Louis Hémon. Um pugilista no ringue da hipocrisia

Louis Hémon. Um pugilista no ringue da hipocrisia


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Hémon conseguiu resgatar com genialidade a temática pugilística às populares formas literárias que entretinham, em jornais e revistas, construindo uma subversão da narrativa, e demonstrando que um homem comum, mesmo vencendo num desporto que entretinha as classes altas, nunca deixaria de ser mais um explorado.

Louis Hémon (1880-1913) retratou sem açaimo, nem luvas a aparentemente civilizada sociedade londrina de inícios do século XX. Duas Londres. A engalanada e domesticada, e a imunda, emporcalhada não só pelos esgotos do Tamisa, mas também por uma grande fatia da mais alta estirpe inglesa. O ópio do povo versus o ópio da aristocracia. O popular praticado na Wonderland de Whitechapel Road, e o chique e refinado, no imponente National Sporting Club.

Com edição da Sistema Solar, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Battling Malone é a subversão da “história do jogador de boxe inglês e da rapariga que oscila entre o prestígio físico e desportivo do seu compatriota e a menoridade pouco viril de um belo francês.”

Louis Hémon foi um romancista que viu recusados por muitas editoras vários livros. Entre os quais, além de alguns romances, um livro de contos célebre que, entretanto, escreveu em Ontário, Marie Chapdelaine.

Farto de uma Inglaterra que lhe virava constantemente as costas, rumou até ao Canadá. Mas também no Canadá a sua sorte não melhorou substancialmente. Acabou por ser mais uma desilusão entre outras tantas. A par da escrita, foi tradutor e estenógrafo, mas acabou por se suicidar com 32 anos a 8 de julho de 1913.

Só depois do seu trágico suicídio a bordo do Canadian Pacific Railways é que a sua obra se torna conhecida. Com o impulso da detalhada apresentação de Aníbal Fernandes, através deste livro o leitor passa a encarar o pugilismo de um outro prisma. Podemos ler na contracapa a essência que resume a obra: “O pugilismo a olhar do alto para outros romances com o mesmo tema. Battling Malone – o jovem, o selvagem, o ingénuo – a identidade conflituosa que Louis Hémon espalhou espalhando-se a si próprio – por todos os seus romances”.

Neste romance, Hémon através do boxe vai oferecer ao leitor a possibilidade de deambular nas esferas mais opostas da sociedade inglesa do seu tempo. E nessa viagem vão ser muitos os conflitos e contrastes com que nos vamos deparando. Não há dúvidas de que Hémon é perito na desconstrução dos círculos sociais ingleses da sua época. É exímio em servir-se das palavras como socos, a jorrar fios de sangue ainda morno. É pelo boxe que neste enredo as classes ora se vão misturando, se bem que com muitas reservas e uma transbordante dose de hipocrisia, ora se vão afastando violenta e bruscamente.

Louis Hémon conseguiu resgatar com genialidade a temática pugilística das garras de leitores pouco instruídos, elevando-o a um patamar de superior relevo, demonstrando da forma mais cruel que um homem comum, mesmo através de um desporto como o boxe, por mais dinheiro e combates que ganhasse, por melhor e mais bem formado que fosse ou mais fama tivesse, nunca deixaria de ser um pobre coitado. Nunca conseguiria ultrapassar a fronteira intransponível que o separava dos nobres.

O protagonista é Patrick Malone, um jovem humilde oriundo de uma família desestruturada. Um jovem robusto, musculado, sofrido, sem medo de nada nem de ninguém. Os aristocratas só não o olhavam com desprezo e arrogância por causa do seu físico extraordinário, quase animalesco e ameaçador. Perante a sua presença sentiam-se “incomodados com o seu olhar, vagamente perturbados como seres, desde as suas origens domesticadas, na presença de uma fera predadora.” Quando foi avaliado pelo Sindicato, foi remirado da cabeça aos pés como um bicho raro. A maioria dos aristocratas debatia-se interiormente com o que a sua imagem emanava. Havia algo nele, que embora os assustasse, ao mesmo tempo, como que paradoxalmente despertava neles sentimentos contraditórios. O próprio Lord Westmount junto de Malone sentia uma vontade quase indomável de ser mais simples e desligado de tanta materialidade.

