Carlos Paredes. A revolução inscrita num instrumento musical

Carlos Paredes. A revolução inscrita num instrumento musical


No ano em que as celebrações do centenário irão cobrir de espavento a memória deste tão virtuoso como subtil e feroz compositor e intérprete, tentamos descobrir o conflito que deu origem a uma tão momentosa e enérgica rutura na música popular portuguesa.


A eternidade responde por muitos nomes. Mas talvez não sejam aqueles que logo reconheceríamos. Ao contrário do que se supõe, deve estar farta dos déspotas, dos pornógrafos da glória, preferindo a companhia de seres discretos, que se deram ao trabalho de afinar cada gesto segundo uma escala menoríssima, a do cuidado, a da elegância que os torna humildes, reservando-se meditativos até à hora em que lhes é dado retirarem-se, ao fim de um dia desgostante. Quando a última luz do sol é fraca, buscam o outro lado da vida, tantas vezes naquela zona que limita os arrabaldes, e ali voltam ao seu crepúsculo, para arrancar-lhe um golpe de êxtase, secreto, e são estes que não se dão ao trabalho de provocar alarme, que depois perduram em apócrifas histórias, pelos modos que lhes eram próprios, raros, como se dobravam a um canto sobre uma guitarra, no zangarreio de uma corda, ou mesmo num silvo, numa expressão dirigida não se sabe a quem. Estiveram aí e, na maior parte das vezes, não se deu por eles. Dedicados a pobres coisas, obscuras glórias. “No mais íntimo pátio da parreira/ Quando os dedos temperam a guitarra”, assim os viu Borges, aos compadritos mortos.

Desligava-se do mundo

É uma questão de infinito, no que diz respeito à música. Arrancar-lhe algumas notas, como penas translúcidas, sem incomodá-lo, para que não se esquive, deixando esse que não sabia fazer melhor, desamparado frente a uma atroz dissonância. Carlos Paredes tinha um modo tão furtivo de vir, que ninguém dava por ele. Ninguém diria que aquele homem cuja humildade chegava a ser exasperante, seria capaz de um arranque daqueles. Quando atravessava o palco já era outro. “Sentava-se na cadeira e desligava-se do mundo”, como recorda, ao Observador, Luísa Amaro, sua companheira dos últimos anos, e quem o acompanhou também antes de a doença lhe retirar o instrumento com que depenava cirúrgica e lealmente aquela imensa ave. A mulher que esteve mais perto, na intimidade e nos palcos, vinca “aquele ataque assombroso das primeiras notas”. “Muitos músicos clássicos, mesmo os muito bons, naqueles minutos iniciais ainda têm a mão fria. Mas o Carlos Paredes pegava na guitarra e aquilo era um ataque perfeito à corda, logo com uma força… Nas piores condições humanas que se possa imaginar, a tocar com um frio horrível, aquele homem agarrava e tocava logo as cordas com uma força, que é uma coisa que tem a escola de Coimbra, é um ataque viril e muito forte, sem hesitações. Aquele ataque não permite insegurança, a partir dali o concerto está logo ganho.”

Parecia haver dois homens, um vingando-se da penúria do outro. Ele que nunca foi um tipo jovial ou enérgico, nem gozou aquela divina arrogância que é própria dos verdes anos, inventou a sua juventude naquelas doze cordas, num país onde a toda a volta, onde, por mais fundo que se respirasse, apenas se sentia o cheiro de séculos putrescentes, cinza sobre cinza, negro sobre negro, ele aprendeu a sonhar por uma nesga, e a escapar daquela realidade marcada pela opressão, a libertar-se daquele peso que se metia no peito, que desfazia os gestos e lhes escondia a repercussão. Libertava-se daquela falta de ar, daquela ânsia e frustração, num corte através da música, reinventando com uma ferocidade que seria impossível dizer por palavras um instrumento que era suposto ser típico, estar esmagado debaixo da tradição. Então, o que foi Carlos Paredes? Quando tocava, era certamente a coisa mais distante do que essa vil tristeza a que, por excesso de familiaridade e horror, vamos chamando de portuguesa.

E se ele podia ser muito como os demais, só o era até que a guitarra portuguesa lhe servisse para desmanchar tudo aquilo, para dar cabo da modorra de um quotidiano torcionário. Assim, restava-lhe essa divina rudeza dos modos com que se debruçava sobre aquele instrumento de luz secreta, a luz que ninguém saberia como parcelar ou censurar.

