Fleur Jaeggy. A doçura das infâncias tristes

Fleur Jaeggy. A doçura das infâncias tristes


Felizes Dias de Castigo, vencedor de prémios como o Bagutta, o Boccacio Europa, o John Florio e o Speciale Rapallo, é o quarto romance de Fleur Jaeggy (1940) e foi o 1.º editado em Portugal. Não deve haver, na história da literatura suíça, personagem feminina mais impassível, elegante, displicente, metódica, sedutora que Frédèrique.


Fleur Jaeggy narra, neste romance, a história de uma rapariga interna num colégio, o Bausler Institut em Appenzell. “No Appenzell, é impossível não dar passeios. Se olharmos para as pequenas janelas debruadas de branco e para as flores buliçosas e incandescentes nos peitoris, percebemos uma estagnação tropical, um luxuriar refreado, temos a impressão de que dentro acontece alguma coisa de serenamente turvo e um pouco doentio.” Temos de verdade essa impressão, porque neste colégio, Jaeggy, que também foi na vida real uma aluna interna, encaminha-nos por dormitórios, salas de aula, recitais de poesia e recreios onde reina uma hierarquia feroz, uma disciplina e austeridade implacável.

Próximo de um manicómio no bucólico Lago de Constança, onde esteve internado o também escritor suíço Robert Walser, o ambiente que se vive neste colégio é sufocante, enigmático, melancólico e perturbador. Por isso a narrativa é percorrida por laivos de uma libertinagem recatada, que se vai camuflando promiscuamente. Nas camaratas pressentimos a respiração descompassada das raparigas, a nudez dos seus corpos e os seus desejos a quererem descoser as costuras de uma moralidade há muito imposta sobre elas. Lavam-se como gatos, muito depressa, escondendo-se umas das outras com vergonha. Mas ao mesmo tempo que se tentam esconder, também se vigiam e estudam minuciosamente entre si. Há um sem fim de olhares a fisgar cada gesto e cada silêncio. Todas sabem de cor o que cada uma guarda no armário. A narradora sempre teve o armário quase vazio. Dentro dele apenas tinha guardado um lápis, um caderno, uma carta, um lenço e uma chave.

Frédèrique “tinha quinze anos, cabelo liso como lâminas, brilhante, olhos severos e penetrantes, sombrios.” Oriunda de uma família protestante, tal como a família paterna da narradora, o pai de Frédèrique era um banqueiro de Genebra que nunca a foi visitar. Nem a mãe. Aliás, praticamente todos os pais e mães das alunas nunca iam visitar as filhas, nem tão pouco se dignavam a ir pessoalmente buscá-las nas férias. Frédèrique raramente se ria e tinha uma letra que transbordava personalidade. A narradora, às escondidas, esforçava-se por imitar a sua letra ao pormenor. “Nunca precisou de se curvar porque a sua forma de respeitar os outros incutia respeito.” Jamais pronunciou a palavra Deus. É sem dúvida uma personagem que nos transcende. Pelo seu silêncio, pelo seu desprezo mascarado de obediência, pela sua fúria mascarada de respeito, mas acima de tudo pelo seu brutal afastamento deste mundo. Embora aparentemente absorta, era obediente e disciplinada. Não despertava simpatia nem confiança nas colegas, e por isso todas a evitavam. Havia algo de indolente e de maligno em torno da sua presença. “À mesa, por vezes, ouvia-a a rir-se com o seu riso gratuito que me perseguia também de noite. Voltava-me, e todos os rostos estavam sérios.” Não dizia nada só por dizer, muito menos para agradar, e ao contrário da narradora, dava a impressão de que já tinha estado com um homem, o que lhe conferia a aura de maturidade que a narradora tanto almejava.

A narradora é completamente obcecada por ela desde a primeira vez que a viu, mas para seu desgosto nunca viveram juntas. As duas estavam separadas em classes durante o dia, e em casas durante a noite. Frédèrique vivia na ala das raparigas mais velhas do internato. A narradora sentia-se perseguida por ela. O próprio leitor a certa altura também.