Malone teve uma infância terrível. O padrasto era um bêbado que o espancava a ele, ao irmão e à mãe. Habituado a lutas e à violência desmesurada desde sempre, assiste à morte do padrasto pelo irmão do pai e, apavorado, foge de casa. Um filho de East End, como bom nativo dos subúrbios sabia como ninguém escapar à polícia, sobreviver à fome e ao frio. Durante um ano viveu na rua, vendeu jornais à noite, foi engraxador, transportador de malas. Vivia no bairro das docas, “onde a máquina social não tem quase poder.” Este é um livro sobre os meandros dessa máquina social e os dedos que a vão oleando. Malone, infelizmente, por mais destemido que fosse, não lhe soube escapar.

A ação decorre maioritariamente entre a grande sala do National Sporting Club, club eleito pelos aristocratas, e em Whitechapel, lugar onde os se reúnem os plebeus. Com exceção dos “intrusos” que só frequentavam o espaço pelo espetáculo, o National Sporting Clube era constituído por ilustres gentleman, nobleman e lordes, servidos por empregados “silenciosos e atentos, impecáveis no comportamento e nas maneiras. Como só sabem sê-lo os criados ingleses de alto estilo.”

Neste ambiente de luxo vivia-se num extremo formalismo e etiqueta. O tom das conversas era baixo, quase murmurado e abafado. Pressentia-se um certo desdém, irritabilidade e melancolia, mas que eram disfarçadas por uma sensação de falsa harmonia que as pessoas tentavam forçosamente transparecer.

O banqueiro Rubinstein, o Lord Westmount e a irmã Lady Hailsham são os personagens que representam a mais fina flor dessa aristocracia britânica. Todos são fervorosos adeptos do pugilato, ou se não o são, parecem ser. Quem descobre Battling Malone é o Lord Westmount. Foi o Lord que supostamente o “poupou aos penosos começos dos pugilistas obscuros.” É ele também quem funda o British Research Syndicate. Um sindicato formado única e exclusivamente por homens milionários.

Há um contraste brutal entre estes ambientes ao longo do enredo. Tão depressa estamos em salas de jantar requintadas e opulentas, na casa de Lord Westmount a ouvir a irmã tocar piano para Malone, ou num restaurante elegante, como junto às docas, com barracões e depósitos de mercadorias a servir de refúgio a quem não tem um teto para dormir. Tão depressa o público num combate vibra como esmorece, tão depressa estamos perante um Malone vencedor, como prestes a ser derrotado.

Hémon não estabeleceu apenas de forma brilhante contrastes entre ambientes. Estabeleceu também flagrantes contrastes na descrição do próprio personagem principal, dotado de uma “silhueta de animal de combate, e a estranha beleza da máscara ao mesmo tempo ingénua e violenta”. Por exemplo, é abissal o contraste entre os valores e o bom coração, a bravura, tranquilidade e coragem do pugilista, e a superficialidade cruel de Lady Hailsham que se serve de Malone como um brinquedo para passar o tempo. Esta mulher displicente e arrogante, que surge pelas mãos do autor em representação da maquiavélica aristocracia, por detrás da sua máscara e fachada social, regozija-se em humilhar Malone e os seus sentimentos.

De acordo com Greory Mion no seu artigo “A barbárie dos aristocratas e a humanidade dos proletários”, “o que Battling Malone descreve são as metamorfoses latentes do bárbaro e do civilizado, a perturbadora transação de qualidades primárias, uma vez que o bárbaro exibido torna-se mais humano do que aqueles, já que o bárbaro sempre foi mais humano do que aqueles que se esconderam atrás dos avatares da cultura para cometer obliquamente os seus crimes imundos.”

De acordo com Greory Mion, “a luta mais difícil de Malone não acontece no ringue, nem contra ele mesmo, isso na medida em que essa luta não é outra senão a das classes sociais, um confronto milenar entre os herdeiros e os deserdados, uma guerra travada com armas desiguais.”