“Os músicos que não estão ligados a este infinito demoram um bocadinho a aquecer, aqueles primeiros instantes; o Carlos Paredes não, ele ataca a primeira nota com uma precisão de força e intenção que é de outro mundo”, adiantava Luísa Amaro numa outra entrevista. E é isto o que nos leva a falar de uma revolta calada, a daqueles que se viram para as línguas sem dicionário, e que não podem ser estreitamente decifradas. Havia dois homens em Carlos Paredes. Os dois se sentavam a uma cadeira, mas se um deles ficava contente por apagar-se, o outro mostrava a abertura de umas mãos gigantescas, dando a impressão de ter mil dedos, como um crítico de música estrangeiro notou certa vez. Este depressa tomava conta do espaço que lhe dessem, dos ouvidos a seu alcance, num urro subtilmente entretecido, num ir e vir, numa luta consigo mesmo, com a tradição e a época, num registo que parecia tão controlado como cheio de uma delirante vivacidade.

E pense-se o que era o país então? O que havia além do tédio, e de suspiros, pasmaceira, província, a nostalgia do fado, a borradela das horas mortas? Em todo o lado, o olho murcho e pisado, paixões em estado de crisálida, expressões de tortura como se alguns viessem de ser empalados… Assim, o descreve Santos Fernando. Antes do 25 de Abril, daquela revolução das canções, a revolução pacífica que, com todo o seu colorido, era já também uma forma de estabelecer um pacto, e passado aquele período de recreio e euforia, de interditar o horizonte, antes desse período exaltante, Carlos Paredes raramente saía de trás da secretária onde exerceu funções administrativas no Ministério da Saúde entre 1949 e 1958, tocando em pequenas salas, e mesmo depois, foi o convite das coletividades que despontavam por esse outro país que o levou a percorrê-lo, de ponta a ponta. Mesmo do tal emprego, correram com ele. Preso pela PIDE, passou 18 meses no Forte de Caxias, onde foi torturado. Depois, ficando-lhe vedado o funcionalismo público por pertencer ao Partido Comunista, viu-se obrigado a arrastar-se pelos consultórios, a passar horas na sala de espera junto do pessoal patibular, com os seus panfletos de delegado de propaganda médica. E assim a coisa se inveterou nele, aquela tristeza que rói até ao osso, e parecia ser isso aquilo de que se sacudia e libertava em palco, esse estupor, essa sarna. Teria de esperar pela revolução e, para se ver reintegrado nos quadros do Hospital de S. José, e se daí em diante algumas vezes foi confrontado com a questão da profissionalização, dava sempre a mesma resposta: “gosto demasiado da música para viver às custas dela”.

A eternidade

Foi sempre o último a ensaiar algum piropo que pudesse ser dirigido à eternidade, e coube assim a outros vir dizer o que o tempo tornou indesmentível. “Carlos Paredes dá-nos a ouvir um mundo sob a condição da eternidade”, escreveu Eduardo Prado Coelho. Pela sua parte, ele recursou qualquer protagonismo, mas defendia a guitarra portuguesa, insistindo que o esforço de defender um instrumento, só conhece uma solução: criar uma escola. “Se as pessoas souberem utilizá-lo convenientemente, guardam-no. Caso contrário, esquecem-no.” Assinalou também que o fado tornou a guitarra prisioneira, reforçando que era importante ver o fado como apenas um episódio na história da guitarra, dizia. Ou seja, o conflito esteve sempre latente. Como se aquele instrumento às tantas não quisesse ver-se restringido ao mesmo molesto guião. “Todos ouvem nele algo de antigo, de primevo, mas ao mesmo tempo um fogo do presente que anseia libertar-se.”

