria casa. No fundo, morreram à fome e à sede na ratoeira que montaram.

“O meu pai não lhe oferecera aquela casa, condenara-a a viver nela. Tinha sido construída sobre os corpos daquelas mulheres e mantinha-se de pé sobre o da minha mãe. Sobre a sua dor e o seu medo. Não era dádiva, era maldição. Só que o meu pai não sabia que iria ficar trancado na prisão que estava a construir. Quando a minha mãe percebeu que nunca poderia sair daquele espaço, deixou de pedir aos santos e começou a falar com as sombras. Sempre que as ouvia sussurrar debaixo da cama ou as sentia espreitar atrás da porta, cantava-lhes como se fossem crianças pequenas.”

A casa fica num descampado, um baldio deserto e agreste onde ninguém costuma passar. Não há gente jovem na aldeia e o único animal retratado é um burro. A autora faz uma forte aproximação deste bicho à condição feminina. “Esse animal aguenta tudo.” Aliás, tudo é agreste nesta saga familiar, desde o ambiente rural ao tom da narrativa, à relação entre as personagens principais, passando pela relação delas com a casa e a sociedade ou com os entes familiares que já morreram. A própria pontuação é agreste e irregular. Muitas vezes o leitor depara-se com a escassez de vírgulas, sendo pertinente também sublinhar o descarrilamento no que toca ao uso de tempos verbais, ou seja, assistimos constantemente ao presente e ao pretérito na mesma frase, assim como à mescla do discurso direto com o indireto.

Esta inconstância na pontuação parece espelhar a própria desorganização emocional das narradoras. Estamos perante mulheres emocionalmente desequilibradas, mas, também, uma sociedade espanhola inóspita, retorcida e fechada ainda na sombra da ditadura franquista. Uma sociedade marcada por profundas e dilacerantes desigualdades. Os Jarabos representam a facção rica da sociedade. Don Adolfo sempre se recusou a trabalhar para eles, mas esta neta vai acabar por lhes oferecer os seus serviços como empregada. A neta e Carmen, outra empregada, odeiam o filho mais velho da família Jarabo, que estuda direito em Madrid, mas vai ser de uma criança pequena desta família poderosa que ela vai ter de tomar conta. Acontece que ela não é propriamente uma criatura bem-mandada e não vai cumprir de com as suas obrigações.

A avó não quer de maneira nenhuma que a neta trabalhe para eles. Quando reza o terço, implora que aos ricos se lhes estrague as colheitas. Que a cevada não tenha grão. Suplica aos céus que as vinhas dos ricos não deem uvas, que os pomares não frutifiquem. “Não lhes dês descanso, minha Virgenzinha, porque nós não temos.”

Avó e neta decidem fazer um bruxedo, um atado contra a dona da casa dos Jarabos, mãe da dita criança de quem a neta se tinha de ocupar. Foi a única coisa que algum dia fizeram juntas. Como o leitor pode constatar, é sempre a vingança e a raiva o único laço que une estas personagens, porque, de resto, o que elas sentem umas pelas outras é puro ressentimento, rancor e mesquinhez. “Nesta família cuspimos o ódio umas às outras.”

Graças a esse ódio, tudo parece funcionar organicamente, em choque. Por exemplo, os Jarabos odiavam a neta da velha, mas ao mesmo tempo gostavam de exibi-la aos convidados. A criança de que ela se tinha de ocupar era embirrenta, insuportável e mal-educada, e a neta não a conseguia suportar. Esta criança tinha como que concentrados todos os genes que a avó e a neta abominavam. Por isso, quando a neta fez com que a criança desapareça sem deixar rasto, não mostra um pingo de remorsos. De igual modo, a bisavó não perdoava a avó porque queria que a Santa lhe aparecesse primeiro e sempre a ela e não à filha. A avó nunca aprendeu a costurar por rancor à mãe que era costureira. Por sua vez a neta é a única que parece não odiar tanto a mãe. Não percebe bem como é que ela terá desparecido. Não sabe quem a levou. Mas de alguma maneira, dá-nos a perceber que também ela se acha melhor do que a progenitora. É como se nascessem já envenenadas umas contra as outras.

Numa entrevista ao El Diario, a autora, que acredita nos dias de hoje continuar a ser um choque falar abertamente sobre classes sociais, considera que o terror é o género que melhor serve para refletir sobre as ansiedades e os medos coletivos. “Analisando a evolução da literatura de terror vemos como se transformaram os medos da classe dominante.”

Cuenca foi das últimas terras espanholas a cair nas garras de Franco, e, com esta narrativa, Martínez quis demonstrar o quão duros foram esses tempos para a sua família, em especial para as mulheres que a antecederam, mas também para o país em geral. Um país que tal como esta casa, a seu ver, foi construído sobre destroços. Escrever este livro foi, segundo a autora, uma forma de fazer vingar a voz das mulheres da sua família. Por isso, não tem pudor em nomear apelidos reais. A família Jarabo existe de verdade. Aliás, um desses Jarabos chegou a ser ministro de Franco. Por isso, não tem pudor em dizer que este livro é antes de tudo uma história de vingança.

“Considero a ideia de ressentimento e ódio coletivo uma ferramenta e paixão muito poderosa, politicamente. Eva Illouz diz que estamos num momento de emoções congeladas, em que parece que a paixão faz mal, tanto no sentido do amor como do ódio.” Layla Martínez quis pôr um travão não só na passividade política que segundo ela tem tomado conta dos nossos dias, do nosso percurso histórico, mas também na passividade com que as mulheres encaram o patriarcado carnívoro, os seus próprios sentimentos e os altos muros do classismo.