Shah Karim al Hussaini. Aga Khan IV, um soberano sem reino 

Shah Karim al Hussaini. Aga Khan IV, um soberano sem reino 


1936-2025. Difundiu a imagem de um Islão moderno.


Com uma postura afável, sempre sorridente, os que com ele privavam reconheciam-lhe um talento para impor a sua vontade de forma graciosa, sendo também um líder exigente. Ele rejeitava a noção de que o seu empenho em expandir a sua fortuna pessoal pudesse representar um conflito com os tão propalados fins caritativos do seu império. Afirmava que a sua capacidade de prosperar complementava o seu dever de melhorar a vida dos muçulmanos ismaelitas, um ramo da tradição xiita do Islão com 15 milhões de seguidores em 35 países. Shah Karim al Hussaini, o Aga Khan IV, 49.º imã hereditário dos muçulmanos ismaelitas, morreu esta terça-feira, 4 de fevereiro, em Lisboa, aos 88 anos. Fundador e presidente da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN), este homem que fez sempre os possíveis para se esquivar à atenção mediática soube fundir o empreendedorismo e a filantropia de forma a multiplicar a fortuna e os investimentos que recebera em herança.

Um bom homem

«Karim tem muito charme, mas por baixo é feito de aço. Ele faz exatamente o que quer, quando quer», dizia um amigo citado num perfil feito há cerca de uma década pela revista Vanity Fair. «De facto, poucas pessoas ultrapassam tantas divisões – entre o espiritual e o material; o Oriente e o Ocidente; o muçulmano e o cristão – tão graciosamente como ele», adiantava. Numa entrevista ao jornalista e historiador francês Henri Weil, em 2019, disse que não se considerava nem chefe de Estado nem príncipe, mas sim um imã de uma comunidade muçulmana xiita que existe há séculos. E um bom homem, porque esse é o papel de um imã.

De um imã, ou líder da sua fé, «não se pedia que se removesse da vida mundana», frisou ele após ter recebido o título Aga Khan, com apenas 20 anos. «Pelo contrário, espera-se dele que proteja a sua comunidade e contribua para a sua qualidade de vida. Por isso, a noção de divisão entre a fé e o mundo é estranha ao Islão». A sua reserva em assumir um perfil mais destacado liga-se também ao seu repúdio por ver o seu estilo de vida caracterizado como luxuoso, embora viajasse nos seus jatos privados e num enorme iate avaliado em 200 milhões de dólares, e além de uma ilha privada nas Caraíbas, tinha uma variedade de residências, incluindo Aiglemont, uma extensa propriedade a norte de Paris que se tornou a sede da sua rede de desenvolvimento e um centro de treino para os seus cavalos.

A fortuna

Ainda que não tenha herdado a soberania sobre nenhum território, sendo o príncipe de uma fortuna e não de um reino, esta figura exprime bem o poder e a influência que se consegue ter ao gerir um património avaliado entre mil milhões e 13 mil milhões de dólares, proveniente de investimentos e participações privadas em hotéis de luxo, companhias aéreas, cavalos de corrida e jornais, bem como de uma espécie de dízimo corânico cobrado aos seus seguidores. A sua rede de iniciativas de saúde em países em desenvolvimento era um excelente móbil para manter uma relação de proximidade com tantos dos líderes das nações mais ricas, sendo a fundação Aga Khan em Portugal apenas um dos pontos de articulação de uma rede com sede na Suíça, e que gere anualmente quase mil milhões de euros em projetos de filantropia.

Titular de cidadania britânica, francesa, suíça e portuguesa, Karim al Hussaini foi um visionário na compreensão de como um império filantrópico global, com ramificações em setores que vão da educação à energia, das telecomunicações à agricultura, é uma forma bem mais ardilosa de exercer influência política, e isto tendo em conta como a comunidade dos seus seguidores se encontra espalhada pelo mundo, estando sobretudo presente na Ásia do Sul e, através da diáspora, na Europa e América do Norte. Em Portugal vivem cerca de 10 mil ismaelitas, vindos de Moçambique após a independência da ex-colónia portuguesa.

Como assinala o jornal Eco, o vínculo ao Estado português tem raízes profundas, e que remontam a 1960, quando o então Presidente da República, Américo Thomaz, atribuiu ao líder ismaelita a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, uma das primeiras condecorações internacionais recebidas pelo Imamato. Mas o ponto culminante foi um acordo extraordinário, celebrado em 2015, e que passa por uma isenção total de impostos sobre donativos, imóveis e veículos, como o luxuoso iate Alamshar (em honra a um antigo cavalo de corrida do príncipe) ou vários jatos, bem como a isenção fiscal sobre os salários dos altos funcionários. Este pacote de incentivos foi decisivo para a instalação da sede global da comunidade ismaelita em Portugal, ainda que a fortuna e os negócios tenham mantido a sua sede na Suíça.

De príncipe Karim a Aga Khan IV

Karim Al-Hussaini nasceu em Genebra a 13 de dezembro de 1936. Era o filho mais velho do príncipe Aly Khan, mais conhecido pela vida de playboy que sempre levou, e da sua primeira mulher, Joan (Yarde-Buller) Khan, descendente da aristocracia britânica. Em 1949, os pais divorciaram-se e Aly casou-se com a atriz Rita Hayworth, com quem teve uma filha, Yasmin Aga Khan. Conhecido na juventude como príncipe Karim, cresceu em Nairobi, no Quénia, antes de frequentar a escola no exclusivo Institut Le Rosey, em Genebra. Aos vinte e poucos anos, competiu pelo Irão pré-revolucionário na modalidade esqui nos Jogos Olímpicos de 1964 em Innsbruck, na Áustria.

Viria a herdar o título do seu avô, o Aga Khan III, que de forma algo inusitada saltou uma geração para nomear o neto como seu sucessor. No seu testamento, afirmou que tinha tomado esta opção, em parte porque as «condições fundamentalmente alteradas do mundo» – incluindo os avanços da ciência atómica – exigiam um «jovem que tivesse sido criado e amadurecido durante os últimos anos e no meio da nova era, e que trouxesse uma nova perspetiva de vida para o seu cargo». Na altura, Karim tinha 20 anos e era um estudante de história islâmica em Harvard. Nesse mesmo ano, a Rainha Isabel II conferiu-lhe o título não hereditário de Sua Alteza, um reflexo dos laços estreitos entre as duas dinastias, que, desde logo, tinham em comum um fascínio por cavalos puro-sangue.

Como o seu avô previra, o Aga Khan IV viu-se confrontado com várias crises e convulsões políticas que representaram, num ou noutro momento, ameaças para a comunidade ismaelita, particularmente em países como o Afeganistão, o Paquistão, o Irão e a África Oriental. Desde logo, houve a decisão do ditador ugandês Idi Amin, em 1972, de expulsar os asiáticos, e mais tarde vieram os tumultos no Tajiquistão após o colapso da União Soviética. Nesse sentido, Karim provou ter feito uma leitura correta da instabilidade e dos desafios que se colocam, hoje, a qualquer comunidade espalhada pelo mundo, e o ecletismo dos seus investimentos e ação filantrópica permitem-lhe difundir uma imagem moderna do Islão, em contraciclo com os fundamentalismos que têm vindo a agravar a perspetiva de um choque de civilizações.