O fado e a família

Nascido a 16 de fevereiro de 1925, na rua Antero Quental, em Coimbra, a guitarra portuguesa era mais do que um brasão familiar. As doze cordas terão moldado o ímpeto daquele sangue, desde que o bisavô de Carlos Paredes se lhe dedicou, transmitindo essa afeição aos dois filhos, o seu avô, Gonçalo Paredes, e o tio-avô, Manuel Paredes. Quando chegou a vez do seu pai, Artur Paredes, estamos já a falar de um clã que tinha alcançado um grande relevo na canção coimbrã, e na autonomização desta face ao fado de Lisboa. E é também em resultado de um corte com o passado que irá ser possível a Carlos Paredes assumir a sua exuberância, do lado da solidão. Gravando o seu primeiro álbum, Guitarra Portuguesa, em 1967, já acompanhado pela viola de Fernando Alvim, que, sendo um entusiasta do jazz e da Bossa Nova, expandia os limites da harmonia para lá do território do fado, Paredes causou algum estremeção, ameaçando romper com a tradição formalista da guitarra de Coimbra, com escapadelas inspiradas, ensaiando a arte da miniatura melódica, provando ter em si não só a ousadia de um compositor delicado, como o sustente de uma técnica que lhe permitia aventurar-se, declarar a independência da guitarra, com um manejo fulgurante. Mas foi em 1971, que o filho acabou com o pai, gravando um LP com “Balada de Coimbra”, a canção de José Elyseu que fora revitalizada pela figura maior da guitarra de Coimbra, Artur Paredes. A reação foi imediata, e significou um corte de relações total entre pai e filho. E isto terá sido um motivo de mágoa tão profunda que Carlos Paredes não voltaria a tocar nem a “Balada de Coimbra” nem mesmo “Movimento Perpétuo”, fazendo assim o luto por esse vazio. Fora o pai quem elevara a guitarra portuguesa à condição de instrumento solista, mas como o filho explicava na contracapa de Movimento Perpétuo, sendo aquele um instrumento tão singular, “é um intérprete muito pouco fiel de toda a música que não tenha saído das suas cordas”. Ao gravar uma célebre versão do pai, ele sabia que a sua exigência de mais luz, significa lançar Artur Paredes para a sombra. E talvez tenha sido esse o motivo porque desde então Carlos Paredes preferiu defender o instrumento, em vez da sua própria posição e legado, reconhecendo que a guitarra portuguesa só teria futuro se a canção ao invés de estagnar, abraçasse esse ideal de um movimento perpétuo.

Como disse Luísa Amaral em entrevista a Luís Freitas Branco, num soberbo ensaio sobre os dois álbuns que, em 1971, revolucionaram a música popular portuguesa – além de Movimento Perpétuo, destaca-se Gente De Aqui E De Agora, de Adriano Correia de Oliveira –, “Coimbra tinha o peso do pai. Ele dizia que quando começou a tocar, aquela gente de Coimbra – ele tratava-os por doutores – diziam que ele só tinha técnica, que a emoção estava na guitarra do pai”. Ela recorda como as visitas à sua cidade natal eram feitas por Carlos Paredes a contragosto. “Ele tinha uma relação quase de amargura com Coimbra. Para ele, Coimbra era o pai.”

Guitarra, piano e violino

Tinha oito anos, quando o pai – empregado bancário – aceita um cargo na capital, levando a família com ele. Aos quatro anos, já sabia segurar a guitarra e provou um afinco e uma facilidade assombrosa no seu estudo, tendo os dotes sido desenvolvidos por uma formação clássica, aprendendo a tocar piano e violino, por insistência da mãe. Naquele ensaio publicado no Observador, Freitas Branco regista como foi na sombra do pai, que Carlos Parede foi desenvolvendo “a sua arte quase em sigilo, sem atropelar ninguém, com uma prudência excessiva que o leva a gravar pela primeira vez em nome próprio apenas em 1962, aos 37 anos”. De algum modo, terá sido isto que o cindiu e levou a que emergissem esses dois lados ou dois homens: um tímido em tudo, ao ponto de “quase pedir desculpa por existir”, e o outro que, por fim, se libertava em palco, e ultrapassava todos os limites, fazendo da guitarra portuguesa esse instrumento de vingança.

Em certa medida o conflito nunca deixou de ser uma questão de lealdade filial, pois se o pai lhe transmitiu o talento musical aperfeiçoado ao longo de gerações, e aquele estilo interpretativo impetuoso que se libertou do “pieguismo langoroso” a que a guitarra portuguesa se submetia para sustentar os lacrimejantes humores do fado, por outro lado, da mãe, Carlos Paredes recebeu também esse alimento de raiva silenciosa, aquela consciência política que o conduziu à filiação no Partido Comunista Português, e que o predispôs a uma sensibilidade que fez o seu caminho doloroso entre as raízes mais profundas da cultura portuguesa. Nas mãos dele era como se a guitarra fosse uma árvore de fruto que irrompe de uma terra que é como uma crosta, e, por isso, há aquela carga de enlevo e rutura, de graça meditativa e de tumulto ao mesmo tempo.

