Os marcadores estão a matar o Partido Socialista, impondo um registo de intolerância com a diferença e com todos os que não sejam eles próprios, no exercício de funções ou despojados delas. Não é essa a matriz do partido, nem a que presidiu à vivência partidária que conduziu à primeira grande vitória deste último ciclo político, iniciado em 1995, com António Guterres. Os ensaios atuais são contrários aos valores, à matriz e à vivência interna do partido, quando boa parte dos protagonistas da marcação foram formatados no exercício do poder governativo.
Na vida corrente, em especial em casas com pedigree, como aquelas de onde provêm estes zelosos protagonistas, os marcadores são pratos grandes e rasos, ou objetos semelhantes, usados para assinalar o lugar de cada pessoa durante toda a refeição, geralmente numa mesa de cerimónia. Alguém, por via de uma sinalização, determina de forma autocrática ou seguindo um protocolo o lugar de cada um à mesa. O que assistimos na atualidade é um sustentado exercício de marcação, com disparos para todos os lados, além das esferas de interesse dos próprios, sem nexo, porque contrários a toda a prática histórica e recente.
Marcam o secretário-geral do PS porque não faz o que querem, não escolhe os que querem e não segue a estratégia que querem, como se já lhe tivessem colocado um X, não o do Musk, postergando-o, em pensamento, do exercício democrático para o qual foi eleito. Está marcado para não voltar a ir a eleições legislativas! É assim que surgem exigências de resultados, de escolhas e até de candidaturas do próprio ao Município de Lisboa, depois de terem contribuído para a implosão da credibilidade partidária e do compromisso com a cidade em boa parte do território dela.
Marcam dentro do partido, mas querem continuar a marcar na sociedade, querendo impor um processo de escolha numa matéria em que a esfera de liberdade é, como pressuposto, individual, a das candidaturas presidenciais. Estranha-se que tão zelosos protagonistas não tenham tido a preocupação de validação política e da coesão quando o Partido Socialista subscreveu o memorando com a Troika com consequências que perduraram no tempo; na escolha de cargos políticos de referência, da Comissão Europeia à Presidência da Assembleia da República, mas também na escolha dos deputados, dos autarcas e de outras representações sociais relevantes, na adoção de uma solução de governo à esquerda, na sequência da não vitória nas legislativas de 2015 ou em tantos momentos e opções que marcaram não apenas o presente, mas os futuros da vida partidária, política e do país.
Estranha-se que os marcadores, tão preocupados em determinar o presente e o futuro, não dispensem um minuto do seu tempo e posicionamento para um exercício de autocrítica para a pegada de consequências e para os resultados dos seus exercícios políticos recentes, persistindo nas mesmas receitas que não tratando da doença, ainda dão mais vigor ao doente, sintonizado que está com as realidades e as perceções instaladas. A desconformidade das opções anteriores e da estratégia seguida, não produziram efeitos de mitigação do populismo e continuam a ser parte do problema, pela amplificação dos palcos de afirmação dessas derivas, que deverão ser combatidas sobretudo pela erradicação das causas, através da concretização de respostas concretas para as pessoas, as comunidades e os territórios.
Estranha-se sobretudo quando o quadro vigente parece ser o de um certo ódio, intolerância e sectarismo com quem é da casa, mesmo pensando de forma diferente, contrastando com a total abertura, tolerância e integração, entre o laxismo e permissividade, com as realidades externas, os nichos eleitorais residuais e as questões que não estão no acervo das necessidades gerais ou da prossecução do bem comum. As manifestações de ódio interno de alguns, não são racionais, não são normais, nem têm nada a ver com a matriz histórica recente do PS de 1995 até aos nossos dias. Ou já se esqueceram que depois de uma contenda eleitoral dura, frontal e no tempo certo, entre António Guterres e Jorge Sampaio, a liderança vencedora soube integrar todas as sensibilidades e expressões de diversidade, levando-as para a governação, dando-lhes a experiência do exercício político governativo como protagonistas? Ou que, depois de uma inédita remoção de funções de um secretário-geral, tiveram durante mais de uma década todas as condições para desenvolver o exercício político de acordo com uma certa visão, com as vicissitudes, os resultados e as pegadas políticas que são conhecidas? É que, o tom, a intensidade e as expressões dos marcadores denunciam, para além de uma falta de memória, uma enorme intolerância tanto com o silêncio como com a palavra e a presença, como se o problema não fosse da circunstância, mas a pessoa ou uma objeção estrutural a quem pensa e age de forma diferente, em total contradição com a matriz de diversidade, de equilíbrio e de valores. Sendo um fenómeno da sociedade portuguesa, de muitas instituições, do meio mediático e das dinâmicas existentes, não faz nenhum sentido que num partido de centro-esquerda proliferem marcadores que assinalam o lugar de cada pessoa à mesa das vivências. É contrário à matriz, à história e à sociedade que queremos. Quando finalmente compreenderem o erro, já será tarde. Não será apenas a afirmação do populismo, é o posicionamento do partido e o compromisso com a democracia que foi à vida.
NOTAS FINAIS
TENTAÇÕES DE SINAL IGUAL. As tentações de Trump em sorver territórios alheios no Canadá, no Panamá e na Gronelândia são similares às doutrinas concretizadas de Putin. Como tratar de forma diferente o que é, no essencial, igual?
TENTAÇÕES DE SINAL CONTRÁRIO. A Madeira voltará a ter eleições porque o apoio do Chega ao governo de Miguel Albuquerque deixou de existir. Com contestação interna para não prosseguir como candidato do PSD, Albuquerque agarra-se ao poder, não marca eleições internas. Com contestação interna para não ser candidato do PS, Paulo Cafôfo marca eleições para que quem contesta dê um passo em frente. Os sinais contrários fazem toda a diferença democrática.
MÁ SORTE INSTRUMENTALIZAR. As instrumentalizações das realidades e das perceções dão, quase sempre, maus resultados, porque geram novos palcos de afirmação contrária. No dia seguinte a manifestações de sinal contrário, ambas proto-extremistas, uma ocorrência policial na Rua do Benformoso, em Lisboa, é pasto para a afirmação de tudo o que não se queria. Como sempre, mais do que verbalizar e exercitar ativismos que não concretizam respostas, é preciso responder às causas que fundam as consequências. Não foi feito no passado, faça-se agora.