Neste colégio, as alunas eram oriundas de muitos países. A colega de quarto na narradora, “ajuizada e má”, era alemã. Uma rapariga desinteressante com a qual nunca falou nem da guerra, da morte, nem de Hitler ou do nazismo. A bem dizer pouco falavam, porque a alemã preferia falar com os espelhos e a narradora preferia observá-la. A alemã guardava todas as cartas dos pais. Lia-as e relia-as vezes sem conta. A narradora por sua vez rasgava-as. Muitos anos depois de ter saído do colégio, continua a esforçar-se por se lembrar do nome desta colega de quarto, mas não consegue. É como se fosse um rosto sem nome, ainda por esquecer, perdido para sempre nos ergástulos da memória. Também da narradora o leitor não sabe o nome, e também como da alemã e de todas as internas sente-se demasiado íntimo. É como se se sentisse por elas convidado para um sonho, que sabe que já começou, ou que vai começar tarde demais. Na verdade, é pouco relevante a hora do sonho. Também é pouco relevante que esse sonho seja bordado harmoniosamente em tons plangentes ou cândidos. O marcante aqui é que este é um sonho que atordoa. E quem diz sonho diz castigo. Porque em Jaeggy sonho e castigo estão situados no mesmo patamar. Há muito de onírico nestes inesquecíveis anos colegiais. São anos que se nos apresentam em suspenso, como uma conversa que nos esforçamos em manter com alguém que insiste em desaparecer. Como se velássemos continuamente, só porque somos incapazes de esquecer, um monólogo que nunca nos trará respostas. “A alegria pela dor é maliciosa, tem veneno. É uma vingança. Não é angélica como a dor.”

A narradora, interna no Bausler Institut desde os 8 anos, até conhecer Frédèrique apenas conhecia os mandamentos rígidos da justiça e da religião. A partir do momento em que a conhece há um mundo que se torna hipnotizante e magnético. Se atentarmos ao próprio título do livro, podemo-nos dar conta de imediato de uma grande tensão. É um título que nos remete para uma nostalgia latente (felizes anos), mas uma nostalgia que depois é imediatamente degolada por uma cortina de frio e névoa (castigo). Um sopro de fatalidade e doce amargura, que tal como o título nos inscreve num círculo de apreensão permanente, como a frase que a certa altura aparece na fachada de uma casa num bosque em Appenzell, por onde as personagens principais costumam passear “Suportar em paz a fortuna”.

O grande acontecimento desta história é a chegada de Micheline ao colégio. Com o aparecimento desta nova aluna, a narradora aparentemente vai esquecer-se da sua obsessão. Mas quando o pai de Frédèrique morre e ela sai do colégio para ir ao seu enterro, sabe que nunca mais a terá de volta. Desesperada, declara-lhe por escrito o seu amor, porém Frédèrique seguirá impassível o seu rumo, até se reencontrarem anos mais tarde na Cinémathèque em Paris.

O reencontro será marcado por muitos incidentes e desvarios imprevisíveis, mas também pelo próprio peso que a narradora desde sempre carregou dentro de si por nunca ter conseguido conquistar Frédèrique, apesar de todas as confidências e de toda a ternura que lhe dedicou. Este peso percorre a narrativa até ao fim como um clarão de uma serena inquietude que parece nunca se extinguir. Emily LaBarge, no Los Angeles Review of Books, vinca que “a astuta compreensão de detalhes narrativos de Jaeggy é ao mesmo tempo serena e surpreendente. Sob uma superfície plácida e opalescente esconde-se uma ameaça de violência que pode ou não ser concretizada, mas que contribui para a profunda impressão de que as pessoas e as suas vidas são imprevisíveis, fluindo numa selvajaria gelada e árida.”

Gini Alhadeff, tradutor da sua última coletânea de contos, descreve Jaeggy como uma “solitária monumental”. No fundo, todos os seus personagens também o são. Em todos os seus enredos, espaços, a própria natureza que descreve escuda-se constantemente dessa solidão monumental. A autora preserva, como uma fruta que se oferece inteira à podridão, o agrado pelo desencanto. “Sabia que Frédèrique não escreveria. Mas perseverava no prazer de ir até às profundezas da tristeza, como se faz com uma humilhação. O prazer do desapontamento. Não me era novo. Apreciava-o desde que tinha oito anos e era aluna interna no primeiro colégio, religioso. E se calhar foram os melhores anos, pensava. Os anos de castigo. Há como que uma exaltação, ligeira, mas constante, nos anos de castigo, nos felizes anos de castigo”.