“Quem ouviu alguma vez tocar Carlos Paredes, quem assistiu ao espetáculo, ao recital em forma de luta e posse entre a sua arte e o instrumento que entre os seus dedos adquire uma vida mágica, não esquece também a espécie de fusão, de confusão íntima entre o artista e a sua guitarra, como ele emanasse dela, ou ela, sobrenaturalmente, se transformasse nele”, assinalou Eduardo Lourenço. “Não é a sua arte uma mera expressão de mais pura e subtil tecnicidade – ou não é isso apenas –, mas uma espécie de imersão e de viagem num corpo vivo de onde ele arranca uma a uma, como se descesse ao mesmo tempo a uma mina e a um labirinto, as figuras mais imprevistas mas não extravagantes.” Assim, resulta claro que a guitarra portuguesa foi um instrumento através do qual Carlos Paredes operou em si mesmo uma metamorfose, que permitiu ao país estranhar e debater-se com esse sufoco, que não ocorre apenas em resultado de uma opressão exterior, mas também da sua própria prisão e degradação interior. Por isso, o seu talento precisou de um apuro técnico quase demencial de forma a libertar essas camadas que persistem ocultas, tendo sabido converter o seu dom “naquele desmultiplicado e unido espaço sonoro onde, com íntima complacência e emoção, nós não apenas ‘ouvimos’, mas somos tocados pelo tão complexo e límpido sentimento do que nos fala de nós mesmos”.

Mas, como é óbvio, não se trata aqui de vir com as tão estafadas e bacocas essencializações, nem isto deve ser levado à conta de mais outra esmola para esse peditório da “portugalidade”, pois o que resulta claro de um exemplo como o de Carlos Paredes é que um artista tão poderoso como ele só pôde afirmar o seu caráter genioso através desse magnífico efeito corrosivo aplicado ao folclorismo sufocante que domina a nossa cultura, e que está em linha com a lisonja provincial a essa infinita resignação que muitos fazem passar por uma virtude marcadamente nossa.

Não se compreende a força das suas composições, que ele ia gravando a trechos, como se investigasse, desafiando-se a ir mais longe, explorando as possibilidades, vencendo as suas reservas, não se compreende esta mágica, sem a enorme amargura, o conflito e a mágoa, entre aqueles dois polos em tensão, um dever de lealdade, um desejo de nascer para um movimento que não aceita ser coagido. Também por isso ele preferiu defender a música, não viver às suas custas, mas defendê-la. Toda essa amargura acumulada tem o seu reverso naquele ímpeto feroz, naquele gesto que ia em direção ao desconhecido, e talvez o elogio mais justo que lhe foi feito tenha vindo de Paulo Rocha, que o procurou em 1962, para que ele fizesse a banda sonora de “Os verdes anos”. Paredes aceitou o encargo como uma honra, e entregou-se a um exercício de dolorosa experimentação, como testemunha o realizador. “Era um louco e um perfeccionista. Ficámos completamente presos em estúdio porque ele inventava muito e quase ficava com os dedos em sangue de tocar tanto”.

“Ele leu a história e compôs a música antes de eu filmar, uma música impressionante, e, quando eu estava a rodar, já tinha a música na minha cabeça. Fiquei com suores frios quando ouvi”.

A Paulo Rocha, que voltaria a contar com ele em Mudar de Vida (1966), e Manoel de Oliveira ou José Fonseca e Costa, como a outros cineastas, o que lhes interessava era a possibilidade que aquela música oferecia de abrir uma passagem entre a tradição popular e um registo erudito, entre a música clássica ou o jazz. Paredes era o que aquela guitarra ia deitando abaixo, impondo uma velocidade insana para depois hesitar entre duas notas, no momento chave, em que umas vezes nos desequilibra e outra nos faz sentir levantados do chão.

Criação musical

Numa entrevista dada ao Diário de Lisboa, em 1971, é possível reconhecer o alto grau de exigência que ele se colocava. “Não pretendo que a música ligeira portuguesa venha alguma vez a confundir-se com o folclore tradicional, com o jazz, com a música erudita, mas, muito simplesmente, que se integre no que, comum a todos os géneros de verdadeira música, pode ser considerado autêntica criação musical. Só a partir duma consciência coletiva da criação musical conseguiremos afirmar a nossa personalidade e o direito a uma justa projeção universal”. Assim, ele viu o perigo constante dos géneros se imporem como uma definição que estrangula esse movimento que aprofunda as suas bases técnicas para reforçar a clareza do seu impulso, a graça repentista, a violência libertadora.

Mas esta é de tal modo uma história em que prevalece a amargura que, depois de se ter imposto contra todos os limites, e superado as barreiras do próprio sangue, na última década da sua vida, passou-a confinado, tendo-lhe sido diagnosticada uma doença degenerativa. Fez a sua última atuação em público em outubro de 1993, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, e dois meses depois, soube que estava condenado a sentir que lhe cortavam cada um dos mil dedos em resultado de uma mielopatia (doença da medula) que lhe prendeu os movimentos e o impediu de andar. Ficou internado numa casa de saúde em Lisboa até 23 de julho de 2004. Nunca mais lhe ouviram puxar uma nota daquelas doze cordas.