A “pobreza” começa, por fim, a invadir, sem disfarces, o discurso político, social e mesmo religioso que se faz ouvir numa parte marcante e mais sensível da nossa sociedade.
Ela foi, por isso, evidenciada, e bem, pelo Presidente da República no discurso do Ano Novo como uma das nossas mais importantes disfunções sociais.
A este discurso, ora emergente, se contrapõe, nervoso, um outro: o da “insegurança”.
É dela, da insegurança, que fala outra parte da sociedade, precisamente, quando quer evitar ouvir – e que ouçamos – o primeiro, o da “pobreza”.
Há, no entanto, conexões e diferenças entre ambos.
O primeiro, sobre a pobreza, funda-se nos números evidenciados em relatórios de organismos institucionais – nacionais, europeus e internacionais – e em estudos de associações e fundações da sociedade civil.
O segundo, a propósito da insegurança, tem por base as “perceções” da sociedade e não, exatamente, números concretos sobre um real aumento da criminalidade grave e corriqueira que, verdadeiramente, nos possam afligir.
O primeiro reflete, pois, um problema realmente existente no seio de uma sociedade cada vez mais plurirracial e pluricultural, como é hoje a nossa.
É um problema que afeta, assim, sem discriminações, muitos cidadãos portugueses, mas também cidadãos de outras nacionalidades que, como os portugueses anos atrás, escolheram outro país para aí fazerem a sede das suas vidas pessoais e familiares.
O segundo discurso – o da insegurança – espelha e apadrinha, saudoso, a imagem anacrónica e mitificada de uma sociedade supostamente homogénea, étnica e culturalmente, que teremos tido.
Tal imagem serve para, sem mais argumentos, nos confrontar, com a sensação de uma insegurança gerada, precisamente, pela transformação recente e rápida da nossa sociedade.
O primeiro discurso – o da pobreza – constitui uma crescente certeza para os que, por exemplo, andam, à noite, na rua de certos centros populacionais e vêm, então, o incremento constante do número dos sem-abrigo.
Todavia, essa mesma pobreza não é, ainda assim, suficientemente óbvia para ser percebida e divulgada pelas câmaras da televisão.
Os que sofrem de pobreza, procuram – é certo -, por vergonha e decoro, escondê-la e, se possível, iludi-la, o que dificulta, mas, mesmo assim, não impede, o seu retrato real.
Ela só é mostrada, indireta e rapidamente, quando os media necessitam destacar a iniciativa de certas organizações dedicadas, não ao seu combate estrutural, mas apenas – e não é pouco – ao alívio circunstancial dos seus efeitos mais graves.
O segundo discurso – o da insegurança – é, em regra, apresentado num plano mais retórico e doutrinário.
Quando excede esse plano, a sua imagem é transmitida, não por via dos atos que, em princípio, a deviam revelar, mas, especialmente, através de heroicizadas ações de prevenção que se destinam, alegadamente, a contrariá-la.
Os discursos da insegurança fazem mais, fazem, ainda, voluntária ou involuntariamente, olvidar a pobreza, a fome e a falta de habitação, problemas essenciais e causas primeiras da falta de confiança própria e alheia: logo, da insegurança.
Há, com efeito, no que respeita à insegurança, todo um discurso de crise cultural, artística e jurídica – enfim, civilizacional – que lhe serve de pano de fundo: o mundo dos medos imaginários.
Ela – a insegurança – expressa-se, desde logo, nos enredos dos muitos filmes e séries televisivas norte-americanas de ficção científica ou cariz policial, que, consistentemente, exploram as ideias de caos e de dissolução da sociedade organizada e que se podem ver, todos os dias e a qualquer hora, na maioria dos canais de TV.
Daí, também, a repetidamente explorada perceção da necessidade de leis criminais e processuais, respetivamente, mais duras e menos garantistas.
Dominando massivamente os écrans, tais episódios ficcionais e de consumo fácil retratam e exploram, por vezes até com arte, o sentimento de insegurança e desespero social.
O discurso da insegurança e os pavores obscuros que ele gera contaminam, deste modo, qual vírus incurável, toda a sociedade.
Fomentando o medo de todos podermos ter, um dia, de viver em situação de pobreza, o discurso securitário estigmatiza, com êxito comprovado, os que se encontram já para lá do muro que cerca o nosso condomínio seguro: o muro da vergonha que separa a civilização da barbárie.
Essa a razão que aconselha a limitar o espaço das operações preventivas de segurança a esse mundo estranho e tenebroso onde os valores da democracia e da solidariedade humana parecem já não contar.
Pobres e imigrantes – em alguns casos eles confundem-se e coincidem no mesmo território infernal – são vistos e mostrados, assim, nos discursos e nos retratos mediáticos que deles se fazem eco, como os leprosos – os zombies – dos tempos modernos.
Não por acaso, as câmaras se focam mais nos rostos tapados dos Robocops que os confinam, identificam e desmascaram.
A cara da pobreza, qualquer que seja a sua cor, não é boa de se ver: pode, inclusive, reverter perceções.
A cara dos ricos, essa não tem cor.
É, com efeito, a pobreza crescente – que, ainda assim, escorre, atrevida, de algumas cenas residuais de tais manifestações artísticas e noticiosas – que mais contribui para o sentimento social de insegurança: nela, sim, o verdadeiro, mas inominado crime.
A pobreza e a sua condição são, pois, objetiva e subjetivamente, as mais acutilantes e atuais causas da insegurança: insegurança social e pessoal.
Combatendo as causas da pobreza, reduz-se drasticamente, se assim se quiser, a perceção da segunda: a consciência da insegurança.
Isso, no entanto, todos sabem.
Parece, portanto, oportuno recentrar, hoje, entre nós, a inquietação cívica, não na insegurança – que não passa, por ora, de uma perceção politicamente manipulada da realidade – mas na pobreza, cujos os números, na sua inalterável cegueira, confirmam estar a alastrar.
Teve, pois, razão o Presidente da República ao dar-lhe um lugar destacado no seu discurso de Ano Novo.